"Assédio de Dias Toffoli é um dos mais graves", diz epresentante da Transparência Internacional
Instituto Millenium entrevistou Guilherme France, gerente da Transparência Internacional Brasil
Publicado em 21 de fevereiro de 2024 às, 11h16.
Segundo Guilherme France, Gerente do Centro de Conhecimento Anticorrupção da Transparência Internacional Brasil, a decisão do ministro Dias Toffoli, de mandar investigar a organização, após críticas a sua decisão de suspender multas de empresas condenadas na Lava Jato, gerou preocupações significativas, por ser a mais grave já enfrentada desde 1995, ano de início da divulgação do Índice de Percepção da Corrupção (IPC). Segundo ele: “esse não é o primeiro e não vai ser o último caso de perseguição da TI por atores poderosos, mas foi um dos mais graves até agora”, disse, em entrevista ao Instituto Millenium.
A conversa centrou-se na metodologia do IPC, uma ferramenta essencial para avaliar a corrupção no setor público em 180 países, e nos resultados preocupantes para o Brasil, que evidenciam uma queda significativa no ranking. France detalhou como a Transparência Internacional assegura a objetividade e a confiabilidade do IPC, apesar das críticas à sua metodologia, e discutiu os principais fatores que contribuíram para a deterioração da percepção da corrupção no Brasil. A entrevista também abordou as reações do governo brasileiro ao índice, com France enfatizando a importância do diálogo construtivo entre a Transparência Internacional e as instituições para promover a transparência e combater a corrupção eficazmente.
Instituto Millenium: O Índice de Percepção da Corrupção é uma ferramenta que permite avaliar e comparar a corrupção no setor público de 180 países. Poderia explicar como o IPC é compilado, quais são os critérios de avaliação, e por que é uma referência importante para entender a corrupção em um contexto global? Além disso, como a Transparência Internacional assegura a objetividade e a confiabilidade de seus dados, especialmente diante das críticas sobre sua metodologia?
Guilherme France: Bom, medir a corrupção é notoriamente difícil. Então, o Índice de Percepção da Corrupção representa um caminho possível para esse esforço. Existem outros caminhos, muitos deles também explorados pela Transparência Internacional por meio de outros mecanismos e indicadores.
O índice busca avaliar a percepção de pessoas que interagem continuamente com o setor público e têm conhecimento detalhado sobre o funcionamento da máquina pública, em relação ao nível de corrupção em cada país. Criado em 1995, é o índice mais antigo do tipo, cobrindo hoje 180 países e jurisdições. Ele passou por processos contínuos de revisão e validação; por exemplo, em 2012, houve uma modificação na metodologia, fazendo com que os resultados sejam comparáveis somente a partir dessa data. Recentemente, em 2018, o índice foi submetido a uma auditoria que validou seus objetivos e resultados.
Atualmente, é descrito como um "índice de índices", pois leva em consideração diversas pesquisas globais realizadas por instituições renomadas, como a The Economist, o Fórum Econômico Mundial e o Varieties of Democracy, entre outros. Essas pesquisas incluem questões específicas sobre corrupção e seus combates, e o índice extrai desses indicadores as informações relativas à corrupção. Portanto, o Índice de Percepção da Corrupção baseia-se principalmente nas opiniões e percepções de especialistas acadêmicos e pessoas de negócios com conhecimento específico, para avaliar a situação de corrupção em 180 países.
IM: Em sua última publicação, o Brasil sofreu uma queda no ranking global e regional, indícios de que a corrupção no país enfrenta desafios. Quais foram os principais fatores e eventos que contribuíram para a posição atual do Brasil no ranking? Poderia detalhar como essas condições impactam tanto a percepção internacional quanto a realidade interna do país em termos de integridade e governança?
GF: Claro. O que observamos entre 2022 e 2023 é a continuidade de um processo histórico. Desde o início da série histórica em 2012, é possível verificar que o Brasil tem apresentado uma tendência de queda contínua, perdendo mais de 30 posições e mais de 7 pontos. Essa tendência de declínio e o enfraquecimento dos mecanismos de combate à corrupção são, na verdade, o resultado de um processo histórico. Portanto, não se trata apenas de uma percepção da corrupção; outras formas de avaliação, tanto qualitativas quanto quantitativas, apontam na mesma direção. Além de apresentar os resultados do IPC, que é calculado globalmente, a Transparência Internacional Brasil também busca entender os motivos por trás desses resultados.
