Criadores de conteúdo: evento também é palco para o surgimento de novos produtos entre o público.
Instituto Millenium
Publicado em 15 de agosto de 2025 às 22h05.
Por Maria Eduarda Vargas*
No coração da economia digital pulsa um mercado tão lucrativo quanto perturbador: o comércio da infância. Aqui, não se fala em valor moral ou simbólico, mas em cifras concretas, cliques, visualizações e contratos publicitários. Crianças são transformadas em ativos, avaliadas não pela riqueza de sua imaginação ou pela leveza de sua fase de vida, mas pela capacidade de performar comportamentos, estilos e poses adultas para consumo público. É nessa lógica que se sustenta a metáfora da Bolsa de Valores da Inocência, onde a “cotação” sobe quanto mais a pureza se molda às demandas do entretenimento digital.
A denúncia feita pelo youtuber Felca contra os influenciadores que utilizam a sexualização infantil para monetizar, como no caso do Hytalo Santos, expôs, de forma nua e crua, esse mercado. Em poucas horas, o tema mobilizou a opinião pública e gerou mais de 30 projetos de lei no Congresso Nacional, variando de multas e registros obrigatórios à regulamentação das redes sociais.
Mas, por trás dessa reação imediata, existe uma engrenagem econômica silenciosa. Só nos Estados Unidos, a economia de criadores de conteúdo já movimenta cerca de US$ 250 bilhões, e os chamados kidfluencers, crianças transformadas em marcas, respondem por uma fatia bilionária desse montante.
No TikTok, 19,6% dos vídeos infantis exibem crianças com roupas provocativas, recebendo significativamente mais curtidas e interações do que conteúdos neutros. A audiência infanto juvenil, de 5 a 17 anos, gera aproximadamente US$ 11 bilhões anuais em receita publicitária nas seis principais redes sociais. Assim, a lógica é simples e perversa: quanto maior o engajamento, maior a monetização; quanto mais precoce a adultização, maior o lucro. Nesse tabuleiro, não são apenas os pais e produtores de conteúdo que participam, mas as próprias plataformas, via algoritmos, atuam como agentes invisíveis, calibrando a oferta e a demanda desse “ativo” conforme o apetite do público.
O cenário revela um paradoxo ético e econômico. A proteção da infância, que deveria ser um compromisso inegociável, vem sendo gradualmente transferida para corporações cujo modelo de negócio depende da erosão dessa mesma proteção. Plataformas digitais, alimentadas por algoritmos que maximizam engajamento, operam como intermediárias silenciosas na transação da inocência infantil, convertendo atenção em receita e vulnerabilidade em capital.
A questão não é apenas quem lucra, mas a que custo social e psicológico esse lucro é obtido. Cada clique em um vídeo infantil adultizado reforça a demanda por mais conteúdo semelhante; cada campanha publicitária bem-sucedida sinaliza ao mercado que a exploração estética e comportamental da infância é economicamente viável. O resultado é um ciclo que se autoalimenta, no qual os incentivos econômicos se sobrepõem a princípios éticos, e a vulnerabilidade se torna ativo estratégico.
É aqui que a crítica precisa ser clara: o que se vê não é um mercado genuinamente livre, mas um mercado manipulado, no qual a liberdade de escolha do consumidor é moldada por mecanismos invisíveis e enviesados. Adam Smith, em A Riqueza das Nações, sustentava que o mercado funciona melhor quando a “mão invisível” é guiada pelo interesse próprio, pois este, paradoxalmente, pode levar ao benefício coletivo. Mas, no mercado da infância digital, essa mão invisível não aponta para o bem comum — aponta para o clique, para o engajamento, para o lucro imediato.
A economia digital moderna opera sob um princípio antigo em essência, mas elevado a um grau inédito de sofisticação: a mercantilização de tudo que capture atenção. John Stuart Mill, em On Liberty, advertia que a liberdade só se sustenta enquanto não se converte em instrumento de dano ao outro. Esse raciocínio se aplica diretamente ao debate atual. Se a liberdade de publicar, consumir e monetizar conteúdos envolvendo crianças resulta na erosão de sua dignidade e privacidade, o discurso exige reconhecer o limite.
Inclusive, a história já registrou que mercados sem limites éticos tendem a colapsar moralmente antes de ruir economicamente. O exemplo das fábricas vitorianas do século XIX, que empregavam crianças em condições insalubres, é ilustrativo. Tratava-se de uma prática amplamente aceita até que a sociedade reconheceu que a eficiência econômica não justificava o custo humano. Hoje, a diferença é que a fábrica não é física, mas digital; a linha de produção é formada por câmeras e algoritmos, e o “produto” não são tecidos ou sapatos, mas imagens, dados e a própria imagem da infância.
A solução para o problema não está em criar camadas adicionais de controle estatal sobre a internet, mas em atacar o verdadeiro motor da engrenagem: a demanda. A economia digital é, acima de tudo, uma economia de atenção. Plataformas monetizam o que as pessoas assistem, clicam e compartilham; enquanto houver público interessado em conteúdos que adultizam crianças, haverá criadores dispostos a produzi-los e anunciantes dispostos a pagar por eles.
Por isso, a alternativa mais eficaz é investir em educação midiática e no fortalecimento do senso crítico da audiência. Ensinar o público, especialmente jovens e famílias, a reconhecer manipulações algorítmicas, a questionar conteúdos e a compreender a lógica econômica por trás da “gratuidade” das redes sociais é mais disruptivo para esse mercado do que qualquer lei mal calibrada. Quando a audiência se torna consciente do impacto de cada clique, a curva de demanda se altera, e com ela toda a estrutura de incentivos.
A liberdade não é uma licença para explorar, mas responsabilidade para preservar. A economia digital não é uma entidade abstrata, ela é moldada por decisões individuais, somadas em escala global. O que está em jogo não é apenas a segurança das crianças, mas o próprio modelo de sociedade que se quer construir.
Dessa forma, a Bolsa de Valores da Inocência continuará operando enquanto houver compradores para o ativo mais frágil de todos: a pureza. O valor desse “papel” não é fixado por algoritmos sozinhos, mas pelo apetite coletivo por consumi-lo. Se a demanda se mantiver alta, as cotações da exploração seguirão em alta; se cair, o mercado se retrai. A verdadeira regulação desse índice não virá do Congresso ou de agências governamentais, mas da capacidade de cada espectador de retirar seu investimento moral de um mercado que jamais deveria ter existido.
E talvez a questão central seja esta: a sociedade está disposta a fazer a Bolsa da Inocência quebrar, mesmo que isso signifique desmontar um mercado que não apenas alimenta anunciantes e influenciadores, mas também sacia o apetite silencioso de pedófilos que se escondem atrás da cultura do entretenimento? Ou continuará chamando de “normal” aquilo que, na prática, financia a exploração mais vil do que ainda resta de pureza?
*Maria Eduarda Vargas é Diretora de Projetos do Instituto Atlantos e Coordenadora do Students for Liberty