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Lentes de gênero e mudanças tecnológicas: como a família Jetson ficou ultrapassada

No desenho, apesar do carro voador e dos capacetes para usar no espaço, George ainda ia para o trabalho presencialmente

JETSONS: a família ficou no passado.  (Warner Bros./Getty Images)
JETSONS: a família ficou no passado. (Warner Bros./Getty Images)
O conteúdo desse blog é gerenciado pelo Insper Metricis, o núcleo do Insper especializado em realizar estudos sobre estratégias organizacionais e práticas de gestão envolvendo projetos com potencial de gerar alto impacto socioambiental. 

Por Regina Madalozzo* e Adriana Carvalho**

Em março deste ano, pelo 67° ano consecutivo, representantes dos estados membros das Nações Unidas, entidades das Nações Unidas, como ONU Mulheres e Pacto Global, e ONGs credenciadas ao conselho econômico e social das Nações Unidas se reuniram no âmbito da Commission on the Status of Women (CSW – Comissão sobre a Situação das Mulheres) para avaliar avanços, desafios e discutir ações. O tema deste ano foi “Inovação e mudanças tecnológicas: educação na era digital, progresso na direção da igualdade de gênero”. Muitos aspectos importantes em um só título e uma discussão fundamental, já que a tecnologia cada vez mais é base do nosso dia a dia, é um divisor de acesso e de oportunidades.

Há muito se escuta sobre uma quarta onda de industrialização, sobre mudanças profundas na forma como as pessoas e empresas interagem e em como o trabalho em si seria transformado. A transformação chegou. E é ainda mais disruptiva do que se imaginava no passado. Como exemplo, basta lembrar do perfil idealizado com a família Jetson, desenho famoso nos anos 60. Nele, apesar do carro voador e dos capacetes para usar no espaço, George ainda ia para o trabalho presencialmente. Hoje, uma parte significativa das empresas adota, no mínimo, o trabalho híbrido. No desenho, a família tinha uma divisão tradicional do trabalho – George estava empregado e Jane cuidava da casa e das crianças. Atualmente, aproximadamente metade dos domicílios brasileiros é chefiado por mulheres – com ou sem cônjuge –, mais uma clara demonstração da significância da participação das mulheres na renda familiar.

Na discussão dos CEOs, organizada pelo Pacto Global e que ocorreu durante a CSW, um dos temas mais relevantes foi justamente como a tecnologia pode aprofundar ou melhorar a situação de todas as mulheres. Entre os vários fatores a serem considerados, temos a urgência de aumentar a participação das mulheres e grupos minorizados socialmente, em geral, no desenvolvimento das novas tecnologias. Ao mesmo tempo, é preciso apelar para a responsabilidade das empresas e dos governos em como são feitos esses desenvolvimentos, inclusive com muitas discussões a respeito de ética dentro da tecnologia.

Um exemplo é a inteligência artificial (IA). Quando um grupo homogêneo de pessoas é responsável pela programação de novas tecnologias, como a IA, o resultado é, em geral, menos criativo e menos abrangente do que quando uma equipe diversa trabalha em conjunto. Complementarmente, existe uma preocupação a respeito das muitas bases de dados e informações que a IA lê. Se considerarmos que o mundo foi construído por estruturas que reproduzem padrões que queremos mudar e histórias foram contadas também sob essa influência - e muitas outras que foram invisibilizadas -, como assegurar que essa grande capacidade de ler e analisar dados não reproduzirá as desigualdades vigentes? Será que a inteligência artificial criada pelos motores já considerados ultrapassados e excludentes é realmente “inteligente”?

Estudos apontam que a diversidade de pensamento e de posição frente à sociedade faz com que se amplie a possibilidade de diminuição do risco associado à tomada de decisão. E é necessária uma decisão intencional de privilegiar a diversidade com relação ao habitual status quo e de, deliberadamente, alterar a lógica de construção dessas ferramentas, exigindo que, cada vez mais, os dados sejam disponibilizados com recortes de gênero, raça, entre outros.

Na mesa de CEOs citada, algumas boas experiências foram compartilhadas. Programas específicos para atrair mulheres para profissões com predominância masculina e ligadas às áreas de tecnologia e engenharia. Ações para promover o desenvolvimento de carreira das mulheres para que ocupem mais posições de liderança. Programas de mentoria – e mentoria reversa! – funcionam para mulheres, pessoas de diferentes faixas etárias, pessoas negras, pessoas com deficiência e quaisquer grupos que precisem da visibilidade de um contato na liderança. Ter metas de inclusão, indicadores de acompanhamento e a publicação de indicadores a respeito de ocupação de cargos e médias salariais – bem como a diferença entre salários médios de diferentes grupos e pessoas – faz com que o objetivo de diversidade seja mais palpável e entre, verdadeiramente, nas metas individuais da liderança.

Apesar de todos esses esforços de empresas comprometidas com o tema, o número de companhias que assumem essa agenda precisa crescer exponencialmente nos próximos anos e as grandes empresas necessitam contribuir para isso, trabalhando com empresas de suas cadeias de valores. Startups precisam ter sua origem já com essa lente presente. Investidores e venture capital têm um papel fundamental nesse ponto. Governo e sociedade são responsáveis pela outra ponta. É preciso garantir a inclusão e a escuta para a contribuição das mulheres em todas as suas interseccionalidades.

Não fazer isso nos colocará na posição da família Jetson: tecnologias incríveis à disposição sendo utilizadas da forma habitual e míope. É essencial um olhar dedicado a questões de diversidade e inclusão para que o novo represente um avanço real para todas as pessoas.

*Regina Madalozzo é sócia da Moura Madalozzo Consultoria Econômica, onde atua em projetos de diversidade de gênero nas empresas. Academicamente, produz suas pesquisas como associada ao GeFam. Regina é PhD em Economia pela Universidade de Illinois em Urbana-Champaign.

** Adriana Carvalho é CEO da Generation Brasil e atua como conselheira de diversas empresas. Foi assessora da ONU Mulheres e responsável pelo gerenciamento de programas como os WEPs (Princípios de Empoderamento da Mulher) e o Win-Win (inclusão de gênero e resultado para os negócios). Adriana é Mestre em Administração de Empresas pelo Insper.