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Colunista
Publicado em 10 de setembro de 2025 às 21h14.
Em um país habituado ao gigantismo estatal, onde os tentáculos do Leviatã se estendem da exploração de petróleo e energia elétrica à gestão de bancos públicos, passando por estaleiros, rodovias, saneamento e até pela indústria cultural, não causa surpresa que, quando o Estado ingressa em determinado setor econômico, os números superlativos lhe sejam inerentes. Mais do que discutir a legitimidade de o governo assumir a função bancária, financiando projetos empresariais com recursos do Tesouro que, em última instância, pertencem aos contribuintes, a realidade histórica é que as vultosas somas de recursos couberam quase sempre ao Estado brasileiro, em contrapartida a um mercado de capitais cronicamente limitado em sua capacidade de prover financiamento de longo prazo. Tal limitação decorreu, em grande medida, da própria hipertrofia governamental, cujo crescimento desmedido acabou por inibir o florescimento de um mercado de capitais robusto e funcional.
Nas últimas décadas, contudo, surgiram iniciativas meritórias para deslocar, ao menos em parte, o eixo do financiamento de novos projetos, até então quase integralmente dependentes dos cofres públicos. Em 1993, por exemplo, foram criados os Fundos de Investimentos Imobiliários (FIIs), que permitiram captar recursos de investidores de varejo para empreendimentos imobiliários, com o atrativo da isenção de imposto de renda sobre os rendimentos pagos a pessoas físicas. Mais adiante, vieram os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) e do Agronegócio (CRAs), assim como as Letras de Crédito Imobiliário (LCIs) e do Agronegócio (LCAs). Embora não voltados diretamente à infraestrutura, esses instrumentos abriram espaço para o financiamento de longo prazo via mercado de capitais em setores estratégicos da economia.
A grande inflexão, entretanto, ocorreu com a instituição da Lei 12.431 de 2011, que criou as chamadas debêntures incentivadas. Sua importância foi dupla: ao isentar do imposto de renda as pessoas físicas e reduzir a alíquota para pessoas jurídicas que investissem em títulos destinados a financiar projetos de infraestrutura, a lei abriu um novo canal de funding de longo prazo fora do guarda-chuva do BNDES. Assim, atraiu investidores de varejo e fundos para setores que demandam capital intensivo, como energia, logística e saneamento. Ao longo da década passada, esse instrumento consolidou-se como o principal mecanismo de mercado de capitais para o financiamento da infraestrutura nacional.
O movimento ganhou força a partir de 2017, após o lançamento do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), criado pela Lei 13.334 de 2016 no governo do ex-presidente Michel Temer. O PPI buscava ampliar a participação privada em projetos de infraestrutura e serviços públicos, oferecendo maior segurança jurídica e previsibilidade regulatória, o que viabilizou concessões e parcerias público-privadas em rodovias, ferrovias, portos, energia e saneamento. Os números dão a dimensão do salto: segundo a ANBIMA, em 2016 o volume captado via debêntures incentivadas foi de R$ 4,3 bilhões; em 2017, R$ 9,1 bilhões; em 2023, já saltara para R$ 64,5 bilhões; e, em 2024, o volume recorde de R$ 132,8 bilhões. Atualmente, aproximadamente 60% do funding das concessionárias de ativos públicos provém dessas debêntures, contra 40% de outras fontes, como o BNDES e demais bancos de fomento.
Esse avanço ocorreu mesmo em ambiente de juros elevados, pois o investimento privado em infraestrutura trabalha com horizontes longos, entre 25 e 30 anos de maturação. Além disso, as debêntures oferecem agilidade e condições financeiras superiores à burocracia de um financiamento tradicional do BNDES. Entre suas vantagens, destaca-se a possibilidade de uma empresa resgatar uma emissão e substituí-la por outra quando as taxas caem, flexibilidade inexistente na TLP, índice que norteia os contratos com o banco estatal.
Todavia, como tantas vezes ocorre no Brasil, mesmo quando uma política se mostra eficaz e cumpre plenamente seus objetivos, o governo encontra uma maneira de criar insegurança jurídica e instabilidade regulatória. É o caso da Medida Provisória nº 1.303 de 2025, editada em junho, que alterou a tributação das aplicações financeiras, extinguindo a isenção para pessoas físicas, modificando alíquotas para pessoas jurídicas e encerrando o regime exclusivo de tributação na fonte. Entre os instrumentos afetados estão justamente as debêntures incentivadas.
A justificativa oficial foi compensar a revogação do aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), mas o caráter arrecadatório da medida é evidente. E aqui reside o maior contrassenso: ao desincentivar investidores privados e reduzir sua participação no financiamento da infraestrutura, a tarefa volta a recair quase integralmente sobre o BNDES. Para um governo que vive em uma crise fiscal crônica e batalha contra as contas públicas, não me parece uma proposta inteligente. Estudo da consultoria Pezco Economics estima que o Tesouro teria de aportar R$ 335 bilhões em cinco anos no banco estatal para suprir a lacuna deixada pelo enfraquecimento das debêntures. Para as empresas, a perda de atratividade desse mecanismo pode significar aumento de 1,5% a 4% nas tarifas cobradas pelas concessionárias, custo inevitavelmente repassado ao consumidor. Em suma, todos perdem.
As discussões sobre a medida provisória seguem no Congresso, onde cabe aos parlamentares aprovar ou rejeitar as mudanças. O Executivo, por sua vez, deveria reavaliar a proposta, em vez de insistir numa política de curtíssimo prazo que sacrifica um instrumento bem-sucedido de financiamento de longo prazo. A contradição é explícita: em nome de ganhos imediatos de arrecadação, o governo mina um mecanismo que tem garantido investimentos sustentáveis, geração de empregos, expansão da nossa infraestrutura e tarifas de serviços público mais baixas, ou seja, os benefícios à sociedade são tangíveis. Ainda há tempo para corrigir um erro que poderá nos custar muito caro.