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“Brasil não precisa aderir apenas a um ou outro bloco", analisa Carlos Poggio sobre cúpula dos BRICS

Instituto Millenium conversou com o pesquisador em Relações Internacionais, Carlos Gustavo Poggio, sobre o fórum que ocorre na África do Sul

Carlos Gustavo Poggio, pesquisador em relações internacionais (Instituto Millenium/Divulgação)
Carlos Gustavo Poggio, pesquisador em relações internacionais (Instituto Millenium/Divulgação)

Enquanto ocorre a cúpula dos BRICS em Joanesburgo, na África do Sul, o mundo aguarda a definição de questões estratégicas que poderão moldar o presente e o futuro deste influente fórum de países. As polêmicas abrangem desde a ausência do presidente russo Vladimir Putin, devido a um mandado de prisão emitido pelo Tribunal Penal Internacional, até a possibilidade de ampliação do bloco com a adesão de novos membros. A cúpula promete ser um campo fértil para debates e negociações. Outros assuntos cruciais, como a busca por alternativas ao dólar nas trocas comerciais entre os países membros, também estão na agenda. 

Para elucidar esses complexos temas, o Instituto Millenium conversou com Carlos Gustavo Poggio, pesquisador em relações internacionais. Poggio é professor do Departamento de Ciência Política do Berea College, em Kentucky, nos EUA; Ph.D. em Estudos Internacionais pela Old Dominion University, e Mestre em Relações Internacionais pelo programa de pós-graduação San Tiago Dantas. Ele é autor dos livros "Brazil, the United States, and the South American Subsystem" e "O pensamento neoconservador em política externa nos Estados Unidos", além de ter publicado em dezenas de periódicos acadêmicos na área de relações internacionais. 

A entrevista que se segue explora essas questões em profundidade, examinando os interesses estratégicos do Brasil, a possibilidade de diluição do poder dos membros atuais com a expansão, e a complexa dinâmica de trabalhar dentro de um bloco composto por regimes políticos diversos. Poggio oferece uma análise perspicaz e matizada que ajuda a contextualizar o momento atual dos BRICS e o que está em jogo na cúpula que tem início nesta terça-feira, 22 de agosto. 

Instituto Millenium: Considerando a potencial expansão dos BRICS para países vistos como hostis ao Ocidente ou autoritários, como a possível adesão de nações como Irã e Venezuela, como isso poderia afetar os interesses estratégicos do Brasil e sua tradicional posição de articulador entre o sul global e os países desenvolvidos? 

Carlos Gustavo Poggio: Primeiramente, é preciso entender que a expansão dos BRICS para outros países poderia levar a perda de um dos princípios do bloco, que é a ideia de exclusividade dos membros. Essa exclusividade é algo que importa para o Brasil, pois ajuda a elevar o perfil internacional do país, o tornando um ator global mais importante. 

Para entender a motivação de cada país nos BRICS, é preciso ver que, por exemplo, a Índia buscou contrabalançar a China através de uma aproximação com a Rússia. A China, por sua vez, tem interesse em ampliar seu perfil internacional, e os BRICS cumprem um papel importante nesse sentido. Para a Rússia, os BRICS foram vistos como um bloco anti-Ocidente, algo que pode ser um problema se o bloco adotar uma postura muito anti-Estados Unidos. 

A ampliação do bloco poderia transformar os BRICS em algo semelhante ao G77, da época da Guerra Fria, ou ao movimento dos não alinhados. Por um lado, tornaria-se um bloco muito mais amplo, mas diluiria o poder de países como o Brasil e a África do Sul. Sobre países hostis ao Ocidente, não acho que isso afetaria diretamente o Brasil, a menos que os BRICS adotassem uma postura muito anti-Ocidental. Mas, a diluição do poder dos BRICS poderia trazer problemas em termos de representação e impacto. 

IM: Muitos argumentam que o impacto tangível do BRICS no Brasil, em termos de comércio e cooperação, não é claro, especialmente quando comparado a outros blocos ou acordos, dos mais abrangentes, como a União Europeia, aos dedicados a assuntos específicos, como o recente Pacto de Proteção das Florestas Tropicais. Qual é sua avaliação dos benefícios diretos da participação brasileira nos BRICS? 

CGP: A questão do impacto tangível dos BRICS no Brasil é complexa. O BRICS é um fórum, um grupo muito aberto, não uma aliança formal. O principal benefício para o Brasil é, em certa medida, elevar o perfil internacional do país. O Brasil é um país que está às margens do sistema internacional, mas é um poder regional e utiliza os BRICS para alavancar sua presença global. 

Em relação a outros membros, a China, por exemplo, já teve o objetivo de ampliar seu perfil internacional através dos BRICS, mas agora o seu peso é muito mais importante, e a perspectiva chinesa mudou. A China talvez seja o país mais interessado em ampliar os BRICS, enquanto países como a África do Sul resistem à adesão de outros países. 

