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A pandemia de covid-19 e o sistema prisional: um panorama geral do Brasil

"A pandemia escancara como a divulgação de informações incompletas induz a diagnósticos muito distantes da realidade das pessoas privadas de liberdade"

(Manuel Carlos Montenegro/Agência Brasil)
DR

Da Redação

Publicado em 26 de abril de 2022 às 09h00.

O conteúdo desse blog é gerenciado peloInsper Metricis, o núcleo do Insper especializado em realizar estudos sobre estratégias organizacionais e práticas de gestão envolvendo projetos com potencial de gerar alto impacto socioambiental.
Por Natalia Pires de Vasconcelos* eCarolina Cutrupi Ferreira**

No Brasil, desde a declaração pública de situação de pandemia pela Organização Mundial de Saúde em março de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez recomendações de medidas preventivas e fiscalizatórias aos juízes e tribunais brasileiros para redução de riscos epidemiológicos, principalmente entre pessoas que integram grupos de risco para a infecção (idosos, gestantes e com doenças crônicas). Além disso, passou a centralizar as informações a respeito das medidas adotadas para prevenção e tratamento da covid-19 no interior dos estabelecimentos prisionais. O Departamento Penitenciário Nacional (ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública) também passou a consolidar as notificações de contágio encaminhadas pelos órgãos estaduais de administração penitenciária.

Contudo, há divergência entre os dados divulgados pelo CNJ e pelo Depen (Departamento Penitenciário Nacional). Segundo o Depen, as taxas médias de contágio por covid-19 entre pessoas presas são inferiores àquelas registradas para o restante da população. Em todo o período pandêmico até o momento constam 66.407 casos positivos (8% da população prisional) e 286 óbitos (0,03%) entre pessoas presas, enquanto a população geral contabiliza mais de 30 milhões de casos (14% da população) e 661 mil mortes (0,3%). Já o CNJ divulgou um aumento de 225% em janeiro de 2022, no comparativo com a medição no mês anterior. Ao todo, foram 649 óbitos entre pessoas presas e servidores desde o início da pandemia (para efeito de comparação, aqui estão disponíveis informações sobre os Estados Unidos e Colômbia).

As divergências entre os números de casos e óbitos de pessoas presas revelam cisões profundas na forma de produção de informações e na própria gestão da assistência à saúde dentro do sistema prisional brasileiro. Enquanto as secretarias de saúde atualizam diariamente o número de casos e óbitos, mesmo que sem ampla testagem da população, órgãos prisionais estaduais passam meses sem atualizar seus números (apontamentos nessa linha foram feitos aqui e aqui, por exemplo).  Além da ampla falta de testagem constante e planejada, faltam dados de contágio e óbitos diários e desagregados a nível individual. Qualquer análise que pretenda entender o caminho da pandemia dentro das unidades prisionais, considerando o perfil epidemiológico das pessoas doentes e sadias, enfrenta a difícil tarefa de trabalhar com formas de coleta e metodologias variadas na produção de informações. Os números de casos e óbitos de pessoas presas apresentados pelo CNJ e pelo Depen divergem porque as fontes, abrangência, metodologias e periodicidade das contagens são distintas, cujos detalhes fogem ao escopo deste texto***.

Estas inconsistências de informações básicas sobre a infecção de covid-19 nas prisões brasileiras são apenas exemplos de problemas na produção de informações sobre o sistema prisional como um todo, o que afeta diretamente a construção de ações voltadas à garantia da saúde coletiva e de redução de riscos epidemiológicos das pessoas presas. No mais, representa mais uma faceta da invisibilidade desse grupo e seus familiares, que colecionam relatos de aumento de casos de violações de direitos humanos e violência nas unidades prisionais, como a privação de alimento e cuidado, especialmente durante o isolamento prolongado do período, em decorrência da suspensão das visitas por familiares.

A pandemia de covid-19 escancara como a divulgação de informações incompletas ou carentes de contextualização induz a diagnósticos muito distantes da realidade das pessoas privadas de liberdade. A despeito do esforço dos órgãos do sistema de justiça, organizações de sociedade civil e familiares em organizar dados sobre seus efeitos, as informações atualmente disponíveis são insuficientes para a construção de diagnósticos e medidas preventivas aos eventos, agravos ou casos de doenças (principalmente infecciosas) aos quais estas pessoas estão expostas. Não é exagero concluir que as pessoas presas ainda estão excluídas das políticas do Sistema Único de Saúde, seja pela ausência de informações consistentes e precisas, seja pela necessidade de construção de políticas públicas de saúde aptas a lidar com o cenário de superlotação, crescimento geométrico da população e a insalubridade das prisões.

*Natalia Pires de Vasconcelos é professora de Direito do Insper. Doutora em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo. Senior Research Fellow no Solomon Center of Health Law and Policy na Yale Law School. Pesquisadora do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT).

**Carolina Cutrupi Ferreira é doutora em Administração Pública pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EAESP/FGV). Mestre em Direito pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (Direito SP). Advogada.

***As bases de dados nacionais divergem até mesmo em relação ao número de pessoas privadas de liberdade. Enquanto o SISDEPEN registra para julho de 2021, 673.614 pessoas privadas de liberdade, o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do CNJ registra 918.164 para março de 2022. Essas diferenças podem ser explicadas pelos critérios de escolha de fontes, metodologias de coleta e periodicidade de alimentação, entre outros fatores. Sobre o tema, ver o trabalho de Ferreira, Carolina Cutrupi. Política penitenciária nacional (1976-2018): arranjos institucionais e instrumentos de produção estatística. 2021. Tese de Doutorado, EAESP-FGV.

