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BRICS Pay: integração financeira ou instrumento de poder? 

Desenvolvida com o objetivo declarado de facilitar as transações entre os membros do bloco, a ferramenta demonstra ter por trás interesses geopolíticos

Foto de família com os líderes do Brics, no Rio de Janeiro (Pablo Porciúncula/AFP)

Foto de família com os líderes do Brics, no Rio de Janeiro (Pablo Porciúncula/AFP)

Wesley Reis
Wesley Reis

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Publicado em 23 de setembro de 2025 às 20h18.

Nas últimas semanas, tivemos a notícia de que se encontrava em fase final de testes técnicos o sistema de pagamentos transfronteiriços do BRICS, bloco de países emergentes, denominado, não por acaso, BRICS Pay. A plataforma, conforme tem sido divulgado, tem como objetivo principal reduzir a influência do dólar americano nas transações internacionais, sobretudo entre os países-membros. O sistema vem sendo desenvolvido sob um modelo descentralizado de mensagens fronteiriças (Decentralized Cross-border Messaging System), que dispensa a infraestrutura tradicional do SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication), uma cooperativa internacional que fornece uma rede de mensagens financeiras seguras, utilizada por mais de 11 mil instituições em mais de 200 países. Mas afinal, quais seriam as razões concretas para que o BRICS busque substituir uma plataforma tão amplamente consolidada? 

Para responder a essa questão, é necessário recuar às origens do bloco. A sigla BRIC (Brazil, Russia, India e China) foi cunhada em 2001 pelo economista do Goldman Sachs, Jim O’Neill, em um relatório que destacava o potencial de crescimento desses quatro países em contraste com as economias avançadas. O agrupamento, que começou como um mero rótulo analítico, rapidamente se transformou em um fórum político-diplomático: a partir de 2006–2009, os quatro passaram a promover cúpulas próprias, às quais a África do Sul (South Africa) se juntaria em 2010, dando origem oficial ao BRICS. Desde então, o bloco passou a institucionalizar encontros, declarações conjuntas e iniciativas próprias, como o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), conhecido como Banco do BRICS, atualmente presidido pela ex-presidente Dilma Rousseff. No entanto, ao longo dos anos, e especialmente no período recente, o BRICS transformou-se em algo muito além disso. 

As mudanças políticas e econômicas em China e Rússia ao longo das últimas duas décadas foram determinantes para essa metamorfose. A China, após o crescimento acelerado sob Hu Jintao, experimentou sob Xi Jinping um nível de centralização política inédito desde Mao. Já a Rússia, liderada no início dos anos 2000 por um ainda pouco conhecido Vladimir Putin, que, em seus primeiros anos, cultivava certa expectativa reformista no pós-União Soviética, descambou para o regime autoritário e agressivo que hoje invade vizinhos e desafia abertamente a ordem internacional. 

A esse processo soma-se a recente ampliação do bloco, com a entrada de seis novos países (Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã), além da adesão de outros dez (Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Malásia, Nigéria, Tailândia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã) na condição de parceiros. A ampliação, contudo, ocorreu sob a influência crescente da China, que consolidou o BRICS como um instrumento de contrapeso ao Ocidente que representa 45,2% da população, 39,3% da produção industrial e 36,7% do PIB globais. 

Assim, o que nasceu como um grupo com pretensões de articulação econômica hoje se converte, em grande medida, em um aglomerado de regimes pouco afeitos à democracia, para não dizer abertamente autoritários, que orbitam a direção de Pequim e se prestam, muitas vezes, ao papel de massa de manobra em sua disputa sistêmica com o Ocidente. 

É nesse contexto que se consolidou o projeto de desenvolvimento de um sistema de pagamento entre as nações do BRICS, tendo como ponto de partida o Novo Banco de Desenvolvimento. Desde sua criação, em 2015, uma das principais metas da instituição foi permitir maior integração dos sistemas financeiros e monetários do bloco sem a utilização do dólar. 

A criação desse novo sistema de pagamento foi descrita como algo semelhante ao Pix. Aliás, o método de pagamento brasileiro é apontado como exemplo de infraestrutura com potencial para integração a sistemas internacionais de pagamentos instantâneos. Entretanto, questões de governança ainda dificultam essa agregação, sobretudo as diferenças regulatórias entre países no que se refere à tributação e à prevenção à lavagem de dinheiro.  

O uso do BRICS Pay para facilitar transações entre países membros em suas moedas locais seria uma alternativa mais simples e viável do que a criação de uma moeda única, hipótese defendida pelo presidente Lula em encontro do bloco realizado no Rio de Janeiro, em julho. A inviabilidade dessa proposta decorre da necessidade de acordos multilaterais entre países com realidades econômicas muito díspares, além do risco de gerar um desequilíbrio estrutural em favor da economia mais forte do grupo, a China. Segundo dados do sistema SWIFT, o renminbi (moeda oficial chinesa) já responde por 50% do comércio intra-BRICS. 

No entanto, o que se pode depreender desse movimento vai além das questões meramente econômicas entre os membros do bloco. Um ponto decisivo para que as negociações sobre o BRICS Pay avançassem de forma mais célere partiu justamente de um dos países mais interessados em sua adoção em substituição ao SWIFT: a Rússia, durante sua presidência rotativa do bloco, em 2024. Após a invasão da Ucrânia em 2022, uma das consequências práticas das sanções aplicadas contra Moscou foi o banimento da Rússia da plataforma, transformando-a em pária perante o sistema financeiro global. Ainda assim, o BRICS, sobretudo China e Índia, continuam realizando transações em suas próprias moedas, o que tem contribuído diretamente para o esforço de guerra russo. Nesse sentido, a implementação do BRICS Pay permitiria a Moscou ampliar suas relações comerciais e, por consequência, os recursos disponíveis para sustentar sua campanha militar. 

Para a China, o sistema não apenas reforça sua influência sobre o próprio Putin, mas também amplia sua capacidade de projeção de poder sobre os demais membros do bloco. Como maior mercado entre os BRICS, Pequim busca elevar o peso internacional de sua moeda, posicionando-se como contraponto à hegemonia do dólar. Trata-se, entretanto, de um desafio colossal: aproximadamente 90% das transações cambiais globais e 60% das reservas internacionais ainda envolvem a moeda americana. Muitos países até demonstram insatisfação com essa dependência, mas nenhum encontrou, até o momento, um substituto capaz de rivalizar com o dólar. 

Do ponto de vista do Brasil, é evidente que qualquer sistema descentralizado voltado à redução de fricções nas transações, à diminuição de custos e ao aumento da eficiência representa um ganho concreto para importadores e exportadores, independentemente dos volumes transacionados. Contudo, permanece o risco de captura política do sistema por Pequim, como já se observa no próprio funcionamento do bloco. O Brasil não pode ignorar esse risco. Sua participação tanto no BRICS quanto no BRICS Pay expõe o país a alinhamentos automáticos com governos autoritários, afastando-o do equilíbrio saudável que durante décadas marcou a diplomacia brasileira. Soma-se a isso a guerra comercial em curso e o perigo de nos distanciarmos ainda mais dos Estados Unidos, um parceiro histórico. Ao contrário da postura adotada pelo atual governo frente às negociações tarifárias com Washington, o Brasil deveria buscar construir pontes com uma nação democrática e culturalmente mais próxima, em vez de se deixar reduzir à condição de peça estratégica em projetos de regimes de escasso apreço pela democracia, que ao fim e ao cabo, sob o pretexto de substituir a dependência do dólar, substituiria uma hegemonia por outra.