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Instituto Millenium
Publicado em 25 de março de 2025 às 14h09.
O Brasil perdeu o fio condutor do seu desenvolvimento? Em que momento o país deixou de discutir os fundamentos essenciais para o seu crescimento e se desviou do caminho da estabilidade? Essas são algumas das questões abordadas pelo economista Fabio Giambiagi em seu 44º livro, A Vingança de Tocqueville, publicado pela Alta Books. Com uma análise profunda e repleta de referências históricas e econômicas, Giambiagi conduz o leitor por uma jornada pelas últimas quatro décadas da economia brasileira, revisitando os grandes marcos, os erros recorrentes e os desafios que permanecem no horizonte.
Do combate à inflação à instabilidade fiscal, passando pela "argentinização" do Brasil e pela polarização política que travou avanços estruturais, Giambiagi faz um diagnóstico minucioso da trajetória brasileira e alerta para os sinais preocupantes do presente. Na entrevista a seguir, exploramos os principais pontos do livro. Mais do que apontar falhas, Giambiagi propõe um caminho para resgatar o país de sua letargia econômica, apostando na abertura de mercado, na produtividade e no rigor fiscal como pilares para um futuro mais próspero e estável.
Instituto Millenium: Em sua análise, o Brasil se perdeu em que momento específico? Houve um ponto de inflexão claro ou foi um processo gradual?
Fabio Giambiagi: No contexto ao qual o livro se refere, cabe mais de uma interpretação, mas na minha opinião, o ponto no tempo que poderia ter mudado a História foi 2003, quando perdemos uma oportunidade histórica, num contexto particularmente especial, num clima de excepcional cordialidade entre a equipe de FHC, que saía, e a de Lula, que entrava, para sentar as bases de uma socialdemocracia moderna, pró-capitalista, mas com teor social, oportunidade essa que se perdeu por um ato de mesquinharia política do PT.
IM: Você destaca que, desde 2013, o Brasil entrou em um modo de espera e parou de discutir questões essenciais. O que explica essa paralisia intelectual e política?
FG: Em 2013, era preciso "esperar as eleições". Em 2014, "o que o novo governo vai fazer". Em 2015, "o que acontece com o impeachment". Em 2016, "o que o Temer vai fazer". Em 2017, "o resultado das eleições". E assim sucessivamente. Depois veio a pandemia, suas sequelas e um contexto de excepcional polarização política. Foram anos muito ruins para o país. Só recentemente, recuperamos certa sensação de normalidade
IM: O livro menciona a rivalidade entre PSDB e PT como um dos fatores que prejudicaram a construção de um consenso nacional. Hoje, o PSDB cedeu seu lugar na trincheira para o Bolsonarismo, e os ânimos estão ainda mais acirrados. Há espaço para uma pacificação do país e um projeto comum entre as forças políticas do centro no Brasil de hoje?
FG: Essa é a grande questão que o livro procura abordar, ainda que de uma forma não plenamente linear nem frontal, por todas as dificuldades políticas que existem no país para poder dialogar. Meu entendimento, acompanhado de certa torcida, é que não temos um país de extrema direita e os extremos ideológicos não passam de algo como um quinto do eleitorado, talvez uns 15 % pela extrema direita e uns 5 % associados a uma esquerda mais radicalizada. Como país, porém, afastada a polarização doentia dos últimos anos, deveríamos ser capazes de formar certos consensos entre grupos políticos capazes de dialogar, que podem reunir, digamos, PSD, MDB, PP, União Brasil e outras expressões num campo e frações do PT e o PSB e a Rede, de outro. Porém, precisamos fugir dessa visão embrutecedora que faz com que qualquer coisa vinda de um lado seja apedrejada pelo outro e recuperar certa capacidade de diálogo. Não só para formar coalizões, como para fazer acordos pontuais, mesmo entre rivais. Essa é a essência da política.
IM: O senhor aponta a “argentinização” do Brasil como um risco. Quais pontos, especificamente, devemos usar o país vizinho como exemplo do que não fazer? Qual sua avaliação do governo Milei?
