“Arcabouço é inconsistente e incapaz de garantir estabilidade fiscal”, avalia Marcos Mendes
Instituto Millenium entrevistou um dos criadores do Teto de Gastos sobre as regras aprovadas pela Câmara nesta terça
Instituto Millenium
Publicado em 23 de agosto de 2023 às 16h36.
Última atualização em 24 de agosto de 2023 às 12h48.
O Brasil se depara com uma transformação significativa em sua estrutura fiscal com a aprovação do Novo Arcabouço Fiscal, batizado pelo governo como "Regime Fiscal Sustentável", que substituirá o Teto de Gastos em vigor desde 2016. A mudança legislativa, apoiada por 379 votos a 64 na Câmara de Deputados, exclui o Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF) e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) das novas regras fiscais. Agora aguardando a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a legislação tem o potencial de remodelar a política econômica do país.
Neste contexto, o Instituto Millenium conversou com o especialista em finanças públicas Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper e organizador do livro 'Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil'. Mendes não poupa críticas ao Novo Arcabouço, considerando-o inconsistente e incapaz de garantir a estabilidade fiscal. Ele alerta para o perigo da expansão das despesas governamentais e a proposta de aumento da arrecadação como potenciais obstáculos para o crescimento da atividade econômica.
A entrevista aprofunda-se nas nuances da recente aprovação, explorando questões como a complexidade do novo regime, possíveis fragilidades e aberturas para "interpretações criativas". Mendes também expressa sua preocupação com manobras governamentais e medidas que podem retornar à contabilidade criativa, caso das famosas pedaladas fiscais. O diálogo oferece uma visão crítica e esclarecedora das mudanças fiscais iminentes e suas potenciais implicações para o futuro do Brasil.
Instituto Millenium: Em audiência pública na Câmara de Deputados, você indicou ser a favor da aprovação do arcabouço, apesar de apontar várias críticas. Poderia explicar a razão desse otimismo em torno da aprovação desse mecanismo?
Marcos Mendes: Não se trata de otimismo. Pelo contrário, acho o arcabouço inconsistente e incapaz de garantir estabilidade fiscal. O que eu falei naquela ocasião é que a decisão pelo uso desta regra estava tomada, então não adiantava perder tempo postergando a aprovação. Melhor aprovar logo e gastar o tempo do parlamento com a medida mais importante, que é a reforma tributária.
IM: A sua avaliação sobre o novo arcabouço estar ancorado em alta nas receitas e ter frágeis mecanismos de controle de despesas permanece? Se sim, que tipo de medidas o governo deveria apresentar para demonstrar capacidade de honrar o novo marco?
MM: Sim, permanece. O governo deixou a despesa crescer, não para de aprovar e propor novos gastos, muitos deles permanentes. A despesa dos doze meses terminados em junho, já descontada a inflação, está 10% acima da observada nos doze meses terminados em junho de 2022. Com isso, só faz aumentar o volume de receitas necessário para cumprir as metas de resultado primário.
O governo deveria ter mais comedimento na expansão das despesas. Deveria começar por repensar a política de aumentos reais para o salário mínimo, que não têm poder de chegar ao mais pobre e têm alto custo fiscal. Programas antiquados deveriam ser descontinuados, vinculações de despesas à variação da receita deveriam acabar, benefícios fiscais deveriam ser revistos.
Isso, contudo, conflita com os ideários do governo atual e dificilmente será feito. Resta a saída do aumento de receitas, mas na dimensão que está sendo proposto, esse aumento no nível da arrecadação de 2,5 pontos percentuais do PIB será um veneno para a atividade econômica.
IM: O governo assegura que a reforma tributária terá efeito fiscal neutro, mas precisa aumentar a arrecadação para cumprir com o Arcabouço Fiscal. Em sua opinião, o governo aumentará a carga tributária ou recorrerá a outros procedimentos, considerando que já demonstrou abertura para usar práticas contábeis questionáveis?
MM: Na reforma tributária, o compromisso é que a CBS e o IBS, que substituirão PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS, não arrecadarão mais do que esses impostos atuais. Haverá um período de transição em que a alíquota da CBS e do IBS será calibrada para chegar a essa neutralidade. Acredito que este compromisso será cumprido, até porque haverá a participação do Senado e do TCU na calibragem da alíquota.
