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Digitalização urbana: cidades inteligentes ou cidadãos invisíveis? 

No Brasil, cerca de 16,4 milhões de pessoas vivem em áreas urbanas precárias e enfrentam exclusão digital 

Cidades inteligentes (Prasit photo/Getty Images)

Cidades inteligentes (Prasit photo/Getty Images)

Instituto Millenium
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Instituto Millenium

Publicado em 3 de julho de 2025 às 14h18.

*Luiza Cauduro, associada do Instituto de Estudos Empresariais (IEE) 

 

O avanço da tecnologia ensejou que nos últimos anos o conceito de cidades inteligentes tenha ganhado protagonismo nos discursos empresariais e nas políticas públicas. Há a promessa de maior eficiência urbana, economia de recursos e um cotidiano mais fluido para a sociedade, por meio de sensores espalhados pelas ruas, iluminação pública controlada por inteligência artificial, assim como de padrões de trânsito estabelecidos por algoritmos. Contudo, diante de tanta inovação, surge um questionamento: estamos construindo cidades inteligentes para todos ou apenas para alguns?  

Não há dúvidas de que a digitalização da vida urbana tem um enorme potencial de inclusão nas cidades, bem como pode viabilizar que distâncias entre o cidadão e o poder público sejam reduzidas, assim como permitir que processos sejam simplificados e serviços fiquem mais acessíveis. A título exemplificativo, um cidadão pode agendar uma consulta sem necessitar enfrentar filas, pode acompanhar o itinerário de um ônibus em tempo real ou até mesmo realizar a abertura de uma empresa com alguns cliques. 

No entanto, para assegurar que a digitalização de fato seja efetiva, é necessário que todos, em especial aqueles que mais dependem dos serviços públicos, tenham acesso a conexão de qualidade, dispositivos compatíveis e, é claro, conhecimento para utilizar as ferramentas com autonomia, sob pena de se aprofundarem as desigualdades e afastar ainda mais os indivíduos que seriam os principais usuários das tecnologias, tornando-os “invisíveis”. Infelizmente, o cenário brasileiro não é favorável. 

No Brasil, quase 16,4 milhões de pessoas vivem em áreas urbanas precárias – aproximadamente 8% da população, de acordo com pesquisa recente realizada pelo IBGE. Ou seja, uma parte não desprezível dos brasileiros está excluída da revolução digital. E, quando conectada, muitas vezes não tem acesso a tecnologia ou segurança necessárias para utilizá-la corretamente. O acesso à internet, por exemplo, segue sendo pautado com assimetria. Enquanto nas regiões centrais os cidadãos conseguem contar com Wi-Fi público, redes de 5G e fibra óptica, há muitos bairros da periferia que permanecem com sinal instável, sem cobertura adequada, além de planos móveis com valor elevado. 

Nesse sentido, quando a prefeitura digitaliza o agendamento médico, transfere o atendimento da assistência social para canais virtuais, online, ou até mesmo exige cadastro prévio por aplicativo para matrícula escolar, pode estar permitindo que cidadãos que não estejam acompanhando esse desenvolvimento da tecnologia acabem sendo prejudicados, mesmo que de forma não intencional. Além disso, o investimento em câmeras de reconhecimento facial, semáforos inteligentes ou outras tecnologias mais sofisticadas acaba por ser priorizado, em vez de ser lançada luz sobre problemas básicos mais relevantes – tais como falta de saneamento, transporte público de qualidade, segurança. 

A verdade é que pode estar ocorrendo uma prioridade invertida. A digitalização é, sem sombra de dúvida, um sinônimo de modernidade, porém não pode permitir que as raízes das desigualdades sejam desconsideradas ou até mesmo ignoradas. A inteligência artificial necessita, na realidade, ser coletiva e inclusiva para que as cidades inteligentes construam um caminho próspero e promissor para a gestão pública – os representantes públicos devem, portanto, buscar o oferecimento de educação digital básica, assim como disponibilizar conexão de forma acessível às pessoas, para que os serviços essenciais sejam facilmente acessados, com interface intuitiva e linguagem acessível. 

O setor privado, em igual sentido, tem papel relevante nesse processo para garantir que startups e empresas que atuam com soluções para as cidades considerem, em seu modelo de negócio, a diversidade dos perfis urbanos. Os produtos ofertados devem ser acessíveis e permitir a integração com plataformas públicas, para contribuir com o progresso urbano e, consequentemente, beneficiar os cidadãos, com o objetivo de que a transformação digital seja pautada pela equidade, e não somente pela eficiência. 

A corrida pela digitalização urbana pode ampliar desigualdades se não vier acompanhada de inclusão digital, infraestrutura básica e educação tecnológica. Logo, o desafio não é desacelerar a inovação, mas assegurar que o desenvolvimento digital seja realizado de forma respeitosa, segura e constante, sem abandonar cidadãos, em especial aqueles mais vulneráveis – sob pena de serem construídas cidades brilhantes, altamente eficazes, porém cegas às pessoas que as habitam. 

 

*Luiza Cauduro é mestre em Direito Civil e Empresarial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em Processo Civil pela UFRGS e graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). É sócia do Zavagna Gralha Advogados e associada efetiva do Instituto de Estudos Empresariais (IEE) desde 2024. 

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