Cota de solidariedade na habitação: o que já sabemos?
Inspirado em outras cidades, como Nova York e Paris, o instrumento exige compensações para a aprovação de empreendimentos imobiliários de grande porte
Publicado em 5 de maio de 2022 às, 09h00.
Por Bianca Tavolari*
Uma das grandes novidades do plano diretor de São Paulo aprovado em 2014 foi a criação da cota de solidariedade. Inspirado em outras cidades, como Nova York e Paris, o instrumento exige compensações para a aprovação de empreendimentos imobiliários de grande porte. A ideia original é obrigar o agente privado a destinar parte de seu empreendimento para habitação de interesse social (HIS). Alguns objetivos estavam no horizonte. Em primeiro lugar, aumentar a produção de unidades de habitação social. Em segundo, garantir empreendimentos com diversidade de classes sociais, já que uma parcela necessariamente deve ser destinada a moradores de mais baixa renda. Em terceiro, obrigar a construção de HIS em áreas que não são demarcadas para esta finalidade, como as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). Assim, garantiria não só o uso específico - habitação social - e o financiamento privado, mas também a localização.
O desenho da cota de solidariedade passou por diversos embates na Câmara de Vereadores. A cota de solidariedade que temos hoje obriga empreendimentos de mais de 20 mil m2 de área construída a destinar 10% de área para HIS. Mas, se preferir, o agente privado pode (i) construir o mesmo número de unidades em outro terreno, contanto que esteja na mesma macroárea; (ii) doar terreno para a prefeitura com o equivalente de 10% da área do terreno do empreendimento original; (iii) doar o valor equivalente a 10% do valor da área total do terreno ao Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB). Esta última possibilidade foi incluída pela Câmara.
Passados oito anos, estamos diante da revisão intermediária do plano diretor. Um diagnóstico sobre a implementação dos instrumentos foi divulgado pela prefeitura. O que já sabemos? Entre 2014 e 2020, apenas 33 empreendimentos utilizaram a cota de solidariedade. Quando olhamos os metadados, temos que 7 deles de fato construíram HIS, enquanto os outros 26 doaram o valor correspondente ao FUNDURB. Nenhum se valeu da alternativa de doação de terrenos. Entre os 7 empreendimentos que optaram por HIS, estamos diante de 506 unidades habitacionais previstas (e aqui há uma divergência numérica entre os metadados e o relatório do diagnóstico). Destas, apenas 263 estão de fato construídas. As obras ainda não foram concluídas nos demais empreendimentos.
Entre os 26 empreendimentos que doaram ao FUNDURB, temos o valor de R$ 54.075.392,94. Seria importante que o diagnóstico indicasse que o valor é referente a 20 empreendimentos - não há informação nos metadados em 6 deles. Com os dados disponíveis, podemos estimar quantas unidades teriam sido construídas se os agentes privados não tivessem a opção de doar. Há informação sobre as unidades totais para apenas 16 empreendimentos. Com o parâmetro de 10%, seriam 482 unidades construídas ou ao menos previstas nesse período. Por outro lado, à primeira vista, o valor de R$ 54 milhões pode parecer suficiente para que o poder público construa o mesmo número de unidades. Mas é preciso lembrar que o principal componente fica fora desta conta: o terreno bem localizado.
Os dados iniciais mostram que o atual desenho da cota de solidariedade é problemático. Precisa ser revisto se quisermos alcançar os objetivos inicialmente previstos. O baixo número de empreendimentos para uma cidade como São Paulo sugere que a linha de corte de 20 mil m2 de área construída é alta demais. A adesão à doação de recursos ao FUNDURB também impede o estímulo à habitação social em áreas bem localizadas e diversidade de moradores nos empreendimentos. O mapa (ver página 157) que geolocaliza os empreendimentos mostra que aqueles que optaram pela doação são mais centrais do que aqueles que de fato construíram unidades. A revisão do plano diretor é o momento decisivo para corrigir esta rota.
*Bianca Tavolari é professora do Insper, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e principal investigator do Maria Sibylla Merian Centre (Mecila). No Insper, co-coordena o Observatório do Plano Diretor e coordena o Núcleo de Questões Urbanas. Coordena a seção “As cidades e as coisas” na revista Quatro Cinco Um.