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Denúncias e gestão da integridade no governo: evidências e possibilidades

Um exemplo recente foi a denúncia de um servidor do Ministério da Saúde, que trouxe à tona um possível esquema de corrupção ligado à compra de vacinas

Vista da Esplanada dos Ministérios, em Brasília (Ueslei Marcelino/Reuters)
DR

Da Redação

Publicado em 16 de novembro de 2021 às 10h00.

Por Gustavo M. Tavares*

As políticas de gestão da integridade e combate à corrupção nos governos têm lançado mão, cada vez mais, de sistemas de denúncias. Denunciantes podem ser fontes valiosas de informação, que ajudam a prevenir irregularidades e responsabilizar quem as comete. Um exemplo recente foi a denúncia de um servidor do Ministério da Saúde, que trouxe à tona um possível esquema de corrupção ligado à compra de vacinas para a covid-19.

Como denunciar? É mais fácil do que parece. No Brasil, a CGU disponibiliza o sistema Fala.BR, uma plataforma que permite a qualquer cidadão realizar denúncias e reclamações relacionadas ao serviço público. O sistema integra ouvidorias de todo o país, nos três níveis federativos.

Transparência. Pelo “Painel Resolveu?”,é possível consultar a quantidade de denúncias realizadas por tipo de assunto, órgão, perfil do denunciante, entre outros filtros. Para se ter uma ideia, em 2021, já foram realizadas mais de 300 mil manifestações (incluindo denúncias e reclamações). Segundo o painel, 99% dessas manifestações foram respondidas dentro do prazo (em média, 15 dias).

Pesquisa

Em 2020, realizamos um levantamento junto a 661 servidores federais brasileiros para entender melhor o comportamento de denúncia deles. Os resultados indicam que as denúncias ocorrem mais frequentemente do que se imagina: 46% dos participantes disseram já ter realizado pelo menos uma denúncia formal por escrito ao longo de suas carreiras.

O custo para os denunciantes. A despeito dos benefícios, denunciar pode sair caro para os denunciantes: 44% deles informaram ter sofrido algum tipo de retaliação dos chefes ou colegas. E o preço parece ser maior para as mulheres: 56% delas sofreram retaliação ( versus 37% dos homens). Talvez, por esse motivo, também encontramos que mulheres são menos prováveis de denunciar. Surpreendentemente, quem denuncia por canal anônimo tem a mesma chance de sofrer retaliação comparado àqueles que denunciam de forma identificada. Ou seja, o “anonimato” no momento da denúncia não parece oferecer proteção extra aos denunciantes.

Motivos para não denunciar e garantias. Os motivos para não denunciar mais frequentemente citados pelos participantes foram a falta de confiança no sistema de apuração (49% dos participantes indicaram esse motivo), seguido de preocupação com retaliações profissionais (38%). Sobre as garantias mais importantes, destaca-se a proteção da identidade do denunciante (indicada por 77% dos participantes), seguida da certeza de que os fatos serão apurados (65%). Ressaltamos que apenas 8% deles consideram importante o uso de incentivos financeiros para o denunciante.

O custo para a administração. Paradoxalmente, os mesmos sistemas de denúncia utilizados para coibir irregularidades podem ser utilizados para o cometimento delas. É comum a ocorrência de denúncias com fins de calúnia e perseguição, especialmente por canais anônimos. De fato, o “Painel Resolveu?” mostra que 22% das denúncias anônimas são arquivadas ( versus 4% das identificadas) por uso de linguagem imprópria, indícios claros de uso para difamação e falta de fundamentação. Obviamente, isso gera uma sobrecarga nos sistemas de apuração, além de ter impactos negativos sobre a reputação de pessoas e organizações, de maneira injusta. Como mitigar a incidência de denúncias impróprias é uma questão em aberto, que pesquisas futuras podem endereçar.

Legislação e oportunidades de melhoria

A Lei nº 13.964 de 2019 acrescentou três novos parágrafos à Lei nº 13.608 de 2018, trazendo avanços em relação às proteções ao denunciante, como garantias contra quaisquer formas de retaliação e a tipificação de ilícito administrativo a realização de qualquer ação retaliatória.  A referida Lei aperfeiçoa antigos institutos, como o direito ao anonimato, e acrescenta um outro: a possibilidade de recompensa financeira. Contudo, a despeito do avanço conquistado, ainda não se pode sustentar a existência de um ambiente favorável a denúncias no Brasil, uma vez que o assunto ainda carece de regulamentação e de campanhas de divulgação sobre o tema.

Sistemas de denúncia são importantes aliados da administração em programas de gestão da integridade e combate à corrupção. Mas é preciso que servidores e cidadãos sejam devidamente instruídos para o uso efetivo dessa ferramenta. Especialmente no ambiente organizacional, esses sistemas precisam ser vistos como um último recurso. A literatura aponta que o uso indiscriminado de denúncias nas organizações pode corroer o tecido de confiança entre as pessoas, gerando rigidez organizacional e um comportamento burocrático disfuncional. Tudo indica que a melhor forma de promover a integridade nas organizações — prevenindo as irregularidades — é através de lideranças éticas e presentes e de uma cultura organizacional forte, onde as normas de integridade e valores públicos são constantemente reforçados.

