As Big Techs, o antitruste e o PL 2.768: para onde vamos?
As Big Techs nasceram com a IA, demandado atenção dos governos, em geral, e das autoridades antitrustes, em particular
Publicado em 7 de fevereiro de 2024 às, 11h20.
A revolução 4.0 está mudando os modelos de negócios em velocidade, alcance e impacto sem precedentes no mundo. Neste contexto, as Bigtechs (BTs) nasceram com a IA, demandado atenção dos governos, em geral, e das autoridades antitrustes, em particular. A preocupação é global e meritória. A Europa e a China têm atuado desde os anos 2000 e os EUA, a partir de 2021. No Brasil, o CADE arquivou as investigações relativas às BTs, mas o PL 2768/22 pode torná-lo mais ativo, atuando também de forma ex-ante e ao lado de outros órgãos reguladores, como Anatel, Bacen, Secom e ANPD. Trata-se de criar normas para coibir práticas anticompetitivas pelas BTs, com a colaboração de diversos atores setoriais.
De autoria do deputado João Maia, o PL 2768 foi apresentado em 10/11/22 e dispõe sobre a organização e a operação das plataformas digitais no Brasil. A relatora, a deputada Any Ortiz, fez importantes discussões em 2023 e no dia 19/01/24 o Ministério da Fazenda abriu consulta pública para obter contribuições para uma futura regulação. Seria oportuno que o debate acontecesse concomitantemente no executivo e legislativo, a exemplo de como ocorreu com a PEC45 (hoje, EC132).
Na Europa, Margrethe Vestager (Comissária Europeia para a Concorrência) foi pioneira em trazer o tema à mesa e tem sido implacável, impondo as maiores multas por violações antitruste já fixadas pela autoridade. Google, Microsoft, Intel, Qualcomm, dentre outras, já foram multadas (Ver Antitruste 4.0 de Schmidt, Jota, 2018, e Notícias do Norte de Salgado, Webadvocacy, 2023). Diversas jurisdições também têm sido proativas, como o Reino Unido e a Alemanha (ver Leis de regulação concorrencial de plataformas digitais de Fernandes, Consultor Jurídico, 2022). Essas ações foram fortalecidas com o Digital Market Act (DMA), lei aprovada pela Comissão Europeia em set/22, cujo objetivo é fomentar a competição leal nos mercados digitais e garantir o acesso não discriminatório. Este marco, assim, complementa, não altera, as leis antitrustes europeias. É isso que o Brasil precisa.
O DMA almeja limitar o poder das BT (GateKeepers), que detêm um gigantesco volume de informação e que podem (se não houver restrição) diminuir o bem-estar social. O DMA não diz que o alvo é uma BT, mas, através dos thresholds, a seleção é feita. A sua concepção é simples: há uma lista de obrigações (“DOs”) e proibições (“DON’Ts”). É, assim, uma lei objetiva e “rápida”, do tipo “per se”, não requerendo, portanto, uma análise “pela regra da razão”, que pode demorar anos para ser concluída e, aí, afetar perversamente na dinâmica dos mercados, evitando a entrada de empresas menores e/ou discriminando usurários, dada a velocidade das ações e reações dos competidores maiores.
Na China, o governo aplicou multas nas BATs (Baidu, Alibaba e Tencent). Lá, como os bancos não têm participação de mercado expressiva, as BTs fazem este papel. Dentre as várias preocupações antitruste, uma delas se refere à participação de mercado das BTs no mercado de armazenamento de dados nas nuvens, que representa mais de 45% da receita das BTs. É assustador. Qual é exatamente o core business dessas BTs? Amazon, por exemplo. A percepção do consumidor é de que ela iniciou vendendo livros on line e depois se expandiu pelo mercado varejista. Será? A Amazon, com a AWS, tem 34% do mercado de armazenamento de dados nas nuvens mundial!
Não por menos, BIS (Bank for International Settlments), FMI, dentre outros reguladores globais comungam das mesmas preocupações asiáticas, especialmente no tocante às empresas GAFAM (Google, Apple, Facebook/Instagram/Whatsapp, Amazon e Microsoft). Um questionamento que fazem é se as BTs se encaixam como Global Systemically Important Financial Institutions e se há risco sistêmico. De fato, Amazon, Microsoft e Google detêm mais de 65% do mercado de armazenamento de dados, sendo que todas atuam em diversos segmentos do mercado financeiro (meios de pagamento, concessão de crédito, seguro etc.) e têm valor de mercado (entre U$1tri e U$3tri) 4 a 6 vezes maior do que o do maior banco americano (JPM). Além disso, há concentrações dos três tipos: conglomeral, vertical e horizontal.
Nos EUA, houve uma coincidência em 2021. Por um lado, o congresso propôs o American Innovation and Choice Online Act (Aicoa), que serve de estudo para o Brasil. Por outro, o FTC deu uma guinada de 180º, quando Lina Khan foi nomeada como Presidente do Federal Trade Commission (FTC), em julho desse ano. A jovem advogada de Yale, conhecida por suas ácidas críticas acerca da pusilanimidade do FTC com respeito às BTs, passou a agir com o espírito mais aguerrido para inibir práticas abusivas, especialmente nos mercados das BTs (ver “A vitória antitruste de Biden” de J. Stiglitz, Valor, 2024; “Hipster Antitrust” de Schmidt, Jota, 2018, “Quem tem medo de Lina Khan?” de Klein, Domingues e Gaban, Justiça do Direito, 2021 e “Lina Kahn e sua corrida contra o tempo” de Salgado, Jota, 2023).
De fato, até 2021 nada havia ocorrido nos EUA. Talvez porque as maiores BTs fossem americanas, talvez porque haja certa confusão entre ser pro-negócio e pro-mercado, deias enfatizadas por Luigi Zingales nos livros “For the People” e “Saving Capitalism from the Capitalists”. Hoje, conquanto o FTC (ainda) esteja perdendo nos Tribunais Americanos, Khan incontestavelmente tem levado argumentações que estão fazendo os juízes refletirem sobre o velho olhar antitruste americano, principalmente no mercado das BTs. Talvez ela esteja esticando a corda demais, mas o fato é que Khan está invertendo o jogo aos poucos. É como se ela estivesse querendo trazer para a era da Indústria 4.0 o espírito dos dois principais marcos americanos: o Sherman Act, de 1890, e o Clayton Act, de 1914.
Diante da experiência internacional, especialmente do DMA, o PL 2768 pode ser aperfeiçoado. Seu art. 10, p.e., traz quatro obrigações. Além de genéricas, somente a ANATEL consta como órgão que regulamentará tal lei e que será o responsável por seu enforcement. A Comunidade Europeia, diversamente, estabeleceu um grupo com diversos reguladores, pois, como uma BT atua em diversos mercados, a visão de cada órgão complementa a análise. Essa é a sugestão de alguns acadêmicos, como o de Feyen et.al.,2021, A policy triagle for BigTechs in Finance.
Em suma, dado que existem falhas de mercado, regular é necessário. O empresário é pro-business. O governo é pro-market. Na era de alta velocidade, o governo precisa agir rápido. Se for lento, pode causar graves falhas de governo. Neste caso, um DMA tipo “per se” e envolvendo diversos reguladores parece ser o mais adequado. Ou não. Bora debater o PL 2768.