'Harmonia e Autocontenção': Schuler sobre o Impasse entre STF e Congresso
Instituto Millenium entrevista Fernando Schüler
Instituto Millenium
Publicado em 4 de outubro de 2023 às 13h09.
Última atualização em 5 de outubro de 2023 às 11h02.
A questão do marco temporal para reconhecimento de terras indígenas tem sido motivo de intenso debate entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF). Enquanto o STF determinou a inconstitucionalidade do marco temporal, o Senado propôs fixar a data em 5 de outubro de 1988. Diante desse cenário, o Instituto Millenium entrevistou Fernando Schüler, professor e especialista em políticas públicas, para entender melhor o impasse.
Fernando Schüler possui doutorado em Filosofia e mestrado em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele também é Ph.D. pela Universidade de Columbia e atua como professor no Insper. Sua carreira inclui a gestão de instituições educacionais e governamentais, além de contribuições frequentes para veículos de imprensa nacionais.
Nesta entrevista, Schüler aborda o papel do STF, as implicações da decisão do Congresso e a relação entre os poderes Legislativo e Judiciário no contexto atual.
Instituto Millenium: O que representa esse embate entre Legislativo e Judiciário sobre o marco temporal? Essa disputa é mais reflexo de disputas políticas ou suscita questões profundas sobre o desenho da República brasileira?
Fernando Schüler: Há uma tensão evidente entre o Congresso e o Supremo. Embora alguns analistas enxerguem essa tensão como um contraste entre o progressismo do Supremo e o conservadorismo do Congresso, considero essa visão uma distorção. O papel do Supremo não é expressar posições políticas, mas sim ser o guardião da Constituição. O artigo 231, que trata do marco temporal, não é explícito em sua diretriz, mas dá indícios de contemporaneidade ao usar a expressão "ocupam" em relação aos povos indígenas.
Esta interpretação foi utilizada pelo próprio Supremo no caso da Raposa Terra do Sol. Quando o Congresso propõe uma legislação que define o marco temporal, a questão é se isso é constitucionalmente plausível e se respeita o princípio de harmonia entre os poderes. Na ausência de uma diretriz clara na Constituição, caberia ao Congresso, que representa a diversidade de opiniões da nação, estabelecer essa compreensão. A questão central é determinar quem tem o direito de criar novas diretrizes. Em minha visão, essa responsabilidade pertence ao Congresso, que legisla, enquanto o Supremo deve manter uma postura mais técnica e conservadora, focando na defesa da Constituição.
IM: Há riscos de o STF derrubar a nova Lei do Senado de marcos de terra, caso seja sancionada? Como o STF poderia agir nesse caso?
FS: Se a lei for sancionada, seja pelo não veto do presidente Lula ou pela derrubada de um eventual veto pelo Congresso, há sim a possibilidade do Supremo julgar essa legislação como inconstitucional. Esta decisão poderia vir de uma interpretação ampla dos princípios da Constituição ou de uma prevalência da interpretação dos 11 ministros sobre o artigo 231, em relação ao entendimento do Congresso Nacional. Esta situação sugeriria uma hierarquia entre as instituições. É peculiar, pois o artigo em questão não é uma cláusula pétrea e sua interpretação não é explicitamente clara.
Quando o Congresso apresenta uma interpretação majoritária e a Suprema Corte tem outra visão sobre um tema aberto, parece que o Supremo está assumindo a autoridade de introduzir ou anexar comandos à Constituição, o que é problemático. Em face disso, o Congresso poderia recorrer à aprovação de uma PEC. Contudo, até uma PEC poderia ser contestada pelo Supremo, especialmente se considerarmos que há indicações de que determinados direitos fundamentais, ligados aos povos originários, possam ser vistos como cláusulas pétreas. Em resumo, enquanto uma lei aprovada pelo Congresso pode ser derrubada pelo Supremo, contestar uma PEC se mostra um desafio bem maior.
IM: Qual seria uma saída para resolver esse impasse entre poderes em relação às demarcações de terras indígenas? É possível chegar a um consenso ou acordo que não gere mais disputas?