*Gustavo M. Tavares é professor do Insper na área de comportamento organizacional e liderança. Tem especial interesse sobre temas comportamentais aplicados ao setor público.

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Por Gustavo M. Tavares*

As políticas de gestão da integridade e combate à corrupção nos governos têm lançado mão, cada vez mais, de sistemas de denúncias. Denunciantes podem ser fontes valiosas de informação, que ajudam a prevenir irregularidades e responsabilizar quem as comete. Um exemplo recente foi a denúncia de um servidor do Ministério da Saúde, que trouxe à tona um possível esquema de corrupção ligado à compra de vacinas para a covid-19.

Como denunciar? É mais fácil do que parece. No Brasil, a CGU disponibiliza o sistema Fala.BR, uma plataforma que permite a qualquer cidadão realizar denúncias e reclamações relacionadas ao serviço público. O sistema integra ouvidorias de todo o país, nos três níveis federativos.

Transparência. Pelo “Painel Resolveu?”,é possível consultar a quantidade de denúncias realizadas por tipo de assunto, órgão, perfil do denunciante, entre outros filtros. Para se ter uma ideia, em 2021, já foram realizadas mais de 300 mil manifestações (incluindo denúncias e reclamações). Segundo o painel, 99% dessas manifestações foram respondidas dentro do prazo (em média, 15 dias).

Pesquisa

Em 2020, realizamos um levantamento junto a 661 servidores federais brasileiros para entender melhor o comportamento de denúncia deles. Os resultados indicam que as denúncias ocorrem mais frequentemente do que se imagina: 46% dos participantes disseram já ter realizado pelo menos uma denúncia formal por escrito ao longo de suas carreiras.

O custo para os denunciantes. A despeito dos benefícios, denunciar pode sair caro para os denunciantes: 44% deles informaram ter sofrido algum tipo de retaliação dos chefes ou colegas. E o preço parece ser maior para as mulheres: 56% delas sofreram retaliação ( versus 37% dos homens). Talvez, por esse motivo, também encontramos que mulheres são menos prováveis de denunciar. Surpreendentemente, quem denuncia por canal anônimo tem a mesma chance de sofrer retaliação comparado àqueles que denunciam de forma identificada. Ou seja, o “anonimato” no momento da denúncia não parece oferecer proteção extra aos denunciantes.

Motivos para não denunciar e garantias. Os motivos para não denunciar mais frequentemente citados pelos participantes foram a falta de confiança no sistema de apuração (49% dos participantes indicaram esse motivo), seguido de preocupação com retaliações profissionais (38%). Sobre as garantias mais importantes, destaca-se a proteção da identidade do denunciante (indicada por 77% dos participantes), seguida da certeza de que os fatos serão apurados (65%). Ressaltamos que apenas 8% deles consideram importante o uso de incentivos financeiros para o denunciante.

O custo para a administração. Paradoxalmente, os mesmos sistemas de denúncia utilizados para coibir irregularidades podem ser utilizados para o cometimento delas. É comum a ocorrência de denúncias com fins de calúnia e perseguição, especialmente por canais anônimos. De fato, o “Painel Resolveu?” mostra que 22% das denúncias anônimas são arquivadas ( versus 4% das identificadas) por uso de linguagem imprópria, indícios claros de uso para difamação e falta de fundamentação. Obviamente, isso gera uma sobrecarga nos sistemas de apuração, além de ter impactos negativos sobre a reputação de pessoas e organizações, de maneira injusta. Como mitigar a incidência de denúncias impróprias é uma questão em aberto, que pesquisas futuras podem endereçar.

Legislação e oportunidades de melhoria

A Lei nº 13.964 de 2019 acrescentou três novos parágrafos à Lei nº 13.608 de 2018, trazendo avanços em relação às proteções ao denunciante, como garantias contra quaisquer formas de retaliação e a tipificação de ilícito administrativo a realização de qualquer ação retaliatória.  A referida Lei aperfeiçoa antigos institutos, como o direito ao anonimato, e acrescenta um outro: a possibilidade de recompensa financeira. Contudo, a despeito do avanço conquistado, ainda não se pode sustentar a existência de um ambiente favorável a denúncias no Brasil, uma vez que o assunto ainda carece de regulamentação e de campanhas de divulgação sobre o tema.

Sistemas de denúncia são importantes aliados da administração em programas de gestão da integridade e combate à corrupção. Mas é preciso que servidores e cidadãos sejam devidamente instruídos para o uso efetivo dessa ferramenta. Especialmente no ambiente organizacional, esses sistemas precisam ser vistos como um último recurso. A literatura aponta que o uso indiscriminado de denúncias nas organizações pode corroer o tecido de confiança entre as pessoas, gerando rigidez organizacional e um comportamento burocrático disfuncional. Tudo indica que a melhor forma de promover a integridade nas organizações — prevenindo as irregularidades — é através de lideranças éticas e presentes e de uma cultura organizacional forte, onde as normas de integridade e valores públicos são constantemente reforçados.

*Gustavo M. Tavares é professor do Insper na área de comportamento organizacional e liderança. Tem especial interesse sobre temas comportamentais aplicados ao setor público.

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