Brasília (DF), 03/11/2023, Prédio da Controladoria Geral da União, Fachada CGU, seguido dos prédios da Dataprev, do Conselho Nacional de Desenvolvimento, e da INFRA S.A. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil (Agência Brasil)
Instituto Millenium
Publicado em 27 de janeiro de 2025 às 10h20.
Como o desenho urbano, definido pelas edificações, espaços abertos e suas relações, pode contribuir para a qualidade de vida nas cidades? Para responder esta pergunta é necessário considerar, inicialmente, que qualidade de vida diz respeito aos usuários da cidade. A seguir é necessário entender como esses usuários percebem a cidade, uma vez que suas atitudes (pensamentos) e comportamentos (ações) serão afetadas pelas suas percepções. Embora a percepção da cidade possa ser influenciada pelos valores e experiências registradas na memória (com base no processo de cognição), o processo de percepção baseado nos estímulos gerados pelo desenho urbano, principalmente visual, tende a ser preponderante na explicação das atitudes e comportamentos dos usuários da cidade.
Logo, a percepção visual das características formais das edificações e espaços abertos pode explicar porque algumas cidades são percebidas como esteticamente atraentes e outras não. Cidades ou áreas urbanas consideradas bonitas, com qualidade estética, tendem a ser caracterizadas pela ordem e estímulo visual na composição arquitetônica de cada edificação e na composição do conjunto de edificações, conforme evidenciado pelos resultados de diversas pesquisas, incluindo aqueles publicados nos artigos “Composição Arquitetônica e Qualidade Estética” (Reis et. al, 2014) e “Estética Urbana: uma análise através das ideias de ordem, estímulo visual, valor histórico e familiaridade” (Reis et. al, 2011). A existência de ordem e estímulo visual na composição arquitetônica está presente em áreas históricas de diversas cidades no exterior, tais como Amsterdam, Barcelona, Bruges, Budapeste, Florença, Lisboa, Paris, Praga e Veneza, e no Brasil, como Olinda, Ouro Preto, Salvador e São Luís. A relevância de uma estética urbana qualificada, de vistas qualificadas a partir dos espaços abertos públicos e das edificações, está em possibilitar ambientes urbanos atraentes e agradáveis para os seus diversos grupos de usuários, incluindo turistas, e assim, também potencializar a geração de renda.
A percepção de segurança, assim como a ocorrência de crimes, principalmente de roubo a pedestres, também tende a afetar as atitudes e comportamentos dos usuários da cidade e a ter uma relação com o desenho urbano. Desde o início da década de 1960 a jornalista americana Jane Jacobs em seu livro “The Death and Life of Great American Cities: the failure of town planning” (A Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas: o fracasso do planejamento urbano) já salientava a importância das edificações estarem visual e fisicamente conectadas aos espaços abertos públicos, o que ela chamou de ‘olhos para as ruas’. Diversas pesquisas publicadas posteriormente têm confirmado a importância destas relações entre as edificações e as ruas, tais como “Transformações de interfaces térreas, uso e percepção de segurança em cidade litorânea” (Antocheviz et al., 2019) e “Atributos físico-espaciais e configuracionais de segmentos de ruas e ocorrências de roubos a pedestres.” (Reis et al., 2019).
Segue que áreas urbanas caracterizadas por relações diretas entre as edificações e os espaços abertos públicos, com as edificações localizadas junto ou próximas às calçadas, e com portas e janelas, principalmente nos térreos, voltadas para as ruas tendem a ser áreas mais seguras do que aquelas caracterizadas por edificações distantes das ruas, com paredes cegas (sem aberturas) e muros, tal como a presença de condomínios murados em áreas urbanas consolidadas, conforme evidenciado na dissertação de mestrado intitulada “Condomínios horizontais fechados: avaliação de desempenho interno e impacto físico espacial no espaço urbano” (Becker, 2005).
As atitudes e comportamentos das pessoas ainda são influenciadas pelo nível de legibilidade possibilitado pelo desenho urbano, isto é, pela maior ou menor facilidade com que as edificações e espaços abertos são percebidos e registrados no cérebro, no nosso mapa mental ou cognitivo. O nível de legibilidade facilita ou dificulta a orientação espacial dos usuários das cidades, afetando a qualidade de suas experiências urbanas, uma vez que a dificuldade de orientação pode provocar estresse e a consequente rejeição de determinada área. Um desenho urbano com marcos referenciais (por exemplo, o Obelisco em Buenos Aires, o MASP em São Paulo), caminhos claros com acessos das edificações conectados diretamente (tal como no urbanismo tradicional, existente em áreas históricas de muitas cidades), com setores reconhecíveis através das características arquitetônicas (por exemplo, quadras em Praga com distintas características arquitetônicas), possui legibilidade adequada e facilita a orientação espacial.
Assim, enquanto as áreas históricas de Paris, Praga e São Luís do Maranhão tendem a ser legíveis, o mesmo não pode ser dito de Brasília, conforme presenciado e salientado no livro “A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia” de James Holston (1993). A falta de legibilidade também está presente, por exemplo, no Campus do Vale da UFRGS, com implantação modernista, tal como vivenciado e evidenciado pela dissertação de mestrado intitulada “Orientação espacial em desenho urbano tradicional e modernista: estudo em campi universitários da UFRGS” (Mano, 2016), assim como na área do modernista “Barbican Estate”, construído em 1982 em Londres, onde uma linha amarela foi pintada no piso para facilitar a orientação espacial.
Adicionalmente, o desenho urbano pode qualificar a vida nas cidades ao incrementar os usos dos espaços abertos públicos através de edificações que estejam junto ou próximas às calçadas, com atividades nos térreos que sejam visualizadas e acessíveis a partir das ruas e que possam contribuir para a atração e a permanência de pessoas nos próprios térreos e, se possível, nos espaços abertos adjacentes, tais como cafés, bares e restaurantes com mesas e cadeiras nas calçadas existentes em diversas cidades no Brasil e no exterior. Por sua vez, o urbanismo modernista, ao se caracterizar, frequentemente, por edificações afastadas das ruas, empenas cegas voltadas para áreas de circulação pública e por pilotis, impede e/ou dificulta a existência de atividades nos térreos que possam contribuir para os usos dos espaços abertos públicos.
Neste sentido, continua a ocorrer em muitas cidades a implantação de edificações muradas, com paredes cegas e/ou com garagens nos térreos, tal como em Capão da Canoa no litoral norte do Rio Grande do Sul, onde edifícios com 12 pavimentos junto ou próximos da orla marítima possuem pavimentos térreos com predomínio de portas de garagens ao longo das calçadas, conforme pode ser verificado na tese de doutorado intitulada “Qualidade de vida urbana em contextos com distintas alturas e interfaces térreas em uma cidade litorânea.” (Antocheviz, 2020).
Concluindo, o desenho urbano pode contribuir para a qualidade de vida nas cidades, uma vez que seja entendido e considerado como as edificações, os espaços abertos e suas relações são percebidos pelas pessoas e como podem ser viabilizadas áreas urbanas esteticamente agradáveis, seguras, legíveis e com usos e, assim, potencializadas a caminhabilidade e a saúde das pessoas. Como parte deste desenho urbano que ‘sustenta a vida’ também é fundamental considerar a existência de espaços abertos públicos que incluam vegetação (tal como a arborização nas ruas, praças e parques) e sistemas adequados de captação e drenagem das águas pluviais, e que favoreçam a realização de atividades de lazer e esportivas.
*Antônio Tarcísio Reis é arquiteto, Ph.D., professor titular da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR)