CNH (Carteira Nacional de Habilitação). (Rodrigo Sanches/Exame)
Instituto Millenium
Publicado em 29 de outubro de 2025 às 21h10.
Última atualização em 31 de outubro de 2025 às 10h14.
Por Nycollas Liberato*
No balcão do Detran, a fila anda devagar e um rapaz repete no celular as placas do simulado. Ele sabe que, no fim, o que conta é passar na prova, mas precisou cumprir horas de aula que pouco conversam com sua rotina. Se o Estado já mede o resultado, por que impor um único método de preparo? A proposta do governo, acabando com a obrigatoriedade de fazer autoescola para obter a carteira de motorista, pretende trocar ritos por competência medida em exames, e deixa explícito que a escolha do caminho volta para o candidato, sem extinguir as escolas. O secretário Adrualdo Catão fala em democratizar o acesso e reafirma que as avaliações médica, psicológica, teórica e prática seguem obrigatórias.
Hoje, o modelo exige 45 horas teóricas e 20 práticas. Essa formatação criou uma clientela cativa por lei e ancorou o preço no pacote, não no aprendizado. O projeto em debate permite estudar por conta, contratar uma autoescola ou buscar um instrutor autônomo credenciado. Não é um salto no escuro, é retirar o monopólio do percurso e reforçar o crivo do resultado. O custo atual, segundo o próprio governo, fica em torno de R$ 3 mil a R$ 5 mil. É um valor que empurra a primeira habilitação para mais tarde e empurra parte da população para fora da legalidade. Catão estima que cerca de 20 milhões de brasileiros dirigem sem habilitação, um número brutal que não se resolve com mais carimbo, e sim com porta de entrada acessível e prova honesta. Ao abrir o preparo e manter exames, o projeto mira exatamente nesse gargalo.
O setor reagiu com a cifra de 300 mil empregos ameaçados. O número, repetido por entidades representativas, funciona como alarme, mas carece de metodologia pública unificada. O que a norma discute não é proibir o trabalho de ninguém, é acabar com a clientela garantida por obrigação legal. Empregos não desaparecem quando a obrigação cai, apenas mudam de lugar. As boas autoescolas retêm alunos por mérito e preço, enquanto parte dos profissionais migra para o formato autônomo, com credenciamento digital, reputação e nota pública. O próprio desenho prevê instrutor credenciado pelos Detrans e identificação na Carteira Digital de Trânsito. É transição de emprego, protegido por decreto, para serviço escolhido por valor percebido.
Há um dado incômodo que raramente vira manchete. Quanto mais camadas obrigatórias, maior o nicho para intermediação e fraude. Em 2025, o Detran de São Paulo cassou 121 autoescolas por irregularidades. Não é atestado de culpa coletiva, é diagnóstico de incentivos. Um processo simples, com avaliação robusta e auditável, desloca o esforço de vigiar salas e diários para vigiar o que interessa, a integridade da prova e a competência do candidato.
Outro ganho está no tempo. Quem já precisou da CNH para começar a trabalhar conhece o custo invisível do calendário engessado. A proposta abre caminho para a oferta mais frequente de exames e preparação sob demanda. Menos espera significa menos desistência no meio do caminho. Quando o governo fala em redução de até 80% do custo total, o recado é que concorrência e formatos flexíveis derrubam a conta, sem mexer no que é inegociável,o exame público. Isso interessa, especialmente, a quem mora longe de centros com CFCs e gasta mais com deslocamento do que com conteúdo.
O texto em consulta também organiza a porta de entrada digital. A abertura do processo pode ser feita no site da Senatran ou pela Carteira Digital de Trânsito; o conteúdo teórico pode vir de CFCs, de EAD credenciado ou da própria Senatran; o instrutor autônomo ganha trilha de formação e credenciamento. Essa arquitetura reduz custos de transação e amplia capilaridade. Em vez de empurrar todos para o mesmo balcão, o Estado estrutura o exame, padroniza critérios e torna visível quem ensina e como ensina. O cidadão compara, escolhe e paga sabendo o que recebe.
O medo de uma corrida ao atalho perde força quando lembramos que a régua continua pública. O candidato seguirá obrigado a provar que sabe circular, interpretar sinalização, controlar o veículo e respeitar regras. A primeira habilitação continua probatória por um ano, com perda do documento em caso de infrações graves. O que muda é o incentivo: menos relógio de sala, mais foco no desempenho.
A informalidade, hoje alimentada por um processo caro e lento, tende a recuar quando a porta de entrada é menos estreita. Baratear e flexibilizar derruba essa barreira. Regularizar milhões de pessoas não é premiar o erro, é alinhar incentivo com responsabilidade. O Estado mantém a régua do exame e a vigilância sobre a fraude; a sociedade ganha liberdade para escolher como aprender; o mercado deixa de ser reserva cativa e volta a disputar preferência. Se é isso que queremos de um serviço, pagar por valor e não por obrigação, talvez devêssemos começar pela carteira de motorista.
* Portfolio Associate Director no Students For Liberty e fundador/CEO do Raízes da Liberdade, ONG focada em mobilidade social e regularização fundiária. Membro do Instituto Liberdade e Conselheiro do Instituto Atlantos, é especialista em Teoria Política e Liderança (Universidad de Los Andes), com formação militar na AMAN e graduando em Administração na UFRGS.