Contextos complexos, respostas sistêmicas: a pandemia nas favelas
A combinação de pobreza, desigualdade e superlotação desafia o poder público a desenhar políticas que protejam as populações mais vulneráveis
Publicado em 18 de agosto de 2020 às, 15h01.
Última atualização em 19 de agosto de 2020 às, 16h49.
Além dos devastadores custos globais da pandemia de covid-19, estimados em cerca de US$3 trilhões, a consequente crise socioeconômica escancarou as desigualdades do nosso país e impôs um impacto desproporcionalmente negativo às camadas mais vulneráveis da população. O distanciamento social e as boas práticas de higiene são consagradas ferramentas no combate às pandemias. No entanto, esses recursos aparentemente simples não estão disponíveis para comunidades que vivem em condições precárias. Como higienizar as mãos se falta água limpa e sabão? Como praticar o distanciamento social se 14,5% da população brasileira mais pobre vive em domicílios superlotados? Como não sair às ruas para trabalhar se faltam fontes estáveis de renda?
A altíssima complexidade resultante da combinação de pobreza, desigualdade e superlotação desafia o poder público a desenhar políticas que protejam as populações mais vulneráveis de maneira rápida e efetiva. No entanto, compreender o efeito dessas políticas em um ambiente tão complexo torna-se um desafio intimidador. Como podemos efetivamente analisar os potenciais efeitos de políticas para o combate à pandemia? Para responder a essa pergunta crucial, um grupo de 19 voluntários(as) – de pesquisadoras e professoras a gestores públicos e consultores – se formou organicamente com o objetivo de desenvolver um modelo matemático baseado em abordagens sistêmicas para simular os potenciais impactos de medidas para o combate à pandemia nas favelas do Rio de Janeiro e informar o processo de decisão pública.
Coletamos as medidas diretamente com líderes comunitários das favelas que fazem parte do movimento social “Favelas Contra o Corona", cuja missão é combater a desinformação que se alastra pelas comunidades e mitigar os impactos negativos da pandemia. Esses líderes, como porta-vozes de suas comunidades, conhecem profundamente as realidades e limitações que se impõem diante das favelas brasileiras. Assim, nosso modelo avaliou a efetividade de medidas envolvendo a transferência temporária de moradores das favelas, subsídio e suprimento de produtos de higiene e limpeza, desenvolvimento de estruturas emergenciais de saneamento nas favelas e expansão da capacidade de UTI. Todas essas medidas se influenciam mutuamente e de formas profundamente contraintuitivas, interligando nossos sistemas habitacionais, sanitários e de saúde pública. Abrir mão de uma abordagem sistêmica significa perder a visão das críticas interconexões entre esses múltiplos sistemas que estão simultaneamente em ação, levando a decisões públicas subótimas.
Ao avaliar tais medidas em favelas para diferentes cenários com base em dados socioeconômicos, demográficos e epidemiológicos disponíveis, o modelo matemático nos ajuda a entender que não existe uma “bala de prata” para o combate à pandemia. É somente através de uma combinação equilibrada das medidas propostas pelas próprias comunidades que alcançaremos efeitos significativos tanto no número de mortes evitadas quanto na disponibilidade de atendimento do sistema de saúde. O estudo completo está disponível abertamente. Os resultados evidenciam a profunda necessidade de uma resposta integrada e baseada nas melhores evidências, focada no alinhamento entre as diferentes funções públicas e no diálogo iterativo entre o governo e a sociedade civil. É preciso encarar a pandemia e seus efeitos duradouros nas populações vulneráveis do Brasil como um problema intrinsecamente complexo que exige uma abordagem sistêmica. Não há método infalível, não há solução fácil.