Ficou evidente que o processo de desconstrução e enfraquecimento das instituições e marcos legais de combate à corrupção, especialmente durante o governo Bolsonaro, não foi completamente revertido. O processo de destruição desses marcos e instituições pode ocorrer rapidamente, mas sua reconstrução é longa e demorada. Estamos vendo um esforço importante, com avanços significativos no governo federal no primeiro ano do governo Lula, mas ainda faltam mecanismos estruturantes para avançar com políticas nacionais anticorrupção. Além disso, problemas anteriores, como o mecanismo das emendas parlamentares, conhecido como Orçamento Secreto, não só foram mantidos, como ampliados, mesmo com algumas melhorias na transparência.
É crucial reforçar que o combate à corrupção não é responsabilidade exclusiva do poder executivo, mas também do legislativo e do judiciário. Em 2023, apontamos decisões problemáticas do Supremo Tribunal Federal que afrouxaram mecanismos de combate a conflitos de interesse e enfraqueceram ou reverteram decisões de punição a empresas que admitiram atos de corrupção, criticadas também por organizações internacionais como a OCDE.
IM: Recentemente, figuras do governo brasileiro expressaram críticas severas ao trabalho da Transparência Internacional, alegando desinformação e questionando a credibilidade do IPC. Como a organização responde a essas acusações e qual é a importância do diálogo com governos e instituições para a Transparência Internacional?
GF: Existem dois níveis diferentes de críticas e reações que recebemos. Por um lado, a Controladoria-Geral da União reconheceu a importância dos mecanismos de medição da corrupção, apesar das dificuldades de implementação. O ministro da Controladoria-Geral da União apontou, de maneira fundamentada, algumas deficiências do índice de percepção da corrupção.
Respondemos de forma educada e polida no debate público, entendendo que esse debate é legítimo. Reconhecemos que nenhum mecanismo de medição da corrupção é perfeito, incluindo o índice de percepção da corrupção, que tem suas limitações. Por exemplo, o índice foca no setor público e não abrange certas questões privadas, mostrando que todas as ferramentas têm suas restrições. Participamos desse debate público, respondendo a críticas legítimas e contribuindo para a discussão. Entendemos que seria mais produtivo avançar também em debates sobre como enfrentar o problema da corrupção, quais políticas de combate à corrupção o governo federal pretende adotar nos próximos anos. Consideramos essas críticas legítimas dentro de um debate público construtivo.
Por outro lado, recebemos críticas que, além de questionar o índice, duvidavam da legitimidade de nossa atuação como organização da sociedade civil. Essas críticas se tornam problemáticas quando consideramos que muitas das pessoas que hoje ocupam cargos importantes no governo já utilizaram relatórios da Transparência Internacional para criticar o governo anterior. É importante que essas figuras reconheçam a legitimidade das críticas e do papel das organizações da sociedade civil. Não nos incomodamos em ser criticados, seja pela esquerda, pela direita ou por qualquer lado, mas é crucial que aqueles comprometidos com o espaço cívico e a atuação livre da sociedade civil mantenham essa postura, mesmo quando as críticas são direcionadas ao governo.
IM: Considerando tanto o apoio quanto às críticas ao Índice de Percepção da Corrupção, quais são os principais desafios enfrentados pela Transparência Internacional ao utilizar o IPC como ferramenta de combate à corrupção? Além disso, quais vantagens o IPC oferece para a sociedade civil, governos e o setor privado na promoção da transparência e integridade?
GF: O Índice de Percepção da Corrupção (IPC) é mais do que uma ferramenta de pesquisa; é também um meio de mobilização social. O dia do lançamento do IPC se torna uma ocasião em que a corrupção é amplamente discutida. As pessoas refletem sobre o impacto da corrupção em suas vidas, avaliando os avanços ou retrocessos no combate à corrupção em seus países. A Transparência Internacional, presente em muitos países, aproveita essa data, assim como o Dia Internacional Contra a Corrupção, em 9 de dezembro, para promover a mobilização. Esse esforço visa mobilizar a imprensa para destacar os problemas existentes, incentivar governos a apresentarem propostas, engajar o setor privado a reconhecer os riscos e seu papel no avanço de políticas de integridade e estimular a sociedade a agir de forma mais organizada e concreta. Isso inclui cobrar ações dos governantes e fortalecer os esforços de combate à corrupção, utilizando mecanismos de transparência para monitorar governos, identificar e denunciar casos de corrupção. Portanto, o lançamento do IPC representa uma oportunidade para os países se mobilizarem no combate a esse problema comum.