Em resumo, os benefícios diretos da participação brasileira nos BRICS estão ligados principalmente à elevação do perfil internacional do Brasil. É um mecanismo que, embora não tenha o impacto tangível de blocos como a União Europeia, ainda serve aos interesses estratégicos do Brasil em termos de posição global. A expansão para incluir mais membros, no entanto, poderia diluir esses benefícios e alterar a natureza e os objetivos do bloco. 

 IM: Como o Brasil vê sugestões de substituir o dólar no comércio interno do bloco e qual seria o impacto real disso no fluxo comercial do país com os outros membros? 

CGP: A ideia de substituir o dólar no comércio do bloco é uma abstração e algo muito difícil de se concretizar. A moeda não é simplesmente papel, ela representa a confiança, e o dólar ainda é importante por essa razão. Não vejo condições objetivas para a substituição do dólar nas dívidas de transação comercial entre os países do BRIC. Mesmo a utilização da moeda chinesa não me parece sustentável a longo prazo, especialmente considerando os sinais de problemas econômicos vindos da China. 

Quanto à participação do Brasil nos BRICS, o bloco cumpriu o objetivo de reforçar a ideia do Brasil como um ator global. O Brasil não precisa necessariamente aderir a um ou outro bloco, e pode aproveitar a disputa entre a China e os Estados Unidos para obter benefícios. Uma política de enfrentamento à China ou aos Estados Unidos e União Europeia não nos interessa. É importante adotar estratégias políticas externas que considerem a realidade, como, por exemplo, não ignorar a China, nosso principal parceiro comercial. Os BRICS podem se encaixar nessa noção se forem usados de forma estratégica e inteligente pelo Brasil. 

 IM: O BRICS é composto por nações com regimes políticos diversos, desde democracias até regimes mais fechados. Qual é o impacto da participação brasileira em um bloco com essa diversidade de governança e como isso influencia a retórica doméstica adotada pelo governo brasileiro de defesa da democracia? 

CGP: A participação do Brasil em um bloco com diversidade de governança, como os BRICS, não me parece um problema. Essa preocupação é mais comum na perspectiva norte-americana, mas até mesmo os Estados Unidos mantêm relações com países que não seguem estritamente os princípios democráticos. 

No caso do Brasil, adotar uma visão idealista de política externa, em que valores morais são colocados acima de questões concretas e materiais, não funciona. Enquanto países desenvolvidos podem se dar ao luxo de subordinar sua política externa à defesa de valores como democracia e direitos humanos, o Brasil não pode. Claro, o país deve continuar defendendo esses valores, mas não deve permitir que interfiram de forma ideológica em suas relações. 

Por exemplo, essa postura foi tentada com relação à China durante o governo Bolsonaro, sem trazer benefícios. Pelo contrário, foi percebido que não é viável entrar em conflito com nosso principal parceiro comercial. Portanto, eu não vejo problema nessa questão específica da participação em um bloco com tanta diversidade de regimes políticos. 

IM: A recente polêmica envolvendo a presença do presidente russo Vladimir Putin na cúpula em Joanesburgo e a relação da África do Sul com o Tribunal Penal Internacional aponta para tensões diplomáticas no bloco. Como incidentes dessa natureza, envolvendo compromissos internacionais dos países membros com mecanismos multilaterais já existentes, podem influenciar a coesão e o futuro dos BRICS? 

CGP: A tensão relacionada à presença de Putin na cúpula de Joanesburgo e o compromisso com o Tribunal Penal Internacional não é algo novo. Essas tensões entre compromissos internacionais e os interesses dos países em desenvolvimento vão continuar existindo, independentemente da existência dos BRICS. 

O desafio para os membros dos BRICS é construir uma narrativa favorável, levando em conta as diferentes posições no sistema internacional. Com a China ganhando destaque e mudando desde a criação dos BRICS, essas tensões e divergências de interesses dentro do bloco podem aumentar. 

O futuro dos BRICS pode depender de como cada país percebe o benefício para si. Se os membros concluírem que o bloco não responde aos seus interesses, pode haver um gradual enfraquecimento e negligência desse grupo. Isso torna o encontro em Joanesburgo crucial para definir o rumo do bloco. 

A questão da adesão de novos países também é complexa. Por exemplo, a África do Sul pode ser reticente em adicionar novos membros, já que perderia seu status único no continente africano. A proposta para novos membros poderia não colocá-los em pé de igualdade com os originais, e ainda não está claro se isso será aceitável ou quais seriam as vantagens. 

Em suma, as tensões diplomáticas não são novidade e continuarão a existir. A coesão e o futuro dos BRICS dependem de como os membros navegam essas questões, e o encontro em Joanesburgo será vital para essa definição.