Entenda a regulamentação da reforma tributária
Instituto Millenium entrevistou a especialista Cristiane A. J. Schmidt, economista e ex-secretária de Economia de Goiás e ex-conselheira do CADE
Publicado em 30 de abril de 2024 às, 15h41.
Última atualização em 3 de maio de 2024 às, 11h41.
Nesta entrevista, concedida ao Instituto Millenium, Cristiane A. J. Schmidt, economista com extenso currículo que inclui doutorado pela EPGE/FGV, Visiting Scholar na Universidade de Columbia, Conselheira do CADE e Secretária de Economia de Goiás, além de ser colunista do próprio Instituto Millenium, discute a recente proposta de regulamentação da reforma tributária. Este projeto de lei complementar, entregue ao presidente da Câmara dos Deputados na última semana, visa operacionalizar a reforma aprovada em dez/23, apresentando propostas sobre o funcionamento do futuro sistema de impostos sobre consumo, baseado no valor agregado.
A entrevista explora os desafios e objetivos do novo sistema tributário, incluindo a simplificação proposta pela unificação dos impostos, e os efeitos desta mudança nos preços relativos de bens e serviços. Schmidt analisa a introdução do sistema de cashback e os possíveis impactos no setor de infraestrutura, particularmente no que diz respeito ao Marco do Saneamento Básico. A economista também aborda as complexidades trazidas pela legislação e a importância de uma regulamentação clara para garantir uma transição eficaz para o novo sistema tributário.
Instituto Millenium: Poderia detalhar como a proposta original da reforma tributária evoluiu durante as negociações no Congresso e qual é a sua avaliação sobre a proposta de regulamentação apresentada pelo governo na semana passada?
Cristiane Schmidt: Quando discutimos a PEC 45, a proposta da reforma tributária do consumo promulgada em dezembro de 2023 e agora Emenda Constitucional 132, é essencial entender como ela evoluiu desde 2019. Originalmente, a proposta era simples, sem exceções e unindo pontos relevantes da PEC 45 (proposta por Baleia Rossi na Câmara) e da PEC 110 (proposta por David Alcolumbre no Senado). Não daria mais de 5 páginas, provavelmente. No entanto, a necessidade de alcançar consenso político no Congresso introduziu muita complexidade, destoando da proposta técnica proposta pelo executivo. Em suma, foram adicionados três regimes de exceção (o regime diferenciado, o específico e o favorecido) e fundos de transferências para os subnacionais, tornando a proposta com 74 páginas. Ela se tornou, assim, menos justa e menos eficiente, mas, ainda assim, muitíssimo melhor do que o sistema atual. Além desses regimes, foi instituído o imposto seletivo, que, ao contrário dos regimes de exceção, apresenta uma alíquota acima da padrão, que incidirá sobre todos não excetuados.
Como quanto mais exceções, maior a alíquota para todos (não há almoço grátis), a alíquota-padrão média que consta na regulamentação (PLP68/24) foi de 26,5%. Se não houvesse nenhuma exceção, esta poderia ser de 20%! Lamentável, mas, ainda assim, tal alíquota é menor do que a que temos hoje (34,4%, estimada pela Fazenda), uma vez que a sonegação e a inadimplência são grandes hoje e devem diminuir com o IVA.
Dito isso, vale mencionar a distinção entre alíquota e carga tributária, frequentemente confundidas. Uma coisa é uma alíquota de 26,5%. A outra é uma carga tributária de 12,5% do PIB de imposto sobre consumo. Também é comum vermos as pessoas compararem as alíquotas de hoje e a de 26,5%, desconsiderando que no sistema atual não há devolução total de créditos e agora haverá neutralidade praticamente total.
Outro ponto é a reclamação de que “serviços ficarão mais caros para o consumidor final”. Depende. Primeiro, há que considerar que mais de 80% destes serviços é ofertado por empresas do Simples Nacional, que seguirá da mesma forma, pois estas estão como regime favorecido. Segundo, há que entender que uma empresa que vende serviços para uma PJ terá os créditos devolvidos. Terceiro, do ponto de vista do consumidor, há que perceber que, mesmo que um grupo de serviços aumente de preço, outros provavelmente mais caros serão reduzidos (eletrodomésticos, TV, etc.). Ou seja, cada consumidor terá uma mudança de preços relativos na sua cesta de consumo. Serviços possivelmente se tornarão mais caros, mas bens de consumo deverão custar menos. Para efeitos de carga tributária total, a reforma é neutra, no sentido de que esta seguirá igual, ao redor de 12,5% do PIB.
Quanto à proposta do executivo de regulamentação da EC 132, ela será feita por um conjunto de 3 ou 4 projetos de lei. A primeira Lei Complementar foi apresentada no dia 26/04 e é um documento extenso, com quase 360 páginas e 499 artigos. É o coração da reforma. Este tinha que detalhar as exceções (2/3 do texto diz respeito às exceções; por exemplo, 107 dispositivos regulam o regime favorecido) e ainda contemplar o que seria revogado da legislação atual (7 páginas). Se não houvesse estas exceções, o texto ficaria em 34 páginas, que expõem as normas gerais, que servem para todos, eliminando mais de 5000 legislações dos 3 entes. É muita simplificação, especialmente para o contribuinte. É fato que haverá menos judicialização.
Outros projetos de lei serão apresentados em breve. Estes vão tratar do comitê gestor, de como será reorganizado o contencioso tributário (que atualmente é marcado por uma grande fragmentação), dos fundos e dizer quais serão as alíquotas dos regimes específicos e dos impostos seletivos.