Em paralelo, o governo está correndo atrás de receitas, propondo aumentar a tributação sobre a renda das pessoas físicas e jurídicas, bem como sobre o patrimônio, seja propondo tributos novos, seja fechando brechas jurídicas ou procurando induzir o pagamento de tributos sob contestação no CARF.
O quanto o governo vai conseguir de receita com essas medidas, vai depender da disposição do Congresso para aprovar aumentos de tributação ou do processo decisório do CARF e do efetivo resultado das ações judiciais sobre a arrecadação.
Tenho dificuldade de ver o governo conseguindo toda a receita necessária com as propostas já anunciadas. E temo que a tramitação dessas medidas arrecadatórias acabe atrapalhando a aprovação da reforma tributária.
Mas milagres acontecem de vez em quando: se no ano que vem o preço do petróleo e das commodities agrícolas subir muito, a arrecadação crescerá, como ocorreu em 2021 e 2022, ajudando a fechar a conta. Contudo, essas são variáveis exógenas, fora do controle das autoridades fiscais.
IM: A promessa do Teto de Gastos com a transparência de escolhas e prioridades foi cumprida? O que esperar do Arcabouço Fiscal quanto à priorização dos gastos públicos?
MM: O teto de gastos aumentou de fato a transparência das escolhas orçamentárias. Acabou com o truque de superestimar a receita para dizer que havia mais espaço para aumentar despesas. Permitiu uma forte queda da taxa de juros paga pela dívida pública, ao oferecer um horizonte de estabilidade fiscal. Permitiu o gradual retorno das contas para o azul, e teve flexibilidade suficiente para autorizar gastos emergenciais durante a pandemia.
Contudo, o teto não resistiu à realidade política. O sistema político-eleitoral brasileiro e nossas instituições favorecem a escolha de um nível elevado de despesas, com muita preocupação em extrair renda do Estado no presente, e pouca preocupação com as consequências disso para o futuro.
Eu jamais imaginei que, à luz do dia, os políticos seriam capazes de cortar dotações de saúde e previdência para aumentar emendas parlamentares e financiamento de partidos. E foram capazes!
Não é por acaso que temos a mais alta taxa de juros real do mundo, um crescimento pífio e o acúmulo de mazelas sociais.
A ideia de substituir o teto por uma nova regra fiscal veio no âmbito da PEC da Transição, aquela que, de uma só vez, aumentou a despesa pública em 2% do PIB e determinou o fim do teto, após várias outras PECs terem criado furos no teto. A nova regra proposta por aquela PEC foi apenas uma forma de sinalizar que se estava detonando a despesa hoje, mas que amanhã haveria ajuste. Ou seja, algo pouco crível desde a origem.
E, de fato, o arcabouço honrou a sua origem: é uma regra complexa, que não estabiliza a dívida pública e joga enorme carga tributária sobre a sociedade enquanto a despesa cresce à vontade. A sua complexidade parece ter o propósito de esconder que, no fundo, a nova regra também é um teto de gastos (ainda que frouxo). Seria muito mais simples manter o teto e aumentar a taxa de crescimento real da despesa de zero (como era no teto original) para um valor positivo.
IM: Você já indicou que o Arcabouço Fiscal é uma regra complexa. Essa complexidade do arcabouço fiscal pode ser interpretada como uma fragilidade ou uma abertura para interpretações criativas?
MM: À medida que ficarem patentes as dificuldades para cumprir as metas fiscais, vão certamente surgir as interpretações criativas. Na verdade, já estão surgindo manobras. A que mais me preocupa é a notícia de que o Ministério da Fazenda vai “acertar” com a Petrobras a desistência de processos no CARF e o pagamento de R$ 30 bilhões. Ora, temos o acionista controlador prejudicando os minoritários para fechar as contas do governo. Triangulações entre Petrobras, bancos públicos e o Tesouro estiveram no cerne da contabilidade criativa da década passada. Parece que esse jogo vai recomeçar.
Outras medidas já estão aparecendo: sem dar uma explicação sequer, o Ministério do Planejamento pediu para tirar da meta do déficit das estatais o valor de R$ 5 bilhões. A Secretaria do Tesouro fala em transformar precatórios, uma típica despesa primária, em despesa financeira, para não pressionar o déficit primário. A transferência de saldo do PIS/PASEP para o Tesouro, que pelas regras contábeis consagradas não deveria ser registrada como receita primária, está sendo considerada como tal. Uma devolução de depósitos judiciais da Caixa para o Tesouro, que nem tem valor apurado, já consta como receita de R$ 12 bilhões nas contas da STN.