FG: O livro tem um capítulo sobre a "argentinização do Brasil", no duplo sentido, de que nosso desempenho foi tão ruim, macroeconomicamente, quanto o deles, e de que incorporamos alguns dos piores hábitos associados à radicalização historicamente presente no país vizinho. Lá se usa muito na política a expressão "grieta", ou seja, fenda, como uma fenda na terra que divide o país em dois bancos incapazes de conviver. Eu me criei nesse contexto, com o antagonismo ‘peronismo x antiperonismo’, e o que vivemos no Brasil nos últimos anos lembra muito esse clima. Quanto ao Milei, existe um lema na política argentina, que é: "Governar a Argentina é controlar o câmbio". O Milei fez um ajuste fiscal realmente impressionante e conseguiu um feito ao reduzir muito rapidamente a inflação na Argentina, mas no contexto de uma apreciação real significativa do câmbio, que está começando a acarretar problemas clássicos na conta corrente do Balanço de Pagamentos. Sempre digo, nesse tipo de processos, que são maratonas, não corridas de 100 metros. O governo será avaliado pelo conjunto de 4 anos, se conseguir evitar problemas de BP, mas o primeiro ano dele mostrou, sem dúvida, melhoras importantes. Por outro lado, não há como negar que não se trata de um governo normal. O Presidente exerce diariamente uma retórica violentíssima, que contribui decisivamente para criar um ambiente de enorme animosidade. É como se houvesse uma espécie de pulsão pela morte na política argentina, em que fica-se esperando que haja um morto a qualquer momento, em alguma passeata. Isso é doentio. E a capacidade de Milei de praticar danos autoinfligidos é espantosa. Vide esse caso inacreditável da criptomoeda, onde o único responsável pelo que (na melhor das hipóteses) foi uma enorme estupidez, foi o próprio Milei.
IM: O tripé macroeconômico (câmbio flutuante, superávit primário e metas de inflação) foi um divisor de águas no Brasil pós-Real. O quanto esse modelo ainda se sustenta diante das atuais pressões políticas e fiscais?
FG: Do tripé, o câmbio flutuante está funcionando bem e a política monetária responde "by the book". A perna capenga do tripé é claramente a política fiscal. Por outro lado, antes de 2027 não há a menor possibilidade dela ser consertada. Teremos que esperar dois anos.
IM: O livro enfatiza a necessidade de abertura econômica, aumento da produtividade e compromisso fiscal. O que impede essas pautas de avançarem de forma consistente no Brasil?
FG: É preciso ter uma liderança política que empunhe essas bandeiras. A rigor, para além da retórica um tanto quanto boçalizante da polarização burra em que vivemos, ninguém faz isso. O Congresso tem ficado a léguas dessa agenda e, evidentemente, não é a agenda pela qual o PT morra de amores. Quanto ao Bolsonaro, ele não tem discernimento para ir além da primeira página de um documento que trate desses pontos, porque em matéria de debates a sério, ele não tem a mais vaga ideia de coisa alguma.
IM: A incapacidade de adaptação à restrição orçamentária é uma constante em diferentes governos, afinal, cortar gastos não é politicamente tão vantajoso quanto distribuir benesses. Como mudar essa mentalidade e criar uma cultura de responsabilidade fiscal duradoura?
FG: Eu sempre uso o exemplo da política monetária. Mal ou bem, nem sempre da melhor forma, mas como país, ao longo de diferentes governos, como brasileiros, fomos capazes de erguer uma construção institucional de política monetária que permitiu que a estabilidade seja um valor compartilhado por todos os partidos. Precisamos martelar o tema fiscal para que, em algum momento, possamos ter a maturidade de ter uma visão adulta sobre esse tema, em que as diferenças de enfoque entre um governo e o outro não seja tão grande.
IM: Diante do atual cenário político e econômico, qual é o seu grau de otimismo em relação ao futuro do Brasil? Acredita que o país seguirá a mesma tendência da Argentina, Estados Unidos e outros, elegendo um governo à direita?
FG: Eleger governos à direita pode ser bom ou não, dependendo do tipo de direita. Creio que será bom para Alemanha ter escolhido o Merz, por exemplo. Já a escolha do Trump, provavelmente se revelará um desastre para os EUA e para o mundo. Sem falar do que significam expressões mais radicais, como o Vox na Espanha ou Le Pen na França. O ponto chave é: são players que seguem as regras do jogo? Se sim, ok, a alternância faz parte da democracia. É o caso da Georgia Meloni na Itália, com cujas políticas posso não simpatizar, mas que respeita rigorosamente a democracia, como todos os governantes italianos nas últimas décadas. O problema da direita extremada brasileira é que, na passagem de 2022 para 2023, se tentou uma "virada de mesa", que além de ser ilegal, poderia ter tido um desfecho realmente sangrento. Não dá para passar pano nisso, como se tivesse sido um piquenique um pouco selvagem, apenas. O fim dessa história definirá que tipo de democracia o país quer ter. Erros de política econômica são problemas de segunda ordem nesse contexto. No limite, numa democracia, eles demoram quatro anos. Se há uma quebra da normalidade institucional, pode ser necessário depois esperar vinte anos para resolver, como foi o caso do que aconteceu no Brasil depois de 1964. Quanto ao meu grau de otimismo, ele é baixo em relação à segunda metade da década, porque vejo a política brasileira ainda muito associada a figuras do passado, como são Lula e Bolsonaro. Consigo ser mais otimista para a década de 2030, pois vejo novas lideranças surgindo, como Eduardo Paes no Rio ou João Campos em Pernambuco, que são políticos marcados pela capacidade de diálogo, pela moderação e pelo bom senso, atributos dos quais o Brasil tem estado muito carente nos últimos anos.