FS: A resposta para esse impasse entre os poderes em relação às demarcações de terras indígenas está no entendimento e na harmonia. Infelizmente, esses princípios têm sido negligenciados no Brasil nos últimos anos. O Supremo, por sua vez, deveria colocar em prática uma expressão que muito se ouve, que já foi mencionada por ministros da corte: a "autocontenção", especialmente em matérias que são claramente da alçada do Congresso. Há temas, como o aborto, a posse e consumo de drogas, a lei das estatais, e o próprio marco temporal das terras indígenas, que são divisivos e têm significativa relevância estratégica para o país. Em tais questões, seria razoável que a sociedade expressasse sua vontade por meio do Congresso ou, em alguns casos, por plebiscitos. Questões como o aborto, por exemplo, transcendem a natureza da própria política - têm uma natureza ética profunda e refletem convicções arraigadas na sociedade.
O Brasil possui uma lei que disciplina o tema, assim como tem uma lei sobre drogas de 2006. No entanto, se o STF opta por alterar tais legislações, introduzindo comandos legislativos, efetivamente vai assumindo funções de legislador. Essa atitude não é condizente com a lógica da divisão de poderes em uma república.
Quando o Supremo se propõe a revisar ou modificar legislações previamente aprovadas pelo Congresso, como fez com a Lei das Estatais, ele está claramente assumindo funções legislativas. O Supremo está se sobrepondo à lógica de divisão de poderes em uma República. Portanto, em situações que envolvam demandas legislativas, o Supremo deveria exercer sua autocontenção e encaminhar a decisão ao Congresso. O poder, evidentemente, é sedutor, e se onze ministros podem tomar decisões baseadas em interpretações da Constituição, o desafio é resistir a essa sedução. Isso, no entanto, é crucial para manter o equilíbrio e a divisão de poderes em nossa República.
IM: O sr. vê algum problema ou limite nos Poderes Legislativo e Judiciário agirem assim em sentidos opostos? Isso fere a harmonia e independência entre os Poderes prevista na Constituição ou estamos vendo pesos e contrapesos em ação?
FS: Existe um problema evidente e não é algo recente. Há mais de 15 anos, o Supremo derrubou a cláusula de barreira em nome de princípios gerais, decisão que mais tarde foi vista como desastrosa. Como consequência, o Brasil se transformou na democracia com a maior dispersão partidária do mundo. Em 2017, muito tempo depois, uma nova cláusula de barreira foi aprovada, mais tímida. Outro exemplo é quando o Supremo decidiu sobre a criminalização da homofobia. Sem entrar no mérito, caberia ao Congresso Nacional esse disciplinamento.
O argumento da "omissão legislativa" é subjetivo. Por exemplo, o artigo 41 da Constituição determina que o Congresso legisle sobre a avaliação de desempenho dos servidores públicos, algo pendente há 25 anos. Por que o Supremo nunca interveio nesse caso? A alegação de omissão legislativa pelo Supremo parece ser seletiva. O Congresso possui seu tempo e prioridades. Na política, decidir não agir também é uma decisão. Parece-me que há um descompasso entre os poderes. O discurso de posse do Ministro Barroso, como novo Presidente do Supremo, aponta numa direção correta ao mencionar a busca por um entendimento institucional, reconhecendo o papel do Congresso como palavra final, exceto em cláusulas pétreas. Agora, resta saber se isso se concretizará ou permanecerá apenas como retórica.
IM: Em sua visão, qual Poder sai mais fortalecido dessa disputa, o Legislativo ou o Judiciário? Por quê? Essa tensão afeta a credibilidade de algum dos Poderes perante a população?
FS: Em nossa trajetória recente, é evidente que o Supremo Tribunal Federal fortaleceu sua posição na República Brasileira. Ao liderar inquéritos sobre temas como fake news, milícias digitais e atos antidemocráticos, o STF atuou além do devido processo legal, assumindo, em diversas ocasiões, um papel mais legislativo, como visto em casos envolvendo aborto, posse de drogas, lei das estatais e o marco temporal.