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Por Natalia Pires de Vasconcelos* eCarolina Cutrupi Ferreira**

No Brasil, desde a declaração pública de situação de pandemia pela Organização Mundial de Saúde em março de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez recomendações de medidas preventivas e fiscalizatórias aos juízes e tribunais brasileiros para redução de riscos epidemiológicos, principalmente entre pessoas que integram grupos de risco para a infecção (idosos, gestantes e com doenças crônicas). Além disso, passou a centralizar as informações a respeito das medidas adotadas para prevenção e tratamento da covid-19 no interior dos estabelecimentos prisionais. O Departamento Penitenciário Nacional (ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública) também passou a consolidar as notificações de contágio encaminhadas pelos órgãos estaduais de administração penitenciária.

Contudo, há divergência entre os dados divulgados pelo CNJ e pelo Depen (Departamento Penitenciário Nacional). Segundo o Depen, as taxas médias de contágio por covid-19 entre pessoas presas são inferiores àquelas registradas para o restante da população. Em todo o período pandêmico até o momento constam 66.407 casos positivos (8% da população prisional) e 286 óbitos (0,03%) entre pessoas presas, enquanto a população geral contabiliza mais de 30 milhões de casos (14% da população) e 661 mil mortes (0,3%). Já o CNJ divulgou um aumento de 225% em janeiro de 2022, no comparativo com a medição no mês anterior. Ao todo, foram 649 óbitos entre pessoas presas e servidores desde o início da pandemia (para efeito de comparação, aqui estão disponíveis informações sobre os Estados Unidos e Colômbia).

As divergências entre os números de casos e óbitos de pessoas presas revelam cisões profundas na forma de produção de informações e na própria gestão da assistência à saúde dentro do sistema prisional brasileiro. Enquanto as secretarias de saúde atualizam diariamente o número de casos e óbitos, mesmo que sem ampla testagem da população, órgãos prisionais estaduais passam meses sem atualizar seus números (apontamentos nessa linha foram feitos aqui e aqui, por exemplo).  Além da ampla falta de testagem constante e planejada, faltam dados de contágio e óbitos diários e desagregados a nível individual. Qualquer análise que pretenda entender o caminho da pandemia dentro das unidades prisionais, considerando o perfil epidemiológico das pessoas doentes e sadias, enfrenta a difícil tarefa de trabalhar com formas de coleta e metodologias variadas na produção de informações. Os números de casos e óbitos de pessoas presas apresentados pelo CNJ e pelo Depen divergem porque as fontes, abrangência, metodologias e periodicidade das contagens são distintas, cujos detalhes fogem ao escopo deste texto***.

Estas inconsistências de informações básicas sobre a infecção de covid-19 nas prisões brasileiras são apenas exemplos de problemas na produção de informações sobre o sistema prisional como um todo, o que afeta diretamente a construção de ações voltadas à garantia da saúde coletiva e de redução de riscos epidemiológicos das pessoas presas. No mais, representa mais uma faceta da invisibilidade desse grupo e seus familiares, que colecionam relatos de aumento de casos de violações de direitos humanos e violência nas unidades prisionais, como a privação de alimento e cuidado, especialmente durante o isolamento prolongado do período, em decorrência da suspensão das visitas por familiares.

A pandemia de covid-19 escancara como a divulgação de informações incompletas ou carentes de contextualização induz a diagnósticos muito distantes da realidade das pessoas privadas de liberdade. A despeito do esforço dos órgãos do sistema de justiça, organizações de sociedade civil e familiares em organizar dados sobre seus efeitos, as informações atualmente disponíveis são insuficientes para a construção de diagnósticos e medidas preventivas aos eventos, agravos ou casos de doenças (principalmente infecciosas) aos quais estas pessoas estão expostas. Não é exagero concluir que as pessoas presas ainda estão excluídas das políticas do Sistema Único de Saúde, seja pela ausência de informações consistentes e precisas, seja pela necessidade de construção de políticas públicas de saúde aptas a lidar com o cenário de superlotação, crescimento geométrico da população e a insalubridade das prisões.

*Natalia Pires de Vasconcelos é professora de Direito do Insper. Doutora em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo. Senior Research Fellow no Solomon Center of Health Law and Policy na Yale Law School. Pesquisadora do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT).

**Carolina Cutrupi Ferreira é doutora em Administração Pública pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EAESP/FGV). Mestre em Direito pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (Direito SP). Advogada.

***As bases de dados nacionais divergem até mesmo em relação ao número de pessoas privadas de liberdade. Enquanto o SISDEPEN registra para julho de 2021, 673.614 pessoas privadas de liberdade, o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do CNJ registra 918.164 para março de 2022. Essas diferenças podem ser explicadas pelos critérios de escolha de fontes, metodologias de coleta e periodicidade de alimentação, entre outros fatores. Sobre o tema, ver o trabalho de Ferreira, Carolina Cutrupi. Política penitenciária nacional (1976-2018): arranjos institucionais e instrumentos de produção estatística. 2021. Tese de Doutorado, EAESP-FGV.

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