A nova realidade climática e a incompetência de sempre
Comparando a realidade nacional com a de países que apresentam respostas eficientes ao problema, nota-se uma grande discrepância
colunista - Instituto Millenium
Publicado em 21 de maio de 2024 às 14h23.
Última atualização em 19 de julho de 2024 às 12h52.
As mudanças climáticas tornaram-se um tema central nas discussões sobre políticas públicas, impactando diretamente o planejamento e a gestão das cidades ao redor do mundo. Nos países onde o tema é tratado com seriedade, há um debate público ativo, os planos e políticas se traduzem em medidas efetivas. O planejamento urbano nestas localidade é integrado e visa desenvolver cidades sustentáveis e resilientes, acompanhado por amplos programas de conscientização e gestão de crises.
No Brasil, entretanto, os avanços nesta agenda são muito limitados. Comparando a realidade nacional com a de países que apresentam respostas eficientes ao problema, nota-se uma grande discrepância. Nem mesmo as questões mais críticas, como soluções para moradores de áreas de risco, são devidamente enfrentadas. Este cenário é resultado de uma dificuldade crônica na elaboração de marcos regulatórios e políticas públicas de qualidade, e, tratando-se de um tema que exige grande responsividade e planejamento de longo prazo, o resultado tende a ser ainda pior.
Em um índice elaborado pela Universidade de Notre Dame, que avalia o potencial de resistir e se adaptar aos efeitos das mudanças climáticas, o Brasil ocupa a 86ª posição, apresentando queda nos últimos anos. Dentre os critérios que compõem o indicador, destaca-se que o país está em 125º lugar quando o assunto é a capacidade de agir de forma célere e assertiva contra os efeitos dos desastres naturais.
Para exemplificar a crônica incapacidade das autoridades públicas de transformar palavras em ações, basta verificar que a Lei 12.608 de 2012, responsável por instituir a “Política Nacional de Proteção e Defesa Civil”, determinou a criação de um cadastro de “municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos”. Para a surpresa de ninguém, o levantamento não foi realizado.
Segundo o art. 42-A do Estatuto da Cidade, os planos diretores dos municípios incluídos neste cadastro deveriam tratar, obrigatoriamente, de questões como “medidas de drenagem urbana necessárias à prevenção e à mitigação de impactos de desastres”. Como sequer há um cadastro, a eficácia desta norma ficou totalmente prejudicada. Exemplos como este são incontáveis, provando que belas promessas e legislações bem-intencionadas não salvam vidas.
A tragédia que ocorre no Rio Grande do Sul escancara, mais uma vez e de forma extrema, a razão do desempenho pífio no índice mencionado, e a urgência de se levar a agenda a sério. A despeito da dificuldade em atuar em uma catástrofe dessa magnitude, a grande maioria das estruturas urbanas e os entes públicos se mostraram despreparados para lidar com um evento extremo. Mesmo se tratando de um desastre sem precedentes, muitos danos poderiam ter sido evitados ou mitigados.
Essa não é uma dificuldade específica das administrações públicas gaúchas. Todos os anos catástrofes naturais deixam estragos e vítimas nas mais diversas regiões do país, evidenciando a inépcia das administrações locais na prevenção e gestão de crises. Embora os governos possam ter diferentes graus de acerto, o problema estrutural do país é crítico. Isso não significa que não devemos responsabilizar os “culpados”, mas a caça às bruxas nem de longe resolve o nosso problema.
No contexto do Rio Grande do Sul, os entes federativos devem se apressar para oferecer soluções mais efetivas do que as apresentadas até então, é preciso acomodar provisoriamente milhões de pessoas, mensurar os estragos e oferecer suporte para os cidadãos que sofreram danos físicos e psicológicos. Os desafios para a reconstrução e retomada das atividades no estado são substanciais, e as soluções não podem se furtar às exigências impostas pelas mudanças climáticas. A questão em si já é extremamente complexa e a dificuldade crônica do país em estruturar políticas de qualidade torna o desafio ainda maior.
