Até onde pode ir o Judiciário?
O questionamento surge com a recente decisão da Justiça do Trabalho sobre a Uber
Publicado em 7 de novembro de 2023 às, 14h55.
Última atualização em 7 de novembro de 2023 às, 16h42.
Na semana que passou, foi publicada uma decisão interessante da Justiça do Trabalho. Uma das Varas do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (Minas Gerais) decidiu, em uma Ação Civil Pública, que a empresa Uber não “manipula” jurisprudência ao fazer acordo nas demandas trabalhistas em que se postula a declaração de vínculo de emprego entre motoristas e plataforma.
Trata-se de uma ação movida pelo Ministério Público do Trabalho, em que este acusa a Uber do Brasil de utilização de jurimetria para celebrar acordos e impedir a formação de decisões contrárias a seus interesses, em prejuízo da coletividade. Pela prática que chamou de “manipulação de jurisprudência”, o MPT pediu que a empresa fosse condenada ao pagamento de R$ 1.000.000,00 de indenização por danos morais coletivos. A Uber se defendeu com o argumento de que realiza, tão somente, análise econômica e processual de suas causas, de modo a gerir, com redução de custos e riscos, a sua (já enorme) carteira de processos.
Note-se que não se trata de ação em se discute o mérito em si da existência ou não do vínculo de emprego entre motoristas e plataforma, assunto por si só polêmico e já objeto de milhares de demandas nos nossos tribunais trabalhistas. Trata-se de uma Ação Civil Pública que buscou vedar, indiretamente, a realização de acordos judiciais. Traduzindo-se bem a inusitada pretensão: o MPT almejava impedir decisões de mérito do próprio Judiciário – mais especificamente decisões homologatórias de acordo.
O caso é singular, mas não me cabe comentá-lo meritoriamente. Registro apenas uma observação lateral, antes de chegar à reflexão que aqui nos interessa. A estranheza de que o MPT tenha buscado o Poder Judiciário para tentar obstar atos do próprio Poder Judiciário causou polêmica entre colegas juízes. Alguns viram na atitude uma assombrosa arrogância. Afinal, o MPT não acreditaria apenas saber o que é melhor para as partes que se conciliaram. Ele acreditaria saber o que é melhor para todos os juízes e órgãos colegiados que analisaram e homologaram acordos ou que assim o fariam no futuro – pois esse seria o cenário em que haveria a tal temível não-formação de jurisprudência. E nem se mencione o paradoxo que daí emerge: quando um ente pretende impedir a pacificação social simbolizada pelo sempre tão desejado acordo processual, quem parece estar pretendendo fazer a dita manipulação da jurisprudência?
Volto, contudo, à decisão-tema deste artigo para celebrar a sua singeleza genial.
Esta consiste no fato de que a juíza prolatora da decisão nos lembrou em poucos parágrafos qual deve ser o papel do Judiciário: garantir os direitos individuais e dirimir conflitos, buscando a pacificação social, da qual a conciliação das partes é expressão máxima.
Na sequência a colega ainda adverte que a conciliação é de suma importância justamente porque, além de resolver o processo de forma célere e pacífica, representa a sentença dada pelas partes e não imposta pelo juiz. E é nesse ponto em que se demonstra a clareza do papel que o Estado, neste caso o Estado-Juiz, deve ter na sociedade e quais devem ser os limites do exercício da liberdade por parte dos particulares.
Vale dizer, e digo eu, o papel do Estado é acessório, supletivo. A primazia deve ser dada à escolha dos particulares.
Mais do que isso, quando o Judiciário diz em termos específicos que a UBER pode usar jurimetria para fazer acordos judiciais (nas palavras da colega, “os operadores do direito não só podem, como devem avaliar as chances de êxito para, assim, sugerir a melhor estratégia”), ele está nos lembrando dos termos gerais da convivência democrática: não cabe ao Estado vedar o exercício de um direito, sobretudo do direito de se portar em juízo elegendo uma das opções estabelecidas pela própria lei.
Contudo, o que talvez nem os procuradores do MPT tenham se dado conta, tão acostumados que estamos com a reversão da normalidade, é que a premissa da qual partiram pressupõe um escrutínio sobre os cidadãos, os particulares, e seus limites de atuação, quando em uma sociedade livre e democrática o normal deva ser sempre o escrutínio dos limites do Estado, ou de quem ele representa.
Afinal, não é à toa que a base do nosso ordenamento jurídico é o Princípio da Legalidade, segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, princípio que rege também a Administração Pública, embora com enfoque próprio. (O princípio da legalidade é, ademais, natural aos seres humanos e ilustro o que afirmo com sua formulação mais cândida, feita por uma criança de seis anos pega numa travessura, segundo me narrou um amigo: “Ué, papai, ninguém falou que não podia. Então, pode.”)
Em tempos em que o ativismo judicial e extrajudicial se tornou regra, decisões que nos lembram o contrato básico da vida livre em um Estado de Direito chamam a atenção. Não deveriam.
Muito progresso faríamos se nossos agentes públicos, em vez de perguntarem-se até onde podem ir os particulares, passassem a se perguntar até onde pode ir o Estado. Em termos de convivência democrática, a simples mudança de perspectiva quanto ao objeto de escrutínio não é pouco. É quase tudo.