Tecnologia e transparência na política a favor do cidadão? Nem sempre
Será que tecnologias promovendo maior transparência vão sempre gerar um impacto positivo para os cidadãos?
Da Redação
Publicado em 16 de junho de 2022 às 05h00.
Por Fernando Deodato Domingos*
O conteúdo desse blog é gerenciado pelo Insper Metricis , o núcleo do Insper especializado em realizar estudos sobre estratégias organizacionais e práticas de gestão envolvendo projetos com potencial de gerar alto impacto socioambiental.
É comum prezarmos pelo uso de tecnologias no setor público, buscando mais transparência para o cidadão através de novos desenvolvimentos. Não raramente criticam-se governos por não adotarem práticas que são senso comum no setor privado, desde rotinas de gestão até melhor uso de aparatos de TI. A pandemia, entretanto, acelerou processos e, por vezes, colocou governos (inclusive municipais) à frente em desenvolvimentos tecnológicos. Alguns exemplos são audiências remotas, engajamento em redes sociais, reuniões de câmaras municipais transmitidas ao vivo e gravadas, votações à distância auditadas, entre outros.
Mas será que tecnologias promovendo maior transparência vão sempre gerar um impacto positivo para os cidadãos? Um estudo recente do qual participo em parceria com os professores André Aquino (USP) e Diana Lima (UnB) levanta alguns pontos de atenção. Através de um questionário experimental, encaminhado para os vereadores do Brasil inteiro (através de colaboração com a Confederação Nacional dos Municípios), observamos como eles dizem se informar quando confrontados com três realidades distintas: (i) reuniões no plenário tradicionais, com participação de cidadãos presencialmente, (ii) quando essas reuniões são também transmitidas ao vivo pela internet e (iii) quando, além de transmitidas ao vivo, as reuniões são também gravadas. Essas realidades apresentam distinta abertura da reunião e exposição do vereador, aumentando a sua visibilidade no espaço (através da transmissão ao vivo) e no tempo (através da gravação). Vereadores que aleatoriamente são alocados entre esses três grupos dizem como se informariam para legislar em relação às políticas de rastreamento de infectados na pandemia de covid-19 (o questionário foi aplicado no pico da primeira onda da pandemia no Brasil). Faz parte do cotidiano do vereador e demais políticos opinarem sobre assuntos complexos e, para tal, eles podem recorrer ao apoio de assessoria especializada e diversas outras fontes. No experimento, os vereadores poderiam escolher quais seriam as suas fontes de informação dentre várias opções, incluindo “assessoria”, “opinião da comunidade científica” ou “opinião de grupos econômicos”.
O estudo mostra que vereadores que são mais alinhados com o governo federal, à época com uma forte agenda negacionista em relação à pandemia, tendem a demonstrar uma postura mais “clientelista” quando estão mais expostos ao uso da tecnologia (ou seja, visando obter benefícios eleitorais, elaboram um discurso voltado a interesses de grupos específicos). Reuniões ao vivo e gravadas podem então fazer esses vereadores deixarem de usar fontes técnicas para legislar. Em outras palavras, uma maior transparência pode fazer com que vereadores sejam capturados pelo escrutínio e influência de grupos de interesse. Já os vereadores que não estavam alinhados com o governo federal tendem a demonstrar uma postura menos clientelista quando mais expostos. Esses, em contrapartida, dizem passar a se informar mais através da comunidade científica quando reuniões são transmitidas e gravadas.
Vemos então a importância de se debater com cuidado o uso e consequências (talvez inesperadas) de adoção de tecnologias para transparência por parte de governos. Cenários políticos polarizados, somados a um mundo digitalizado, criam um cenário inédito para democracias. Tecnologia e transparência, apesar de inegavelmente importantes, devem, em última instância, ser utilizadas se promoverem impacto social positivo.
*Fernando Deodato Domingos é pesquisador em pós-doutorado na Universidade de Oxford (Government Outcomes Lab, Blavatnik School of Government).
Por Fernando Deodato Domingos*
O conteúdo desse blog é gerenciado pelo Insper Metricis , o núcleo do Insper especializado em realizar estudos sobre estratégias organizacionais e práticas de gestão envolvendo projetos com potencial de gerar alto impacto socioambiental.
É comum prezarmos pelo uso de tecnologias no setor público, buscando mais transparência para o cidadão através de novos desenvolvimentos. Não raramente criticam-se governos por não adotarem práticas que são senso comum no setor privado, desde rotinas de gestão até melhor uso de aparatos de TI. A pandemia, entretanto, acelerou processos e, por vezes, colocou governos (inclusive municipais) à frente em desenvolvimentos tecnológicos. Alguns exemplos são audiências remotas, engajamento em redes sociais, reuniões de câmaras municipais transmitidas ao vivo e gravadas, votações à distância auditadas, entre outros.
Mas será que tecnologias promovendo maior transparência vão sempre gerar um impacto positivo para os cidadãos? Um estudo recente do qual participo em parceria com os professores André Aquino (USP) e Diana Lima (UnB) levanta alguns pontos de atenção. Através de um questionário experimental, encaminhado para os vereadores do Brasil inteiro (através de colaboração com a Confederação Nacional dos Municípios), observamos como eles dizem se informar quando confrontados com três realidades distintas: (i) reuniões no plenário tradicionais, com participação de cidadãos presencialmente, (ii) quando essas reuniões são também transmitidas ao vivo pela internet e (iii) quando, além de transmitidas ao vivo, as reuniões são também gravadas. Essas realidades apresentam distinta abertura da reunião e exposição do vereador, aumentando a sua visibilidade no espaço (através da transmissão ao vivo) e no tempo (através da gravação). Vereadores que aleatoriamente são alocados entre esses três grupos dizem como se informariam para legislar em relação às políticas de rastreamento de infectados na pandemia de covid-19 (o questionário foi aplicado no pico da primeira onda da pandemia no Brasil). Faz parte do cotidiano do vereador e demais políticos opinarem sobre assuntos complexos e, para tal, eles podem recorrer ao apoio de assessoria especializada e diversas outras fontes. No experimento, os vereadores poderiam escolher quais seriam as suas fontes de informação dentre várias opções, incluindo “assessoria”, “opinião da comunidade científica” ou “opinião de grupos econômicos”.
O estudo mostra que vereadores que são mais alinhados com o governo federal, à época com uma forte agenda negacionista em relação à pandemia, tendem a demonstrar uma postura mais “clientelista” quando estão mais expostos ao uso da tecnologia (ou seja, visando obter benefícios eleitorais, elaboram um discurso voltado a interesses de grupos específicos). Reuniões ao vivo e gravadas podem então fazer esses vereadores deixarem de usar fontes técnicas para legislar. Em outras palavras, uma maior transparência pode fazer com que vereadores sejam capturados pelo escrutínio e influência de grupos de interesse. Já os vereadores que não estavam alinhados com o governo federal tendem a demonstrar uma postura menos clientelista quando mais expostos. Esses, em contrapartida, dizem passar a se informar mais através da comunidade científica quando reuniões são transmitidas e gravadas.
Vemos então a importância de se debater com cuidado o uso e consequências (talvez inesperadas) de adoção de tecnologias para transparência por parte de governos. Cenários políticos polarizados, somados a um mundo digitalizado, criam um cenário inédito para democracias. Tecnologia e transparência, apesar de inegavelmente importantes, devem, em última instância, ser utilizadas se promoverem impacto social positivo.
*Fernando Deodato Domingos é pesquisador em pós-doutorado na Universidade de Oxford (Government Outcomes Lab, Blavatnik School of Government).