Esta concentração de poder no Supremo não é incomum em democracias polarizadas. Em contextos onde o Legislativo se mostra moroso, e diante da demanda da sociedade por decisões, dentro do paradigma do neoconstitucionalismo, as Cortes Superiores muitas vezes se inclinam mais aos princípios do que aos comandos constitucionais objetivos. Em certo sentido, passa a haver uma visão de que as Supremas Cortes atuem em defesa da justiça, de uma interpretação aberta do que sejam os direitos fundamentais e democracia. Isso acaba superdimensionando o poder das Supremas Cortes.
A grande questão é: em uma democracia, aqueles que legislam, que definem políticas públicas, deveriam ser julgados pela sociedade, estar sujeitos ao escrutínio do povo. Por isso que há eleições a cada quatro anos. Quando decisões legislativas são tomadas por figuras que não se submetem ao sufrágio popular, diminui-se o poder do cidadão de exprimir seu julgamento sobre as deliberações que foram produzidas pelo mundo político e que afetam a sua vida. Estamos nos aproximando do que se poderia chamar de "epistocracia", na expressão provocativa do Jason Brennan, onde um seleto grupo de ministros, ainda que altamente qualificados, decide em nome da sociedade sem uma delegação e um julgamento diretos do povo.
É crucial lembrar que, historicamente, a função do STF é técnica e interpretativa. Mesmo sendo uma das esferas de poder, seu poder deriva de uma interpretação objetiva do texto constitucional. Nossa Constituição não é uma carta de princípios. É uma Constituição exaustiva, rica em comandos, que requer que o Supremo exerça uma função predominantemente conservadora. O técnico é aquele que abre mão do poder.
Se algum cidadão pretende dispor de poder e produzir normas, leis ou políticas públicas, deve-se dirigir ao Congresso Nacional. Ele deve ingressar no universo da política e da tomada de decisões, e submeter-se ao sufrágio popular. Isso porque deve vigorar o princípio da representação da sociedade. Essa função não cabe à Suprema Corte. De alguma maneira, perdemos esta dimensão da vida republicana sobre as funções que devem ser atribuídas a cada instituição. Obviamente, apenas o diálogo e o entendimento, aliados à maturidade da sociedade e da própria liderança pública do país, seja do judiciário ou do Congresso, podem equacionar essa questão.
A questão do marco temporal para reconhecimento de terras indígenas tem sido motivo de intenso debate entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF). Enquanto o STF determinou a inconstitucionalidade do marco temporal, o Senado propôs fixar a data em 5 de outubro de 1988. Diante desse cenário, o Instituto Millenium entrevistou Fernando Schüler, professor e especialista em políticas públicas, para entender melhor o impasse.
Fernando Schüler possui doutorado em Filosofia e mestrado em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele também é Ph.D. pela Universidade de Columbia e atua como professor no Insper. Sua carreira inclui a gestão de instituições educacionais e governamentais, além de contribuições frequentes para veículos de imprensa nacionais.
Nesta entrevista, Schüler aborda o papel do STF, as implicações da decisão do Congresso e a relação entre os poderes Legislativo e Judiciário no contexto atual.
Instituto Millenium: O que representa esse embate entre Legislativo e Judiciário sobre o marco temporal? Essa disputa é mais reflexo de disputas políticas ou suscita questões profundas sobre o desenho da República brasileira?
Fernando Schüler: Há uma tensão evidente entre o Congresso e o Supremo. Embora alguns analistas enxerguem essa tensão como um contraste entre o progressismo do Supremo e o conservadorismo do Congresso, considero essa visão uma distorção. O papel do Supremo não é expressar posições políticas, mas sim ser o guardião da Constituição. O artigo 231, que trata do marco temporal, não é explícito em sua diretriz, mas dá indícios de contemporaneidade ao usar a expressão "ocupam" em relação aos povos indígenas.
Esta interpretação foi utilizada pelo próprio Supremo no caso da Raposa Terra do Sol. Quando o Congresso propõe uma legislação que define o marco temporal, a questão é se isso é constitucionalmente plausível e se respeita o princípio de harmonia entre os poderes. Na ausência de uma diretriz clara na Constituição, caberia ao Congresso, que representa a diversidade de opiniões da nação, estabelecer essa compreensão. A questão central é determinar quem tem o direito de criar novas diretrizes. Em minha visão, essa responsabilidade pertence ao Congresso, que legisla, enquanto o Supremo deve manter uma postura mais técnica e conservadora, focando na defesa da Constituição.
