30 anos do Massacre do Carandiru: as disputas urbanas
Três décadas depois, não houve responsabilização criminal definitiva pela morte de ao menos 111 pessoas e de dezenas de pessoas gravemente feridas
Da Redação
Publicado em 16 de novembro de 2022 às 09h00.
Por Bianca Tavolari*, Maíra Rocha Machado** e Vitor Nisida***
Instituições prisionais são parte integrante da cidade. Essa afirmação pode parecer evidente, mas as consequências de compreender presídios como pertencentes às cidades não são nada triviais, especialmente quando a perspectiva articula políticas de segurança pública e o planejamento urbano.
O dia 2 de outubro deste ano marcou os 30 anos do Massacre do Carandiru. Três décadas depois, não houve responsabilização criminal definitiva pela morte de ao menos 111 pessoas e de dezenas de pessoas gravemente feridas; apenas 25 famílias foram indenizadas. Se há tarefas claras e urgentes no tocante às respostas jurisdicionais, a chave de articulação entre prisão e cidade nos coloca alguns pontos para reflexão.
Em primeiro lugar, a decisão de desativar um presídio já está, desde o início, em uma intersecção entre política prisional e planejamento urbano. A desativação implica, ao mesmo tempo, realocar pessoas privadas de liberdade e decidir o que será feito do edifício que deixa de cumprir sua função. No caso da Casa de Detenção do Carandiru, a desativação foi um projeto de décadas - o primeiro registro documental na Assembleia Legislativa data de 1978. Juntamente com a necessidade de criar novas vagas prisionais, os planos para a extensa área do bairro de Santana também eram diversos. Em 1993, a primeira gestão estadual que encampou a desativação em sua agenda, após o Massacre, propôs o arranjo de exploração do terreno por agentes imobiliários privados e criou as condições para que o imóvel público pudesse ser vendido.
Como sabemos, o projeto fracassou - o imóvel continua público e abriga o Parque da Juventude. Mas os distintos usos urbanos foram organizados numa disputa travada na Câmara Municipal de São Paulo em torno dos parâmetros construtivos e de zoneamento. A atividade imobiliária dependia não só da conversão da titularidade do terreno, mas também de uma regulação que permitisse usos residenciais e comerciais, parcelamento de lotes e, especialmente, parâmetros construtivos com coeficientes de aproveitamento urbano mais altos. Diversos projetos de lei foram propostos em uma primeira leva de disputas em 1996 e em uma segunda rodada, em 2001. Torres residenciais, torres de estacionamento e a implementação de uma universidade popular foram algumas das propostas formuladas, debatidas e rejeitadas por vereadores e vereadoras.
Em segundo lugar - e em conexão direta com o primeiro ponto -, desativar e demolir não são necessariamente sinônimos. No caso do Carandiru, demolir foi uma escolha. Os pavilhões 6, 8 e 9 foram os primeiros, em 8 de dezembro de 2002, e a implosão ganhou ares de espetáculo, transmitida como o fim de uma era. Os pavilhões 2 e 5 foram demolidos três anos depois, em julho de 2005. Os pavilhões 4 e 7, únicos remanescentes, abrigam hoje duas escolas técnicas.
As escolhas sobre o que demolir e o que preservar nos levam ao terceiro ponto desta intersecção. Em 1997, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico deu início ao processo de tombamento do Complexo Penitenciário do Carandiru, com foco voltado à Penitenciária do Estado e não propriamente à Casa de Detenção. Tombar é reconhecer valor a um bem - seja artístico, cultural ou paisagístico. As demolições em 2002 e 2005 são reveladoras de uma política de patrimônio que só reconheceu a importância do Massacre para a memória coletiva muito depois, quando o pavilhão 9 já havia se tornado escombro.
Por fim, para além da dimensão específica do tombamento, políticas de memória passam pela organização e produção do espaço urbano. O Carandiru não é coisa do passado, é chaga aberta, mesmo que as decisões de desativar, demolir, cimentar e fazer parque tenham procurado apagar suas marcas mais visíveis na cidade.
*Bianca Tavolari é professora do Insper, pesquisadora do CEBRAP e do Mecila. No Insper, coordena o Núcleo de Questões Urbanas e co-coordena o Observatório do Plano Diretor.
**Maíra Rocha Machado é professora da graduação, mestrado e doutorado da FGV Direito SP.
***Vitor Nisida é arquiteto urbanista e pesquisador do Instituto Pólis, do LabLaje e do Núcleo de Questões Urbanas do Insper.