IM: A decisão do Ministro Dias Toffoli de abrir uma investigação sobre a Transparência Internacional gerou uma resposta forte da organização, afirmando que não será intimidada. Como essa situação afeta o trabalho e a missão da Transparência Internacional no Brasil? Existem preocupações de que isso possa representar uma tentativa de silenciar ou limitar o escrutínio sobre a corrupção no país? Já tiveram esse tipo de problema em algum outro país?
GF: A decisão do ministro Dias Toffoli ocorreu uma semana após o lançamento do Índice de Percepção da Corrupção. Quando lançamos o índice, mencionei algumas decisões consideradas problemáticas e criticadas em nosso relatório, incluindo decisões específicas do ministro, como a anulação das provas do acordo de leniência assinado pela Odebrecht, agora chamada Novonor, e a suspensão do pagamento de multas do acordo de leniência da J&F (holding do Grupo JBS). Dias depois, o ministro estendeu a suspensão do pagamento das multas também para o acordo de leniência da Odebrecht. Essa sequência de eventos ocorreu logo após as críticas públicas feitas por nossa organização. Não podemos especular sobre as intenções do ministro, mas esse é o contexto.
A decisão gerou preocupações significativas, mobilizando nossos esforços internos de defesa legal e comunicação pública. Estamos nos dedicando a compreender essa forma de assédio judicial contra nossa organização, que não é a primeira e provavelmente não será a última, mas é uma das mais graves até agora. Essa situação possui características peculiares, sem precedentes em outras decisões. Estamos no processo de entender as implicações e consequências da investigação aberta pelo ministro contra nossa organização, baseada em informações previamente desmentidas, não só por nós, mas também pela Procuradoria-Geral da República.
Como mencionado, essa não é a primeira vez que uma seção nacional da Transparência Internacional enfrenta perseguição por opositores políticos ou atores poderosos incomodados com nosso trabalho. Contamos com o apoio do nosso movimento global; muitos países estão ao nosso lado, demonstrando isso por meio de declarações e suporte interno. Seguiremos firmes em nosso trabalho, apesar dos desafios.
IM: Diante dos desafios recentes e da posição do Brasil no último IPC, quais são as estratégias da Transparência Internacional para fortalecer o combate à corrupção no Brasil? Além disso, como a organização planeja engajar-se com o governo, a sociedade civil e outras partes interessadas para promover mudanças positivas e promover a integridade no setor público?
GF: Acreditamos que a melhor maneira de demonstrar o valor do nosso trabalho e a integridade de nossas ações, já atestadas por auditores e procuradores, é continuar nosso trabalho. Seguimos apoiando organizações locais que realizam um controle e fiscalização exemplares das prefeituras. Mantemos nosso trabalho de pesquisa sobre as ameaças enfrentadas por defensores dos direitos humanos e ambientais. Continuamos a investigar os vínculos entre crimes ambientais e corrupção, destacando como a corrupção contribui para a degradação da Amazônia nos últimos anos. Nosso esforço se estende à mobilização de parlamentares e da sociedade para contribuir com o avanço de projetos de lei e propostas legislativas que fortaleçam o combate à corrupção. Motivamos a sociedade a se informar e agir contra retrocessos.
Apesar de decisões recentes e eventos representarem distrações e exigirem nossa dedicação, não vamos parar ou desistir. Seguiremos firmes em nosso propósito, pois entendemos que a corrupção é um mal que afeta direitos fundamentais e prejudica, principalmente, as parcelas mais vulneráveis da população. Se não enfrentarmos a corrupção, são essas pessoas, que mais dependem do Estado, que sofrerão as maiores consequências. Portanto, não temos o direito de cessar nosso trabalho. Continuaremos nossa missão.