Aod Cunha comenta as medidas de ajuste fiscal na Argentina
A entrevista aborda também as implicações dessas políticas para as relações comerciais Brasil-Argentina
Instituto Millenium
Publicado em 14 de dezembro de 2023 às 12h36.
Em um momento crítico para a economia argentina, marcado por elevada inflação e desafios fiscais, o governo do recém-empossado presidente Javier Milei anunciou um conjunto de medidas de ajuste econômico. Neste contexto, Aod Cunha, economista e ex-secretário da Fazenda do Rio Grande do Sul, ofereceu uma entrevista ao Instituto Millenium com uma análise detalhada dessas ações. Com experiência em instituições financeiras de renome e em cargos de liderança no serviço público, Cunha avalia os aspectos técnicos das medidas, suas possíveis repercussões e a viabilidade política de sua implementação. A entrevista aborda também as implicações dessas políticas para as relações comerciais Brasil-Argentina, fornecendo uma perspectiva pragmática sobre os desafios econômicos enfrentados pela Argentina e seu impacto regional.
Instituto Millenium: Como o senhor descreveria o estado atual da economia argentina e quais foram os principais fatores que levaram o governo a implementar estas novas medidas econômicas?
Aod Cunha: A economia argentina se deteriorou significativamente no último governo. A inflação ultrapassa 150% no acumulado de 12 meses. O país enfrenta uma recessão, com o PIB caindo mais de 2,5% e índices de pobreza ultrapassando 40% da população. Além disso, o câmbio e os preços relativos estão completamente desalinhados devido a um conjunto de subsídios concedidos ao longo dos últimos anos. Em resumo, a situação é de completa desorganização causada por más políticas macro e microeconômicas.
Há pouco espaço para gradualismo. Os preços devem aumentar ainda mais, e a única forma de se estabilizarem eventualmente é através de uma combinação de forte ajuste fiscal com a crença dos agentes econômicos na exequibilidade do plano, incluindo sustentabilidade política e apoio do FMI.
IM: Poderia nos explicar, em termos gerais, o que compreende o pacote de medidas econômicas anunciado ontem? Além disso, esse pacote representa a totalidade das ações planejadas pelo governo, ou podemos esperar anúncios adicionais de medidas de ajuste no futuro?
AC: O novo governo, por meio do anúncio de medidas do Ministro Caputo, parte de um diagnóstico correto: a origem de vários problemas macroeconômicos da Argentina, incluindo inflação e pobreza, decorre de um persistente e descontrolado déficit público. Se este não for enfrentado rapidamente e na magnitude adequada, nenhum plano será eficaz.
Diante desse diagnóstico, o plano se inicia com um conjunto de reduções de despesas correntes e corte de subsídios. Ademais, considerando a escassez de dólares e o descontrole da taxa de câmbio, foi necessário anunciar uma taxa de câmbio mais favorável aos exportadores e um controle temporário do fluxo de importações.
Não menos importante, medidas compensatórias de transferência de renda para os mais pobres foram anunciadas, tendo em vista o aumento esperado da inflação nos próximos meses.
O anúncio carece de maior detalhamento do impacto estimado de cada medida e, principalmente, de estimativas mais precisas do esforço fiscal. Creio que nas próximas semanas e meses, o governo precisará anunciar novas medidas e ajustar as frentes de esforço fiscal, flutuações de câmbio, preços, financiamento externo e medidas mitigatórias para os mais pobres.
IM: Existe alguma semelhança entre as medidas anunciadas na Argentina e as adotadas no Brasil durante a luta contra a inflação na década de 80? Em particular, o Plano Real brasileiro teve abordagens semelhantes às que estão sendo implementadas agora na Argentina?
AC: Sinto falta de uma visão mais clara sobre como a Argentina enfrentará o movimento inercial de preços em um momento de alta aceleração inflacionária. No caso do Brasil, isso foi bem articulado com o mecanismo da URV.