IM: Como você vê a alteração nos preços relativos de bens e serviços na economia brasileira?
CS. Essa mudança nos preços relativos faz parte do IVA, que está em 174 países no mundo. A reforma busca não apenas simplificar e desburocratizar o sistema tributário, mas também realinhar os preços da economia de maneira que o empresário não queira se verticalizar ou ir para determinado local por conta de vantagem tributária. A ideia é que o tributo seja neutro, ainda que nada impeça que um prefeito ou que um governador, via orçamentária, faça uma política de atração de empresas e/ou diminua a sua alíquota (que valerá para todos os B&S) para atrair mais consumidores.
IM: Alguma sugestão para lidar com o contencioso tributário?
CS: Uma proposta seria criar uma única autarquia nacional, uma espécie de Conselho Nacional Administrativo Tributário, que consolidaria as funções desses múltiplos órgãos estaduais, municipais e o CARF, padronizando as decisões tributárias em todo o território nacional, uma vez que o CBS e o IBS são impostos gêmeos em tudo. Isso não apenas simplificaria o processo como também aumentaria a segurança jurídica.
Além disso, seria interessante revisar a estrutura de decisão. Atualmente, o governo tem voto de minerva na decisão do contencioso. No entanto, ele não pode recorrer ao judiciário quando tem uma decisão desfavorável, diferentemente do contribuinte, que, não tem o voto de minerva, mas pode recorrer ao judiciário.
Uma possibilidade seria que a nova autarquia tivesse composição paritária de contribuintes e representantes do governo (em geral, dos fiscos), sendo o voto de minerva abolido. Se desse maioria, o caso terminaria por ali e ninguém poderia recorrer ao judiciário. Se o caso empatasse, o (mesmo) processo (já devidamente instruído) seguiria para o judiciário (não tendo que recomeçar tudo novamente), para que houvesse o desempate. O tempo total de início ao julgamento judicial deveria ter um prazo limite, por exemplo, de 2 anos. Nesse sentido, vejo que o judiciário deveria incorporar câmaras técnicas especializadas em contencioso tributário.
IM: Qual é a sua avaliação sobre o sistema de cashback proposto na reforma tributária, especialmente considerando as preocupações sobre a burocracia que poderia ser gerada?
CS: Entendo as preocupações sobre a possível burocracia que o sistema de cashback introduzirá, mas é fundamental olhar para os objetivos mais amplos que o modelo de cashback visa alcançar. O cashback não é apenas uma política redistributiva, como um bolsa família; ele é uma ferramenta poderosa de cidadania fiscal e de formalização.
Um dos principais objetivos do cashback é aumentar a conscientização dos cidadãos sobre quanto ao imposto que eles pagam. Incentivando os consumidores a pedirem notas fiscais para receberem o cashback, estamos não só dando a eles uma visão mais clara da carga tributária incidente em suas compras diárias, mas também estamos fomentando que fiquem mais atentos a possíveis aumentos de impostos. Isso promove um diálogo mais informado sobre política fiscal entre os cidadãos e o governo e uma cobrança sobre o uso (gastos) deste dinheiro pelo governo arrecadado (lembrando que governos não produzem e não geram riqueza!).
Além de aumentar a conscientização fiscal, o cashback também visa a formalização da economia. Experiências positivas com programas semelhantes, como o 'Nota Fiscal Paulista', mostram que, quando os consumidores são incentivados a exigir notas fiscais, há um combate à sonegação implícito no ato, uma forma de inserir concorrência leal entre os contribuintes.
Portanto, apesar das críticas, o sistema de cashback deve ser visto como uma estratégia essencial para envolver os cidadãos de forma mais ativa na economia formal e para aumentar a transparência do sistema tributário. Claro, os desafios de implementação são reais, mas já há países exitosos neste aspecto (Uruguai e o estado do RS para dar dois exemplos) que a tecnologia existe.
IM: Especialistas do setor de infraestrutura expressaram preocupações de que a reforma tributária poderia elevar os custos de projetos, particularmente aqueles relacionados ao Marco do Saneamento Básico. Como você avalia essas preocupações?
CS: Compreendo as preocupações expressas por especialistas do setor de infraestrutura, especialmente em relação ao Marco do Saneamento Básico, e os temores de um aumento nas tarifas finais ao consumidor. Pode acontecer sim e, se isso ocorrer, terá que ocorrer uma revisão contratual junto às agencias reguladoras.
No entanto, essas preocupações podem estar desconsiderando a não cumulatividade do IVA, que desonera completamente a cadeia produtiva, em especial a aquisição de bens de capital (isto é, investimento), o que hoje não é a realidade. Este é um ponto crucial para entendermos como a reforma pode, de fato, facilitar e não complicar os investimentos em projetos essenciais como o saneamento, principalmente poque o Marco do Saneamento tem 2033 como a data limite para a universalização dos serviços. A não cumulatividade significa que os impostos pagos nas etapas anteriores de produção e serviço serão creditados, reduzindo a carga tributária efetiva sobre os investimentos. Isso desonera os custos, contrariamente ao que se teme. É fundamental, assim, que as informações sobre como o princípio da não cumulatividade funciona sejam disseminadas de maneira clara, para que todos os stakeholders entendam os benefícios diretos dessa mudança.
Para além disso, já foram estipulados no PLP 68 os setores que terão cashback e quanto. Os consumidores vulneráveis terão 20% de cashback de tudo que consumidores. Além disso, terão 100% de cashback na compra do botijão de GLP e 50% no consumo de serviços como água, esgoto e energia elétrica.