O Brasil se depara com uma transformação significativa em sua estrutura fiscal com a aprovação do Novo Arcabouço Fiscal, batizado pelo governo como "Regime Fiscal Sustentável", que substituirá o Teto de Gastos em vigor desde 2016. A mudança legislativa, apoiada por 379 votos a 64 na Câmara de Deputados, exclui o Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF) e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) das novas regras fiscais. Agora aguardando a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a legislação tem o potencial de remodelar a política econômica do país.
Neste contexto, o Instituto Millenium conversou com o especialista em finanças públicas Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper e organizador do livro 'Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil'. Mendes não poupa críticas ao Novo Arcabouço, considerando-o inconsistente e incapaz de garantir a estabilidade fiscal. Ele alerta para o perigo da expansão das despesas governamentais e a proposta de aumento da arrecadação como potenciais obstáculos para o crescimento da atividade econômica.
A entrevista aprofunda-se nas nuances da recente aprovação, explorando questões como a complexidade do novo regime, possíveis fragilidades e aberturas para "interpretações criativas". Mendes também expressa sua preocupação com manobras governamentais e medidas que podem retornar à contabilidade criativa, caso das famosas pedaladas fiscais. O diálogo oferece uma visão crítica e esclarecedora das mudanças fiscais iminentes e suas potenciais implicações para o futuro do Brasil.
Instituto Millenium: Em audiência pública na Câmara de Deputados, você indicou ser a favor da aprovação do arcabouço, apesar de apontar várias críticas. Poderia explicar a razão desse otimismo em torno da aprovação desse mecanismo?
Marcos Mendes: Não se trata de otimismo. Pelo contrário, acho o arcabouço inconsistente e incapaz de garantir estabilidade fiscal. O que eu falei naquela ocasião é que a decisão pelo uso desta regra estava tomada, então não adiantava perder tempo postergando a aprovação. Melhor aprovar logo e gastar o tempo do parlamento com a medida mais importante, que é a reforma tributária.
IM: A sua avaliação sobre o novo arcabouço estar ancorado em alta nas receitas e ter frágeis mecanismos de controle de despesas permanece? Se sim, que tipo de medidas o governo deveria apresentar para demonstrar capacidade de honrar o novo marco?
MM: Sim, permanece. O governo deixou a despesa crescer, não para de aprovar e propor novos gastos, muitos deles permanentes. A despesa dos doze meses terminados em junho, já descontada a inflação, está 10% acima da observada nos doze meses terminados em junho de 2022. Com isso, só faz aumentar o volume de receitas necessário para cumprir as metas de resultado primário.
O governo deveria ter mais comedimento na expansão das despesas. Deveria começar por repensar a política de aumentos reais para o salário mínimo, que não têm poder de chegar ao mais pobre e têm alto custo fiscal. Programas antiquados deveriam ser descontinuados, vinculações de despesas à variação da receita deveriam acabar, benefícios fiscais deveriam ser revistos.
Isso, contudo, conflita com os ideários do governo atual e dificilmente será feito. Resta a saída do aumento de receitas, mas na dimensão que está sendo proposto, esse aumento no nível da arrecadação de 2,5 pontos percentuais do PIB será um veneno para a atividade econômica.
IM: O governo assegura que a reforma tributária terá efeito fiscal neutro, mas precisa aumentar a arrecadação para cumprir com o Arcabouço Fiscal. Em sua opinião, o governo aumentará a carga tributária ou recorrerá a outros procedimentos, considerando que já demonstrou abertura para usar práticas contábeis questionáveis?
MM: Na reforma tributária, o compromisso é que a CBS e o IBS, que substituirão PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS, não arrecadarão mais do que esses impostos atuais. Haverá um período de transição em que a alíquota da CBS e do IBS será calibrada para chegar a essa neutralidade. Acredito que este compromisso será cumprido, até porque haverá a participação do Senado e do TCU na calibragem da alíquota.
Em paralelo, o governo está correndo atrás de receitas, propondo aumentar a tributação sobre a renda das pessoas físicas e jurídicas, bem como sobre o patrimônio, seja propondo tributos novos, seja fechando brechas jurídicas ou procurando induzir o pagamento de tributos sob contestação no CARF.