Por outro lado, sabemos que, ao fixar o câmbio no Brasil em 1994 sem um ajuste fiscal mais rigoroso, foi necessário depois liberá-lo, resultando em um forte aumento das taxas de juros. Somente após 1998/1999, aprofundou-se nas medidas de ajuste fiscal, incluindo a definição de uma meta de superávit primário e a Lei de Responsabilidade Fiscal, tanto no governo federal quanto nos estados. Neste aspecto fiscal, parece que a Argentina já tem clareza da necessidade de maior rigor desde o início.
IM: Como essas medidas econômicas podem afetar o Brasil, especialmente em termos de comércio bilateral? Que tipo de repercussões podemos esperar na economia e nas relações comerciais entre os dois países?
AC: Inicialmente, os exportadores brasileiros podem enfrentar dificuldades, tanto pela deterioração do poder de compra na Argentina quanto pela insuficiência de reservas do Banco Central argentino. No médio e longo prazo, se o plano argentino for bem-sucedido, a situação pode melhorar significativamente, até mesmo em comparação com os últimos anos. No entanto, ainda há um caminho longo e desafiador pela frente.
Um aspecto que pode ser positivo é se a nova política de comércio exterior do governo Milei contribuir para que o Brasil e o Mercosul se mostrem mais abertos ao comércio global. Ainda somos bastante protecionistas e fechados em relação ao comércio internacional.
IM: As medidas foram anunciadas pelo Ministro da Economia e não diretamente pelo Presidente, que havia abordado o assunto de forma mais genérica em sua posse. Você vê sinais de que haverá apoio político sustentado para implementar as medidas de ajuste?
AC: Esse talvez seja o grande desafio do governo Milei no início. Como realizar um ajuste intenso e rápido. O desafio consiste em implementar as medidas necessárias e buscar resultados relativamente rápidos antes que a base de apoio dos partidos e da sociedade seja significativamente afetada pelos custos de curto prazo do ajuste. Essa tarefa não é fácil, e além da consistência técnica das medidas, a capacidade de comunicação com a sociedade e de negociação política com partidos e organizações sindicais será crucial.
Em um momento crítico para a economia argentina, marcado por elevada inflação e desafios fiscais, o governo do recém-empossado presidente Javier Milei anunciou um conjunto de medidas de ajuste econômico. Neste contexto, Aod Cunha, economista e ex-secretário da Fazenda do Rio Grande do Sul, ofereceu uma entrevista ao Instituto Millenium com uma análise detalhada dessas ações. Com experiência em instituições financeiras de renome e em cargos de liderança no serviço público, Cunha avalia os aspectos técnicos das medidas, suas possíveis repercussões e a viabilidade política de sua implementação. A entrevista aborda também as implicações dessas políticas para as relações comerciais Brasil-Argentina, fornecendo uma perspectiva pragmática sobre os desafios econômicos enfrentados pela Argentina e seu impacto regional.
Instituto Millenium: Como o senhor descreveria o estado atual da economia argentina e quais foram os principais fatores que levaram o governo a implementar estas novas medidas econômicas?
Aod Cunha: A economia argentina se deteriorou significativamente no último governo. A inflação ultrapassa 150% no acumulado de 12 meses. O país enfrenta uma recessão, com o PIB caindo mais de 2,5% e índices de pobreza ultrapassando 40% da população. Além disso, o câmbio e os preços relativos estão completamente desalinhados devido a um conjunto de subsídios concedidos ao longo dos últimos anos. Em resumo, a situação é de completa desorganização causada por más políticas macro e microeconômicas.
Há pouco espaço para gradualismo. Os preços devem aumentar ainda mais, e a única forma de se estabilizarem eventualmente é através de uma combinação de forte ajuste fiscal com a crença dos agentes econômicos na exequibilidade do plano, incluindo sustentabilidade política e apoio do FMI.
