Colunistas

ESG e o propósito das corporações: de volta ao básico

A interferência pública e a perda do equilíbrio entre causa e consequência abrem espaço para uma guerra semântica

 (Catarina Bessell/Exame)

(Catarina Bessell/Exame)

Instituto Millenium
Instituto Millenium

Instituto Millenium

Publicado em 21 de janeiro de 2025 às 14h16.

Última atualização em 21 de janeiro de 2025 às 14h18.

A agenda ESG (sigla para Environmental, Social, and Governance) nasceu nas Nações Unidas e foi amplificada por investidores e governos ano após ano, rapidamente ganhando substância e influência. O equilíbrio entre o impulso para geração de lucro e a implementação da agenda ESG apresentou um tremendo desafio para gestores e investidores. Uma espécie de conflito entre modelos tradicionais e novos (que incluem ESG) estava na mesa, com sólido apoio para o último. Em algum momento, essa agenda começou a impactar a reputação das empresas, e sua influência nas decisões de negócios tem sido muito significativa. Rankings e certificações comparam o desempenho das empresas no cumprimento de metas que estão em harmonia com os objetivos da agenda ESG e promovem publicamente aquelas que se destacam das demais.

Os principais tópicos abrangidos pela agenda ESG são muito relevantes. É senso comum que todos devem se importar com o planeta e evitar a poluição; fornecer o mesmo tratamento a qualquer pessoa é um objetivo essencial em uma sociedade livre, e melhorar a gestão corporativa também é uma prioridade. Mas, dito isso, também precisamos ressaltar que, depois de se tornar uma tendência extremamente popular, um debate aberto sobre os prós e contras da agenda ESG, como tem sido conduzido, tornou-se inviável. Mesmo sem padrões claros, a conclusão tem sido que ou você cumpre, ou deve ser penalizado. A força do politicamente correto e do controle semântico complica ainda mais essa restrição. Para melhor abordar esse dilema e entender como as corporações devem lidar com a agenda ESG, devemos primeiro fazer uma pergunta fundamental: qual é o propósito das corporações?

De um lado está o modelo de acionistas, qualquer corporação deve se preocupar em gerar lucro e valor a longo prazo, sempre colocando a empresa e seus acionistas (observando uma sutil diferença entre os modelos americano e britânico) em primeiro lugar. Ao gerar lucros e maximizar o valor da empresa a longo prazo, e ao focar nos acionistas, as empresas acabam gerando resultados que beneficiam seus funcionários, fornecedores e a sociedade em geral, por meio da arrecadação de impostos e outras iniciativas. Esta seria a real função social da empresa, e este seria o efetivo cumprimento do interesse público.

Seguindo essa linha de pensamento, o sistema de livre troca é decisivo na geração de riqueza, e o papel público deve ser direcionado apenas para garantir a integridade de tal sistema contratual. Nesse sistema de cooperação social, por meio do qual as partes celebram livremente as trocas, o desenvolvimento é gerado e a pobreza é reduzida.

Do outro lado está o modelo de stakeholders, que coloca em pé de igualdade os interesses dos acionistas e de todos os demais que podem ser direta ou indiretamente impactados pela empresa, por mais complexa que seja a extensão dessa lista. Esse modelo, que tem a Alemanha como referência, inclui diversos temas além do lucro nas decisões estratégicas a serem tomadas por quem administra as empresas. Além disso, demanda mais regulação pública. Ao tomar uma decisão estratégica nesse modelo, a empresa pode eventualmente abrir mão do lucro, devido a outros impactos sociais que tal decisão pode acarretar.

No modelo acionista, os clientes podem preferir comprar produtos e serviços de empresas que se preocupam em proteger o meio ambiente e reduzir impactos ambientais e sociais. Da mesma forma, os investidores podem se sentir mais seguros investindo em empresas cuja governança eles considerem sólida, com ferramentas de gestão que garantam a correção de seus processos internos, o cumprimento da lei e a implementação de um modelo focado, com transparência e consistência, em resultados. As empresas naturalmente considerarão todos esses aspectos, pois impactarão positivamente sua jornada.

O risco de interferência política também é considerado no modelo de acionista. Quanto menor o risco de governos tentarem interferir no bom andamento dos negócios, como tentar nomear pessoas politicamente orientadas para cargos de gerência, melhor. Os governos aumentam o risco, elevam os custos financeiros, prejudicam a estratégia empresarial e penalizam a empresa, seus funcionários e a própria sociedade.