Uma abordagem sustentável e de longo prazo deve ir além da simples destinação de recursos e da aplicação de ideias aparentemente lógicas. É necessário realizar um diagnóstico robusto dos danos, analisando todos os dados possíveis, e implementar ações bem concebidas, baseadas no estudo da evidência disponível e em simulações dos impactos das medidas propostas. Além disso, ferramentas para monitorar e aperfeiçoar as políticas implementadas são imprescindíveis.
Existe um histórico de ações assertivas do estado brasileiro frente a situações desafiadoras, em que forças políticas se alinharam para elaborar medidas eficazes. A institucionalização da política social, iniciada no final dos anos 90, e os avanços obtidos no setor elétrico, a partir de melhorias regulatórias, diversificação de matriz, investimentos assertivos, são exemplos disso.
Nestes casos, partiu-se de uma cenário crítico e, com muito esforço, encontrou-se consensos para obtenção dos avanços. Por óbvio, essas medidas têm contextos muito distintos, mas servem como lição de que avanços estruturais na política urbana podem ser obtidos frente a problemas agudos, como os enfrentados atualmente no sul do país.
O contexto das eleições municipais deste ano no Brasil destaca a necessidade urgente de melhorias institucionais, regulatórias e políticas. A estrutura normativa da política urbana de países como França e Itália, com seus códigos de urbanismo unificados, oferece um modelo valioso para a institucionalização do tema. Países como Chile, México e Colômbia adotam sistemas similares, proporcionando um quadro coeso e hierárquico, com processos e competências claramente definidos.
No Brasil, por ausência de um marco legal estruturado, os municípios têm extensas competências, faltando-lhes capacidade e recursos para cumpri-las. Na prática, cada administração municipal é responsável não só por promover o ordenamento territorial, como também desenhar seu sistema de gestão e planejamento. Isso inclui questões como a definição do conteúdo de cada lei até as formas de monitoramento de indicadores.
Além disso, a ausência de supervisão eficaz permite que não cumpram suas responsabilidades, diferentemente dos setores de educação e saúde, que têm incentivos estruturados atrelados a transferências de recursos. No campo da defesa civil, esses incentivos sequer existem, resultando em coordenação fraca e ineficiente. Exemplo disso, como noticiado, é o fato do ministério responsável pelo tema destinar o grosso do seu orçamento na compra de tratores e pavimentação. Prioridades.
A desconexão entre a estruturação de projetos de infraestrutura e o planejamento urbano compromete a resiliência e a sustentabilidade das cidades brasileiras. Mesmo com os avanços nas parcerias público-privadas, os projetos de desenvolvimento continuam alheios às questões urbanas, sublinhando a necessidade de integração entre planejamento e execução.
Por incrível que pareça, estruturas essenciais às cidades são pensadas sem um diálogo efetivo com os planejadores urbanos, a implementação, na grande maioria das vezes, ocorre sem a observância de diagnósticos e instrumentos urbanísticos. O “Proyecto Urbano Integral (PUI)”, de Medellín, é um exemplo dos benefícios da coesão entre as pautas, trata-se de uma legislação de planejamento integrado que apresentou grande êxito, comprovado pelas melhorias substanciais percebidas na cidade.
Não existe bala de prata para solucionar a questão, teremos que debater e testar muitas ideias para, aos poucos, conseguir oferecer cidades melhores e mais resilientes. Por sorte, não precisamos começar do zero, é possível se inspirar em inúmeras ideias e paradigmas que já existem, como apresentados acima.
As cidades são plenamente capazes de lidar com as mudanças climáticas, mas, para isso, é preciso compreender que, dada a complexidade dos centros urbanos, o primeiro passo é ser humilde e aberto ao diálogo. Edward Glaeser, uma das vozes mais influentes no debate urbanístico, nos ensina que “é preciso ter a humildade de aprender antes de transformar”. Infelizmente, essa mentalidade está muito distante daqueles que tomam as decisões por aqui.
