Aprender e praticar: os desafios das operações humanitárias
Segundo projeções, 135 milhões de pessoas podem encarar níveis críticos de fome como consequência da pandemia de coronavírus
Publicado em 19 de novembro de 2020 às, 15h00.
Última atualização em 19 de novembro de 2020 às, 20h09.
Se não agirmos rapidamente em escala global, as tenebrosas projeções de 135 milhões de pessoas encarando níveis críticos de fome se materializarão como consequência da pandemia de coronavírus, avisa o Programa Mundial de Alimentos da ONU, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 2020. Essas duras sequelas sociais deixam clara a relevância do árduo trabalho de heróis e heroínas que lutam contra fome, doenças, conflitos e desastres, dia após dia. Muitas vezes invisíveis aos olhos desatentos, organizações humanitárias atuam de forma decisiva para salvar vidas e evitar catástrofes mundo afora.
Por trás dessas organizações, há uma complexa parafernália operacional. Diferentemente de sua versão comercial, a logística humanitária lida com muitos desafios simultaneamente: objetivos ambíguos e conflitantes de diferentes atores públicos e privados, altíssimos níveis de urgência e ambientes fortemente politizados. A missão fundamental da logística humanitária é organizar, armazenar e entregar suprimentos básicos, como água, remédios, alimentos e abrigo às populações e regiões afetadas por desastres naturais ou emergências complexas.
Rolando Tomasini e Luk Van Wassenhove nos ensinam que as incansáveis e incessantes operações humanitárias se erguem em três sólidos princípios: humanidade, neutralidade e imparcialidade. A humanidade é o sentimento de benevolência que nos faz combater o sofrimento humano. A neutralidade garante que combateremos vieses fundamentais, não tomando partido em um dado conflito. E a imparcialidade nos convida a oferecer respostas humanitárias sem discriminação, priorizando as necessidades mais urgentes.
A ONU estima que aproximadamente 168 milhões de pessoas em 50 países necessitaram de ajuda humanitária somente em 2020. A tendência é que esse número cresça com os conflitos armados, tensões geopolíticas, epidemias, pandemias e desastres naturais aos quais estamos expostos. Pessoas que já são afetadas por crises humanitárias são particularmente suscetíveis aos efeitos negativos da atual pandemia e de outras eventuais crises sanitárias que enfrentarmos, local ou globalmente.
Essas populações, em geral, sofrem com uma combinação nefasta de fatores, como subnutrição, acesso inadequado a saneamento básico, métodos e suprimentos limitados de higiene e estigma social. Em contextos cada vez mais desafiadores, as organizações humanitárias enfrentam um dilema: como garantir ajuda humanitária rápida e confiável ao mesmo tempo em que se desenvolve capacidade e melhorias em processos e operações?
Modelos matemáticos buscam responder esse dilema de um ponto de vista sistêmico, considerando as intrincadas interdependências dos complexos contextos humanitários. Paulo Gonçalves mostra que quando as organizações humanitárias não são capazes de reter o aprendizado gerado com o trabalho de campo na linha de frente (“lições aprendidas”), estratégias que privilegiam respostas rápidas não serão bem-sucedidas no longo prazo, tornando-se ineficazes. É o famoso “melhora antes de piorar”. Por outro lado, se as organizações enfatizarem a gestão do conhecimento adquirido em campo, elas podem atingir alto desempenho consistente ao longo do tempo. Aqui é o “piora antes de melhorar”.
Essas e outras experiências demonstram a importância de se libertar de uma lógica de “combate a incêndios”, em que respondemos reativamente a cada emergência humanitária. Respostas bem-sucedidas não são improvisadas. São, fundamentalmente, fruto de um longo e intenso processo de aprendizado e preparação. Estratégias de mitigação passam por desenvolver políticas públicas que reduzem a vulnerabilidade das populações. E, para tudo aquilo que (ainda) não conseguirmos mitigar, devemos antecipadamente preparar nossos ativos, estoques, sistemas, pessoas e informação para a ação. Talvez não consigamos nunca eliminar o risco de um incêndio, mas, quando ocorrer, teremos ferramentas cada vez mais potentes para combatê-lo.