Por fim, tanto consumidores quanto investidores podem escolher livremente empresas que priorizem o lucro e a geração de valor a longo prazo e, ao mesmo tempo, cuidem espontaneamente de seus funcionários, respeitem as pessoas independentemente de quem sejam, se destaquem na gestão e mantenham um bom relacionamento com as comunidades onde estão inseridas.

No modelo de stakeholders, por outro lado, a atenção aos temas ESG inverte a ordem do outro modelo. Isso cria um ambiente fértil para que a empresa seja vítima de confusão entre interesses políticos e propriedade privada. Pela natureza do modelo, há uma demanda por aumento da regulamentação. Tal demanda, mesmo esclarecendo deveres e procedimentos, acaba impondo custos de transação e burocracia às empresas, que muitas vezes não conseguem atender a muitos requisitos. Isso também pode acontecer em questões ambientais, sociais e de governança, pois exigem procedimentos de inspeção e auditoria interna mais burocráticos, como os que surgiram com a legislação que surgiu após grandes escândalos corporativos, como VW, Enron e WorldCom.

A interferência pública e a perda do equilíbrio entre causa e consequência abrem espaço para uma guerra semântica e uma pressão tremenda sobre as empresas, minando a propriedade privada e impondo, por meio de regulamentação, o que não pode ser imposto por vias políticas, por deliberações legislativas.

Também abre espaço para que decisões empresariais sejam tomadas com base em novas tendências, mas não necessariamente observando-as. As empresas podem prejudicar seus resultados ao seguir uma orientação mais ideológica, enquanto outras empresas podem se beneficiar das decisões politicamente motivadas de seus concorrentes.

O caso da empresa de energia Glencore é um exemplo interessante. Em algum momento, enquanto seus concorrentes desfizeram seus negócios associados a emissões de carbono, a Glencore manteve sua posição (e até a expandiu). Quando um aumento significativo na demanda ocorreu devido a uma série de externalidades, a Glencore viu seu valor de mercado aumentar materialmente, em contraste com o que seus concorrentes observaram.

Outro exemplo é a indústria da fast fashion. Há um número crescente de empresas que, sem cuidar do meio ambiente, sem priorizar seus funcionários e desconsiderando as regras tributárias, oferecem produtos mais baratos e, como resultado, ganham participação de mercado rapidamente, com grande sucesso entre o público que, teoricamente, poderia ser mais sensível à agenda ESG.

E tem o mercado financeiro, captando recursos para alocação em negócios pautados pela agenda ESG. Em vários casos, os custos cobrados por esses investimentos são maiores do que os da indústria tradicional, e os resultados financeiros são piores. Ou seja, os investidores perdem. Para evitar essa situação, os gestores discretamente diversificam os investimentos verdes, migrando para negócios de diferentes setores. Isso gera ainda mais confusão nos critérios de certificação de negócios ESG, minando a credibilidade dessa agenda, que também se mostra, sob esse ângulo, mais política do que voltada ao lucro.

A interferência do ESG no mundo dos negócios gera ainda mais demanda por governo devido à crescente regulamentação que ele provoca. Os aumentos nos custos de transação e encargos tributários sobre as empresas, sejam eles orientados para ESG ou não, abrirão espaço para a busca de renda - para que as empresas exijam subsídios, concessões e apelos por reservas de mercado por meio da imposição de licenças ou da tributação de importações. Essa inevitabilidade é a raiz da corrupção. Poderia haver algo mais contrário à agenda ESG do que tais consequências de impacto social negativo?

As empresas devem se importar com suas estratégias. Por um lado, não devem perder de vista sua razão de ser, que é, cumprindo as leis, gerar lucro e valor no longo prazo, priorizando os acionistas. Para isso, devemos sempre ter uma atitude mais back-to-basic. Por outro lado, ao buscar lucro, as corporações devem se esforçar para encantar os clientes com produtos e serviços competitivos que, na medida do possível, permitam a identificação e representação de sentimentos e valores em um ambiente de liberdade.

Enfatizar o sucesso das corporações é crucial; seu crescimento contribui diretamente para os benefícios sociais. A riqueza gerada pelas empresas desempenha um papel vital no alívio da pobreza. Como os governos não podem e não criam valor, a introdução de novas agendas nas operações corporativas deve ser abordada com cautela. Reconhecer a importância da agenda ESG e sua implementação é essencial. No entanto, é fundamental não negligenciar o propósito fundamental das corporações: gerar lucro ao mesmo tempo em que aderem às regulamentações e criam valor de longo prazo para os acionistas.

* Carlos Fernando Souto, sócio fundador do Souto Correa, é especialista em direito corporativo, com experiência em disputas complexas e questões regulatórias para diversos setores

Acompanhe tudo sobre:ESG