Cidades e a tentação da transferência de políticas públicas
Transferência de políticas públicas pode ser uma ferramenta poderosa e um desafio considerável para governos municipais
Publicado em 15 de abril de 2021 às, 10h00.
Última atualização em 15 de abril de 2021 às, 14h11.
Buscar se inspirar ou replicar políticas bem-sucedidas de outros governos não é exatamente uma novidade na área de políticas públicas. No entanto, esse movimento não é tão simples quanto parece. Em sua definição mais simples, transferência de políticas é o processo no qual conhecimento sobre políticas de um determinado tempo ou local é usado no desenvolvimento de políticas em outro contexto. Porém, o processo de transferência não se reduz apenas ao ‘copiar e colar’ uma política ou boa prática. Esse processo pode ser bem complexo.
Entre alguns teóricos, transferência de políticas é entendida enquanto um processo moderno de se fazer política pública. Alguns chegam a declarar que essa prática de troca entre governos se transformou em algo contínuo, alcançando níveis tão profundos e disseminados que hoje seria um processo irreversível, tornando anacrônica a ideia de políticas domésticas independentes. Ou seja, experiências e práticas subnacionais e internacionais são tão disseminadas que seria (hipoteticamente) improvável criar uma política sem algum tipo de influência ou inspiração externa.
Neste cenário, de constante troca, governos municipais (principalmente de grandes cidades), muito estimulados por desafios urbanos locais, estão transpondo os limites do subnacional e se convertendo também em atores no campo transnacional – além de buscarem inspirações em municípios próximos e do mesmo país, passam também a olhar para soluções adotadas em todo o mundo. Cidades são entes de particular importância já que a territorialização das políticas públicas, de forma geral, se dá no âmbito municipal.
Recai aos municípios uma grande parcela da responsabilidade em responder aos mais urgentes problemas urbanos atuais, como o considerável contingente urbano constituído por pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica. Para termos uma dimensão do problema, a ONU-Habitat calculava que em 2015 cerca de 1 bilhão de pessoas viviam em áreas vulneráveis em países menos desenvolvidos, representando 30% desse contingente urbano. A tendência é que se chegue a 2 bilhões em 2030. Esse cenário tem se agravado com outros dois grandes problemas globais de impacto particular nas cidades: as mudanças climáticas e a atual crise sanitária da pandemia do coronavírus (segundo o Relatório de Cidades da ONU-Habitat de 2020, 90% dos casos confirmados de covid-19 estão em áreas urbanas). São conjunturas que expõem e exacerbam as já críticas desigualdades urbanas.
É neste cenário que a transferência de políticas públicas se torna uma ferramenta atrativa para governos locais que buscam soluções para seus problemas mais complexos. No entanto, transferir uma política para um contexto diverso do qual ela foi originalmente desenhada apresenta vários desafios, obstáculos e riscos que devem ser levados em consideração para que ela se converta em uma política bem-sucedida após sua transferência. É possível emprestar boas soluções, mas é necessário adaptá-las e customizá-las às possibilidades e realidades locais do município adotante. Os desafios e algumas das formas de mitigar esses obstáculos serão tema de um próximo artigo.
*Ana Leticia Salla é pesquisadora e Mestre pelo Mestrado Profissional em Políticas Públicas do Insper (2021).