Rio de Janeiro (RJ), 28/10/2025 - Durante operação policia contra o Comando Vermelho, agentes da polícia militar fazem guarda perto de filas nos pontos de ônibus e vans de transporte complementar na região da Central do Brasil, com trabalhadores sendo liberados mais cedo pela situação de violência. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Sócio do Escritório Apparecido e Carvalho Pinto Advogados
Publicado em 4 de novembro de 2025 às 21h20.
O Brasil enfrenta um grave e silencioso processo de erosão territorial: aproximadamente 19% da população vive em áreas urbanas onde o Estado não exerce plenamente sua autoridade. Nesses territórios, facções criminosas e milícias substituem o poder público, impõem suas próprias normas, exploram serviços essenciais e estruturam economias paralelas altamente lucrativas. Se, no início, o controle do crime estava restrito às favelas, atualmente ele já se estende a áreas regulares adjacentes e empreendimentos do Programa Minha Casa, Minha Vida. Trata-se de uma ameaça direta à soberania nacional, cujos impactos extrapolam a segurança pública e comprometem o ambiente econômico, o Estado de Direito e a qualidade de vida da população.
A atuação dessas organizações criminosas ultrapassa em muito o tráfico de drogas. Elas exploram, com exclusividade e coerção armada, serviços como energia, água, gás, transporte e internet. Além disso, instituem normas de convivência, cobram taxas de segurança e operam sistemas de justiça paralela, assumindo funções que, por direito, cabem ao Estado.
Um dos principais eixos de financiamento dessas facções é o mercado imobiliário clandestino. Prédios inteiros são erguidos em áreas públicas ou ambientalmente protegidas e vendidos com promessas de infraestrutura e segurança — ainda que tudo ocorra à margem da lei. O caso da comunidade da Muzema, no Rio de Janeiro, onde dois edifícios desabaram em 2019 matando 24 pessoas, ilustra o grau de sofisticação e periculosidade dessa prática.
Frente a esse cenário, a regularização indiscriminada de construções ilegais representa um incentivo à expansão do crime. A alternativa, já adotada com sucesso pela Prefeitura do Rio de Janeiro, é a demolição seletiva de edificações ligadas a atividades ilícitas, especialmente à grilagem e à lavagem de dinheiro. Desde 2021, mais de 4.800 construções irregulares foram demolidas, provocando prejuízo estimado em R$ 1,6 bilhão às organizações criminosas. O município tem discricionariedade para optar ou não pela regularização, levando em conta, inclusive, a origem criminosa da ocupação.
As ligações clandestinas de água e energia elétrica sustentam a lógica econômica da grilagem. São elas que permitem dotar as construções ilegais de infraestrutura básica, conferindo aparência de legalidade e facilitando sua comercialização. Em muitos casos, a ocupação irregular começa com um simples "gato" de energia, que alimenta bombas hidráulicas para levar água a terrenos em morros e encostas, viabilizando a construção de prédios inteiros, sem qualquer licença ou segurança estrutural.
A própria regulação dos serviços públicos contribui, ainda que involuntariamente, para a manutenção dessa lógica. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) estabelece metas de perdas não técnicas (PNT) com base no chamado Índice de Complexidade Socioeconômica (IC), que considera variáveis como violência, informalidade urbana e inadimplência. Quanto maior o IC, menor a exigência de controle de perdas.
Em áreas totalmente dominadas por facções, essas metas são tão baixas que, na prática, as distribuidoras são desoneradas do dever de combater as ligações ilegais. Esses territórios são oficialmente reconhecidos como Áreas com Severas Restrições Operativas (ASRO), sendo o critério mais comum a recusa dos Correios em realizar entregas no local. Em 2024, as PNT foram de R$ 10,3 bilhões, dos quais R$ 7,1 bilhões foram repassados para todos os consumidores, por meio de aumentos nas tarifas. Isso não significa que os moradores com ligações clandestinas estejam recebendo água e energia de graça; estão pagando ao crime organizado.
Mais grave ainda é o paradoxo da universalização dos serviços. A legislação obriga as concessionárias a levar água e energia a todas as residências, inclusive nos territórios dominados por facções. Como não conseguem operar sem autorização dos grupos criminosos, acabam por legitimar sua autoridade de fato.
Nos loteamentos regulares, quem tem que arcar com o custo das redes de distribuição é o empreendedor. Nos assentamentos informais, quem implanta a rede é a distribuidora e o custo é repassado à tarifa de todos os usuários. As ligações oficiais muitas vezes beneficiam imóveis construídos pelas próprias milícias e facções, e a tarifa social — pensada para proteger os mais pobres — é aplicada indiscriminadamente, inclusive a compradores de imóveis ilegais. Ou seja, os usuários regulares financiam infraestruturas e subsídios tarifários que valorizam diretamente os imóveis vendidos pelo crime organizado.
Esse cenário exige uma revisão urgente da política de universalização. É necessário estabelecer que essas obrigações não se aplicam automaticamente a áreas sob controle de organizações criminosas. Do contrário, cria-se um ciclo vicioso de reforço institucional ao poder paralelo.
A resposta do Estado deve ser firme, articulada e multidimensional. O desafio não se restringe à segurança pública, mas envolve também o desenvolvimento urbano, a justiça social e a restauração da autoridade legítima do Estado. A retomada territorial deve tornar-se prioridade nacional e orientar políticas integradas de segurança, habitação, infraestrutura e regularização fundiária.
Esse esforço exige a participação ativa de forças de segurança, concessionárias, prefeituras e governos estaduais. O combate às ligações clandestinas e à grilagem precisa ser elevado à condição de política estratégica. Ao mesmo tempo, a regularização fundiária e a extensão dos serviços públicos só devem ocorrer após a completa retomada do território pelo poder público.
O Brasil não pode aceitar que facções criminosas se consolidem como poderes paralelos capazes de regular mercados, fornecer serviços e definir o uso do solo. Combater essa realidade não é tarefa exclusiva das polícias: prefeituras, concessionárias e agências reguladoras precisam atuar de forma coordenada e estratégica. A regulação urbanística e dos serviços públicos deve refletir esse compromisso.
É preciso reverter o ciclo de legitimação do crime e reconstruir a autoridade do Estado onde ela foi perdida. Sem isso, não haverá soberania plena — nem cidades seguras, inclusivas e prósperas.