IM: Há riscos de o STF derrubar a nova Lei do Senado de marcos de terra, caso seja sancionada? Como o STF poderia agir nesse caso?
FS: Se a lei for sancionada, seja pelo não veto do presidente Lula ou pela derrubada de um eventual veto pelo Congresso, há sim a possibilidade do Supremo julgar essa legislação como inconstitucional. Esta decisão poderia vir de uma interpretação ampla dos princípios da Constituição ou de uma prevalência da interpretação dos 11 ministros sobre o artigo 231, em relação ao entendimento do Congresso Nacional. Esta situação sugeriria uma hierarquia entre as instituições. É peculiar, pois o artigo em questão não é uma cláusula pétrea e sua interpretação não é explicitamente clara.
Quando o Congresso apresenta uma interpretação majoritária e a Suprema Corte tem outra visão sobre um tema aberto, parece que o Supremo está assumindo a autoridade de introduzir ou anexar comandos à Constituição, o que é problemático. Em face disso, o Congresso poderia recorrer à aprovação de uma PEC. Contudo, até uma PEC poderia ser contestada pelo Supremo, especialmente se considerarmos que há indicações de que determinados direitos fundamentais, ligados aos povos originários, possam ser vistos como cláusulas pétreas. Em resumo, enquanto uma lei aprovada pelo Congresso pode ser derrubada pelo Supremo, contestar uma PEC se mostra um desafio bem maior.
IM: Qual seria uma saída para resolver esse impasse entre poderes em relação às demarcações de terras indígenas? É possível chegar a um consenso ou acordo que não gere mais disputas?
FS: A resposta para esse impasse entre os poderes em relação às demarcações de terras indígenas está no entendimento e na harmonia. Infelizmente, esses princípios têm sido negligenciados no Brasil nos últimos anos. O Supremo, por sua vez, deveria colocar em prática uma expressão que muito se ouve, que já foi mencionada por ministros da corte: a "autocontenção", especialmente em matérias que são claramente da alçada do Congresso. Há temas, como o aborto, a posse e consumo de drogas, a lei das estatais, e o próprio marco temporal das terras indígenas, que são divisivos e têm significativa relevância estratégica para o país. Em tais questões, seria razoável que a sociedade expressasse sua vontade por meio do Congresso ou, em alguns casos, por plebiscitos. Questões como o aborto, por exemplo, transcendem a natureza da própria política - têm uma natureza ética profunda e refletem convicções arraigadas na sociedade.
O Brasil possui uma lei que disciplina o tema, assim como tem uma lei sobre drogas de 2006. No entanto, se o STF opta por alterar tais legislações, introduzindo comandos legislativos, efetivamente vai assumindo funções de legislador. Essa atitude não é condizente com a lógica da divisão de poderes em uma república.
Quando o Supremo se propõe a revisar ou modificar legislações previamente aprovadas pelo Congresso, como fez com a Lei das Estatais, ele está claramente assumindo funções legislativas. O Supremo está se sobrepondo à lógica de divisão de poderes em uma República. Portanto, em situações que envolvam demandas legislativas, o Supremo deveria exercer sua autocontenção e encaminhar a decisão ao Congresso. O poder, evidentemente, é sedutor, e se onze ministros podem tomar decisões baseadas em interpretações da Constituição, o desafio é resistir a essa sedução. Isso, no entanto, é crucial para manter o equilíbrio e a divisão de poderes em nossa República.
IM: O sr. vê algum problema ou limite nos Poderes Legislativo e Judiciário agirem assim em sentidos opostos? Isso fere a harmonia e independência entre os Poderes prevista na Constituição ou estamos vendo pesos e contrapesos em ação?