As mudanças climáticas tornaram-se um tema central nas discussões sobre políticas públicas, impactando diretamente o planejamento e a gestão das cidades ao redor do mundo. Nos países onde o tema é tratado com seriedade, há um debate público ativo, os planos e políticas se traduzem em medidas efetivas. O planejamento urbano nestas localidade é integrado e visa desenvolver cidades sustentáveis e resilientes, acompanhado por amplos programas de conscientização e gestão de crises.
No Brasil, entretanto, os avanços nesta agenda são muito limitados. Comparando a realidade nacional com a de países que apresentam respostas eficientes ao problema, nota-se uma grande discrepância. Nem mesmo as questões mais críticas, como soluções para moradores de áreas de risco, são devidamente enfrentadas. Este cenário é resultado de uma dificuldade crônica na elaboração de marcos regulatórios e políticas públicas de qualidade, e, tratando-se de um tema que exige grande responsividade e planejamento de longo prazo, o resultado tende a ser ainda pior.
Em um índice elaborado pela Universidade de Notre Dame, que avalia o potencial de resistir e se adaptar aos efeitos das mudanças climáticas, o Brasil ocupa a 86ª posição, apresentando queda nos últimos anos. Dentre os critérios que compõem o indicador, destaca-se que o país está em 125º lugar quando o assunto é a capacidade de agir de forma célere e assertiva contra os efeitos dos desastres naturais.
Para exemplificar a crônica incapacidade das autoridades públicas de transformar palavras em ações, basta verificar que a Lei 12.608 de 2012, responsável por instituir a “Política Nacional de Proteção e Defesa Civil”, determinou a criação de um cadastro de “municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos”. Para a surpresa de ninguém, o levantamento não foi realizado.
Segundo o art. 42-A do Estatuto da Cidade, os planos diretores dos municípios incluídos neste cadastro deveriam tratar, obrigatoriamente, de questões como “medidas de drenagem urbana necessárias à prevenção e à mitigação de impactos de desastres”. Como sequer há um cadastro, a eficácia desta norma ficou totalmente prejudicada. Exemplos como este são incontáveis, provando que belas promessas e legislações bem-intencionadas não salvam vidas.
A tragédia que ocorre no Rio Grande do Sul escancara, mais uma vez e de forma extrema, a razão do desempenho pífio no índice mencionado, e a urgência de se levar a agenda a sério. A despeito da dificuldade em atuar em uma catástrofe dessa magnitude, a grande maioria das estruturas urbanas e os entes públicos se mostraram despreparados para lidar com um evento extremo. Mesmo se tratando de um desastre sem precedentes, muitos danos poderiam ter sido evitados ou mitigados.
Essa não é uma dificuldade específica das administrações públicas gaúchas. Todos os anos catástrofes naturais deixam estragos e vítimas nas mais diversas regiões do país, evidenciando a inépcia das administrações locais na prevenção e gestão de crises. Embora os governos possam ter diferentes graus de acerto, o problema estrutural do país é crítico. Isso não significa que não devemos responsabilizar os “culpados”, mas a caça às bruxas nem de longe resolve o nosso problema.
No contexto do Rio Grande do Sul, os entes federativos devem se apressar para oferecer soluções mais efetivas do que as apresentadas até então, é preciso acomodar provisoriamente milhões de pessoas, mensurar os estragos e oferecer suporte para os cidadãos que sofreram danos físicos e psicológicos. Os desafios para a reconstrução e retomada das atividades no estado são substanciais, e as soluções não podem se furtar às exigências impostas pelas mudanças climáticas. A questão em si já é extremamente complexa e a dificuldade crônica do país em estruturar políticas de qualidade torna o desafio ainda maior.