Bianca Tavolari, Maíra Rocha Machado e Vitor Nisida desenvolvem o projeto de pesquisa “Disputas urbanas e político-criminais ao redor da desativação do Carandiru”.
Por Bianca Tavolari*, Maíra Rocha Machado** e Vitor Nisida***
Instituições prisionais são parte integrante da cidade. Essa afirmação pode parecer evidente, mas as consequências de compreender presídios como pertencentes às cidades não são nada triviais, especialmente quando a perspectiva articula políticas de segurança pública e o planejamento urbano.
O dia 2 de outubro deste ano marcou os 30 anos do Massacre do Carandiru. Três décadas depois, não houve responsabilização criminal definitiva pela morte de ao menos 111 pessoas e de dezenas de pessoas gravemente feridas; apenas 25 famílias foram indenizadas. Se há tarefas claras e urgentes no tocante às respostas jurisdicionais, a chave de articulação entre prisão e cidade nos coloca alguns pontos para reflexão.
Em primeiro lugar, a decisão de desativar um presídio já está, desde o início, em uma intersecção entre política prisional e planejamento urbano. A desativação implica, ao mesmo tempo, realocar pessoas privadas de liberdade e decidir o que será feito do edifício que deixa de cumprir sua função. No caso da Casa de Detenção do Carandiru, a desativação foi um projeto de décadas - o primeiro registro documental na Assembleia Legislativa data de 1978. Juntamente com a necessidade de criar novas vagas prisionais, os planos para a extensa área do bairro de Santana também eram diversos. Em 1993, a primeira gestão estadual que encampou a desativação em sua agenda, após o Massacre, propôs o arranjo de exploração do terreno por agentes imobiliários privados e criou as condições para que o imóvel público pudesse ser vendido.
Como sabemos, o projeto fracassou - o imóvel continua público e abriga o Parque da Juventude. Mas os distintos usos urbanos foram organizados numa disputa travada na Câmara Municipal de São Paulo em torno dos parâmetros construtivos e de zoneamento. A atividade imobiliária dependia não só da conversão da titularidade do terreno, mas também de uma regulação que permitisse usos residenciais e comerciais, parcelamento de lotes e, especialmente, parâmetros construtivos com coeficientes de aproveitamento urbano mais altos. Diversos projetos de lei foram propostos em uma primeira leva de disputas em 1996 e em uma segunda rodada, em 2001. Torres residenciais, torres de estacionamento e a implementação de uma universidade popular foram algumas das propostas formuladas, debatidas e rejeitadas por vereadores e vereadoras.
Em segundo lugar - e em conexão direta com o primeiro ponto -, desativar e demolir não são necessariamente sinônimos. No caso do Carandiru, demolir foi uma escolha. Os pavilhões 6, 8 e 9 foram os primeiros, em 8 de dezembro de 2002, e a implosão ganhou ares de espetáculo, transmitida como o fim de uma era. Os pavilhões 2 e 5 foram demolidos três anos depois, em julho de 2005. Os pavilhões 4 e 7, únicos remanescentes, abrigam hoje duas escolas técnicas.
As escolhas sobre o que demolir e o que preservar nos levam ao terceiro ponto desta intersecção. Em 1997, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico deu início ao processo de tombamento do Complexo Penitenciário do Carandiru, com foco voltado à Penitenciária do Estado e não propriamente à Casa de Detenção. Tombar é reconhecer valor a um bem - seja artístico, cultural ou paisagístico. As demolições em 2002 e 2005 são reveladoras de uma política de patrimônio que só reconheceu a importância do Massacre para a memória coletiva muito depois, quando o pavilhão 9 já havia se tornado escombro.
Por fim, para além da dimensão específica do tombamento, políticas de memória passam pela organização e produção do espaço urbano. O Carandiru não é coisa do passado, é chaga aberta, mesmo que as decisões de desativar, demolir, cimentar e fazer parque tenham procurado apagar suas marcas mais visíveis na cidade.
*Bianca Tavolari é professora do Insper, pesquisadora do CEBRAP e do Mecila. No Insper, coordena o Núcleo de Questões Urbanas e co-coordena o Observatório do Plano Diretor.
**Maíra Rocha Machado é professora da graduação, mestrado e doutorado da FGV Direito SP.
***Vitor Nisida é arquiteto urbanista e pesquisador do Instituto Pólis, do LabLaje e do Núcleo de Questões Urbanas do Insper.
Bianca Tavolari, Maíra Rocha Machado e Vitor Nisida desenvolvem o projeto de pesquisa “Disputas urbanas e político-criminais ao redor da desativação do Carandiru”.