FS: Existe um problema evidente e não é algo recente. Há mais de 15 anos, o Supremo derrubou a cláusula de barreira em nome de princípios gerais, decisão que mais tarde foi vista como desastrosa. Como consequência, o Brasil se transformou na democracia com a maior dispersão partidária do mundo. Em 2017, muito tempo depois, uma nova cláusula de barreira foi aprovada, mais tímida. Outro exemplo é quando o Supremo decidiu sobre a criminalização da homofobia. Sem entrar no mérito, caberia ao Congresso Nacional esse disciplinamento.
O argumento da "omissão legislativa" é subjetivo. Por exemplo, o artigo 41 da Constituição determina que o Congresso legisle sobre a avaliação de desempenho dos servidores públicos, algo pendente há 25 anos. Por que o Supremo nunca interveio nesse caso? A alegação de omissão legislativa pelo Supremo parece ser seletiva. O Congresso possui seu tempo e prioridades. Na política, decidir não agir também é uma decisão. Parece-me que há um descompasso entre os poderes. O discurso de posse do Ministro Barroso, como novo Presidente do Supremo, aponta numa direção correta ao mencionar a busca por um entendimento institucional, reconhecendo o papel do Congresso como palavra final, exceto em cláusulas pétreas. Agora, resta saber se isso se concretizará ou permanecerá apenas como retórica.
IM: Em sua visão, qual Poder sai mais fortalecido dessa disputa, o Legislativo ou o Judiciário? Por quê? Essa tensão afeta a credibilidade de algum dos Poderes perante a população?
FS: Em nossa trajetória recente, é evidente que o Supremo Tribunal Federal fortaleceu sua posição na República Brasileira. Ao liderar inquéritos sobre temas como fake news, milícias digitais e atos antidemocráticos, o STF atuou além do devido processo legal, assumindo, em diversas ocasiões, um papel mais legislativo, como visto em casos envolvendo aborto, posse de drogas, lei das estatais e o marco temporal.
Esta concentração de poder no Supremo não é incomum em democracias polarizadas. Em contextos onde o Legislativo se mostra moroso, e diante da demanda da sociedade por decisões, dentro do paradigma do neoconstitucionalismo, as Cortes Superiores muitas vezes se inclinam mais aos princípios do que aos comandos constitucionais objetivos. Em certo sentido, passa a haver uma visão de que as Supremas Cortes atuem em defesa da justiça, de uma interpretação aberta do que sejam os direitos fundamentais e democracia. Isso acaba superdimensionando o poder das Supremas Cortes.
A grande questão é: em uma democracia, aqueles que legislam, que definem políticas públicas, deveriam ser julgados pela sociedade, estar sujeitos ao escrutínio do povo. Por isso que há eleições a cada quatro anos. Quando decisões legislativas são tomadas por figuras que não se submetem ao sufrágio popular, diminui-se o poder do cidadão de exprimir seu julgamento sobre as deliberações que foram produzidas pelo mundo político e que afetam a sua vida. Estamos nos aproximando do que se poderia chamar de "epistocracia", na expressão provocativa do Jason Brennan, onde um seleto grupo de ministros, ainda que altamente qualificados, decide em nome da sociedade sem uma delegação e um julgamento diretos do povo.
É crucial lembrar que, historicamente, a função do STF é técnica e interpretativa. Mesmo sendo uma das esferas de poder, seu poder deriva de uma interpretação objetiva do texto constitucional. Nossa Constituição não é uma carta de princípios. É uma Constituição exaustiva, rica em comandos, que requer que o Supremo exerça uma função predominantemente conservadora. O técnico é aquele que abre mão do poder.
Se algum cidadão pretende dispor de poder e produzir normas, leis ou políticas públicas, deve-se dirigir ao Congresso Nacional. Ele deve ingressar no universo da política e da tomada de decisões, e submeter-se ao sufrágio popular. Isso porque deve vigorar o princípio da representação da sociedade. Essa função não cabe à Suprema Corte. De alguma maneira, perdemos esta dimensão da vida republicana sobre as funções que devem ser atribuídas a cada instituição. Obviamente, apenas o diálogo e o entendimento, aliados à maturidade da sociedade e da própria liderança pública do país, seja do judiciário ou do Congresso, podem equacionar essa questão.