Uma abordagem sustentável e de longo prazo deve ir além da simples destinação de recursos e da aplicação de ideias aparentemente lógicas. É necessário realizar um diagnóstico robusto dos danos, analisando todos os dados possíveis, e implementar ações bem concebidas, baseadas no estudo da evidência disponível e em simulações dos impactos das medidas propostas. Além disso, ferramentas para monitorar e aperfeiçoar as políticas implementadas são imprescindíveis.
Existe um histórico de ações assertivas do estado brasileiro frente a situações desafiadoras, em que forças políticas se alinharam para elaborar medidas eficazes. A institucionalização da política social, iniciada no final dos anos 90, e os avanços obtidos no setor elétrico, a partir de melhorias regulatórias, diversificação de matriz, investimentos assertivos, são exemplos disso.
Nestes casos, partiu-se de uma cenário crítico e, com muito esforço, encontrou-se consensos para obtenção dos avanços. Por óbvio, essas medidas têm contextos muito distintos, mas servem como lição de que avanços estruturais na política urbana podem ser obtidos frente a problemas agudos, como os enfrentados atualmente no sul do país.
O contexto das eleições municipais deste ano no Brasil destaca a necessidade urgente de melhorias institucionais, regulatórias e políticas. A estrutura normativa da política urbana de países como França e Itália, com seus códigos de urbanismo unificados, oferece um modelo valioso para a institucionalização do tema. Países como Chile, México e Colômbia adotam sistemas similares, proporcionando um quadro coeso e hierárquico, com processos e competências claramente definidos.
No Brasil, por ausência de um marco legal estruturado, os municípios têm extensas competências, faltando-lhes capacidade e recursos para cumpri-las. Na prática, cada administração municipal é responsável não só por promover o ordenamento territorial, como também desenhar seu sistema de gestão e planejamento. Isso inclui questões como a definição do conteúdo de cada lei até as formas de monitoramento de indicadores.
Além disso, a ausência de supervisão eficaz permite que não cumpram suas responsabilidades, diferentemente dos setores de educação e saúde, que têm incentivos estruturados atrelados a transferências de recursos. No campo da defesa civil, esses incentivos sequer existem, resultando em coordenação fraca e ineficiente. Exemplo disso, como noticiado, é o fato do ministério responsável pelo tema destinar o grosso do seu orçamento na compra de tratores e pavimentação. Prioridades.
A desconexão entre a estruturação de projetos de infraestrutura e o planejamento urbano compromete a resiliência e a sustentabilidade das cidades brasileiras. Mesmo com os avanços nas parcerias público-privadas, os projetos de desenvolvimento continuam alheios às questões urbanas, sublinhando a necessidade de integração entre planejamento e execução.
Por incrível que pareça, estruturas essenciais às cidades são pensadas sem um diálogo efetivo com os planejadores urbanos, a implementação, na grande maioria das vezes, ocorre sem a observância de diagnósticos e instrumentos urbanísticos. O “Proyecto Urbano Integral (PUI)”, de Medellín, é um exemplo dos benefícios da coesão entre as pautas, trata-se de uma legislação de planejamento integrado que apresentou grande êxito, comprovado pelas melhorias substanciais percebidas na cidade.
Não existe bala de prata para solucionar a questão, teremos que debater e testar muitas ideias para, aos poucos, conseguir oferecer cidades melhores e mais resilientes. Por sorte, não precisamos começar do zero, é possível se inspirar em inúmeras ideias e paradigmas que já existem, como apresentados acima.
As cidades são plenamente capazes de lidar com as mudanças climáticas, mas, para isso, é preciso compreender que, dada a complexidade dos centros urbanos, o primeiro passo é ser humilde e aberto ao diálogo. Edward Glaeser, uma das vozes mais influentes no debate urbanístico, nos ensina que “é preciso ter a humildade de aprender antes de transformar”. Infelizmente, essa mentalidade está muito distante daqueles que tomam as decisões por aqui.