O quanto o governo vai conseguir de receita com essas medidas, vai depender da disposição do Congresso para aprovar aumentos de tributação ou do processo decisório do CARF e do efetivo resultado das ações judiciais sobre a arrecadação.
Tenho dificuldade de ver o governo conseguindo toda a receita necessária com as propostas já anunciadas. E temo que a tramitação dessas medidas arrecadatórias acabe atrapalhando a aprovação da reforma tributária.
Mas milagres acontecem de vez em quando: se no ano que vem o preço do petróleo e das commodities agrícolas subir muito, a arrecadação crescerá, como ocorreu em 2021 e 2022, ajudando a fechar a conta. Contudo, essas são variáveis exógenas, fora do controle das autoridades fiscais.
IM: A promessa do Teto de Gastos com a transparência de escolhas e prioridades foi cumprida? O que esperar do Arcabouço Fiscal quanto à priorização dos gastos públicos?
MM: O teto de gastos aumentou de fato a transparência das escolhas orçamentárias. Acabou com o truque de superestimar a receita para dizer que havia mais espaço para aumentar despesas. Permitiu uma forte queda da taxa de juros paga pela dívida pública, ao oferecer um horizonte de estabilidade fiscal. Permitiu o gradual retorno das contas para o azul, e teve flexibilidade suficiente para autorizar gastos emergenciais durante a pandemia.
Contudo, o teto não resistiu à realidade política. O sistema político-eleitoral brasileiro e nossas instituições favorecem a escolha de um nível elevado de despesas, com muita preocupação em extrair renda do Estado no presente, e pouca preocupação com as consequências disso para o futuro.
Eu jamais imaginei que, à luz do dia, os políticos seriam capazes de cortar dotações de saúde e previdência para aumentar emendas parlamentares e financiamento de partidos. E foram capazes!
Não é por acaso que temos a mais alta taxa de juros real do mundo, um crescimento pífio e o acúmulo de mazelas sociais.
A ideia de substituir o teto por uma nova regra fiscal veio no âmbito da PEC da Transição, aquela que, de uma só vez, aumentou a despesa pública em 2% do PIB e determinou o fim do teto, após várias outras PECs terem criado furos no teto. A nova regra proposta por aquela PEC foi apenas uma forma de sinalizar que se estava detonando a despesa hoje, mas que amanhã haveria ajuste. Ou seja, algo pouco crível desde a origem.
E, de fato, o arcabouço honrou a sua origem: é uma regra complexa, que não estabiliza a dívida pública e joga enorme carga tributária sobre a sociedade enquanto a despesa cresce à vontade. A sua complexidade parece ter o propósito de esconder que, no fundo, a nova regra também é um teto de gastos (ainda que frouxo). Seria muito mais simples manter o teto e aumentar a taxa de crescimento real da despesa de zero (como era no teto original) para um valor positivo.
IM: Você já indicou que o Arcabouço Fiscal é uma regra complexa. Essa complexidade do arcabouço fiscal pode ser interpretada como uma fragilidade ou uma abertura para interpretações criativas?
MM: À medida que ficarem patentes as dificuldades para cumprir as metas fiscais, vão certamente surgir as interpretações criativas. Na verdade, já estão surgindo manobras. A que mais me preocupa é a notícia de que o Ministério da Fazenda vai “acertar” com a Petrobras a desistência de processos no CARF e o pagamento de R$ 30 bilhões. Ora, temos o acionista controlador prejudicando os minoritários para fechar as contas do governo. Triangulações entre Petrobras, bancos públicos e o Tesouro estiveram no cerne da contabilidade criativa da década passada. Parece que esse jogo vai recomeçar.
Outras medidas já estão aparecendo: sem dar uma explicação sequer, o Ministério do Planejamento pediu para tirar da meta do déficit das estatais o valor de R$ 5 bilhões. A Secretaria do Tesouro fala em transformar precatórios, uma típica despesa primária, em despesa financeira, para não pressionar o déficit primário. A transferência de saldo do PIS/PASEP para o Tesouro, que pelas regras contábeis consagradas não deveria ser registrada como receita primária, está sendo considerada como tal. Uma devolução de depósitos judiciais da Caixa para o Tesouro, que nem tem valor apurado, já consta como receita de R$ 12 bilhões nas contas da STN.