IM: Poderia nos explicar, em termos gerais, o que compreende o pacote de medidas econômicas anunciado ontem? Além disso, esse pacote representa a totalidade das ações planejadas pelo governo, ou podemos esperar anúncios adicionais de medidas de ajuste no futuro?
AC: O novo governo, por meio do anúncio de medidas do Ministro Caputo, parte de um diagnóstico correto: a origem de vários problemas macroeconômicos da Argentina, incluindo inflação e pobreza, decorre de um persistente e descontrolado déficit público. Se este não for enfrentado rapidamente e na magnitude adequada, nenhum plano será eficaz.
Diante desse diagnóstico, o plano se inicia com um conjunto de reduções de despesas correntes e corte de subsídios. Ademais, considerando a escassez de dólares e o descontrole da taxa de câmbio, foi necessário anunciar uma taxa de câmbio mais favorável aos exportadores e um controle temporário do fluxo de importações.
Não menos importante, medidas compensatórias de transferência de renda para os mais pobres foram anunciadas, tendo em vista o aumento esperado da inflação nos próximos meses.
O anúncio carece de maior detalhamento do impacto estimado de cada medida e, principalmente, de estimativas mais precisas do esforço fiscal. Creio que nas próximas semanas e meses, o governo precisará anunciar novas medidas e ajustar as frentes de esforço fiscal, flutuações de câmbio, preços, financiamento externo e medidas mitigatórias para os mais pobres.
IM: Existe alguma semelhança entre as medidas anunciadas na Argentina e as adotadas no Brasil durante a luta contra a inflação na década de 80? Em particular, o Plano Real brasileiro teve abordagens semelhantes às que estão sendo implementadas agora na Argentina?
AC: Sinto falta de uma visão mais clara sobre como a Argentina enfrentará o movimento inercial de preços em um momento de alta aceleração inflacionária. No caso do Brasil, isso foi bem articulado com o mecanismo da URV.
Por outro lado, sabemos que, ao fixar o câmbio no Brasil em 1994 sem um ajuste fiscal mais rigoroso, foi necessário depois liberá-lo, resultando em um forte aumento das taxas de juros. Somente após 1998/1999, aprofundou-se nas medidas de ajuste fiscal, incluindo a definição de uma meta de superávit primário e a Lei de Responsabilidade Fiscal, tanto no governo federal quanto nos estados. Neste aspecto fiscal, parece que a Argentina já tem clareza da necessidade de maior rigor desde o início.
IM: Como essas medidas econômicas podem afetar o Brasil, especialmente em termos de comércio bilateral? Que tipo de repercussões podemos esperar na economia e nas relações comerciais entre os dois países?
AC: Inicialmente, os exportadores brasileiros podem enfrentar dificuldades, tanto pela deterioração do poder de compra na Argentina quanto pela insuficiência de reservas do Banco Central argentino. No médio e longo prazo, se o plano argentino for bem-sucedido, a situação pode melhorar significativamente, até mesmo em comparação com os últimos anos. No entanto, ainda há um caminho longo e desafiador pela frente.
Um aspecto que pode ser positivo é se a nova política de comércio exterior do governo Milei contribuir para que o Brasil e o Mercosul se mostrem mais abertos ao comércio global. Ainda somos bastante protecionistas e fechados em relação ao comércio internacional.
IM: As medidas foram anunciadas pelo Ministro da Economia e não diretamente pelo Presidente, que havia abordado o assunto de forma mais genérica em sua posse. Você vê sinais de que haverá apoio político sustentado para implementar as medidas de ajuste?
AC: Esse talvez seja o grande desafio do governo Milei no início. Como realizar um ajuste intenso e rápido. O desafio consiste em implementar as medidas necessárias e buscar resultados relativamente rápidos antes que a base de apoio dos partidos e da sociedade seja significativamente afetada pelos custos de curto prazo do ajuste. Essa tarefa não é fácil, e além da consistência técnica das medidas, a capacidade de comunicação com a sociedade e de negociação política com partidos e organizações sindicais será crucial.