Riscos climáticos e o futuro do setor de seguros e previdência
SUSEP lança consulta pública para fomentar atuação mais sustentável do mercado segurador
Da Redação
Publicado em 7 de março de 2022 às 09h47.
Rebeca Rocha, Miriam Garcia e Gustavo Pinheiro*
O recente ‘ boom do ESG’ surgiu como uma resposta à forma como a degradação ambiental tem afetado o sistema financeiro: estima-se que eventos climáticos catastróficos, potencializados pela mudança do clima, tenham causado perdas ao setor de seguros superiores a US$ 105 bilhões em 2021, apenas nos Estados Unidos.
Os riscos relacionados à mudança do clima já são uma realidade, e reguladores em todo o planeta já acordaram para os potenciais impactos sistêmicos da crise climática. Há uma corrida em curso no sistema financeiro global, e os avanços regulatórios começam a ser acompanhados pelos reguladores brasileiros.
Em setembro do ano passado, o Banco Central promulgou um pacote de regulações para a integração de riscos climáticos, sociais e ambientais pelas instituições financeiras. Três meses depois, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) fez um primeiro movimento para orientar a divulgação de informações por empresas listadas em bolsa sobre aspectos ESG.
O setor de seguros brasileiro agora dá o primeiro passo através da consulta pública lançada pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) no fim de 2021 e que apresenta requisitos de sustentabilidade a serem observados pelas sociedades seguradoras, entidades abertas de previdência complementar (EAPCs), sociedades de capitalização e resseguradores locais. O prazo para contribuições para a consulta pública se encerra na próxima segunda-feira (07/03).
A minuta de circular proposta pela SUSEP é positiva ao integrar riscos relacionados à clima, sociais, ambientais e de sustentabilidade ao arcabouço de gestão de riscos de seus regulados. O texto também trata da Política de Sustentabilidade e das diretrizes para o Relatório de Sustentabilidade que deverá ser publicado pelas reguladas. O nível de exigência varia de acordo com o porte da instituição, e também determina requisitos obrigatórios e facultativos.
A SUSEP cumpre seu papel ao criar apetite institucional para a integração da gestão de riscos e a identificação de oportunidades. Responde ao desafio de preparar o setor para os impactos da crise climática e assim contribuir para a estabilidade financeira. A formalização das práticas ESG inaugurará uma dinâmica de incentivos e possibilitará a responsabilização de atos em desconformidade.
A regulação proposta segue recomendações da Força-Tarefa para Divulgações Financeiras Relacionadas ao Clima (TCFD), criada no contexto do G-20 para a divulgação de informações mais completas e estruturadas para riscos climáticos. Todavia, tal qual feito pelo Banco Central, adota-se o princípio de “TCFD ampliada”, em que o framework é adaptado à divulgação dos demais riscos, uma inovação brasileira.
O alinhamento das regulações financeiras à TCFD é essencial, mas não suficiente. Apesar de positiva, não está alinhada aos padrões de ambição recomendados pela ciência. Na trajetória de divulgação de informações corporativas, riscos climáticos são a porta de entrada para uma compreensão mais profunda dos impactos dos negócios sobre as pessoas e o planeta.
Na versão atual, apesar da menção a projeções de longo prazo, não é sinalizada ou encorajada a definição de planos de transição compatíveis com o cenário de 1,5ºC, conforme recomendado pela melhor ciência disponível. Tal condição é indispensável para que alcancemos os objetivos do Acordo de Paris, limitando o aquecimento global ao teto de 1.5oC até o fim deste século e evitando as piores consequências da mudança do clima. Este limite deve ser perseguido para otimizarmos as chances de limitar perdas e danos para os ecossistemas, a sociedade e a economia. Requer que todos os atores econômicos alcancem emissões líquidas zero (net-zero) até 2050, e requer que na segunda metade do século a economia global seja capaz de capturar parte dos gases de efeito estufa da atmosfera do planeta.
O texto proposto pela SUSEP também peca ao não obrigar a divulgação das metas utilizadas pelas reguladas para avaliar e gerir riscos e oportunidades relacionados às mudanças climáticas. Tampouco requer a divulgação da performance da instituição no cumprimento de suas metas. A divulgação de metas pelas reguladas é fundamental para a transparência e o monitoramento de ações climáticas e deveria ser incluída na versão final da regulação a ser promulgada.
O informe de oportunidades no relatório de sustentabilidade também foi colocado como opcional, seguindo um perigoso precedente estabelecido pelo Banco Central. A TCFD baseia-se no binômio risco-oportunidade e na falta de detalhamento sobre que oportunidades o negócio identifica na transição para uma economia de baixo carbono lega aos investidores e outros usuários da informação divulgada uma imagem incompleta da situação e sobre a estratégia da empresa.
O caminho da regulação
A SUSEP foi o primeiro regulador brasileiro a comprometer-se a promover o diálogo sobre a TCFD e a atender às suas recomendações, poucos meses depois de seu lançamento. Plataformas de divulgação ambiental corporativa, como o CDP, também estão alinhadas às recomendações desde 2018. Especialmente as reguladas de maior porte já se encontram familiarizadas com essas exigências e poderiam inclusive antecipar os prazos de implementação propostos pela SUSEP.
A publicação da circular da SUSEP para integração dos riscos de sustentabilidade, com destaque para os riscos climáticos, é um primeiro, forte e claro sinal para o mercado de seguros sobre a necessidade de se buscar uma economia descarbonizada e resiliente. Apesar disso, ainda há necessidade de aprimoramento do texto proposto, eliminando lacunas, evitando brechas e fortalecendo os instrumentos que promovam a ação climática alinhada à melhor ciência disponível.
Ao promover a efetiva integração desses riscos nos processos de gestão e de governação das reguladas, a SUSEP fomentará tomadas de decisão ótimas, que consideram as variáveis sociais, ambientais e climáticas. Isso mitigará riscos e ampliará as oportunidades para que o mercado de seguros se desenvolva no país evitando as armadilhas da crise climática.
O desafio colocado para o setor de seguros neste século é sem precedentes, a regulação é o primeiro passo de uma jornada que se desenvolverá com a implementação das novas regras e sua revisão periódica para adequação aos desdobramentos da crise climática. O futuro do setor depende das decisões dos reguladores e da qualidade da implementação pelas reguladas.
*Rebeca Rocha é analista de Finanças Sustentáveis do CDP América Latina; Miriam Garcia é gerente sênior de Políticas Públicas do CDP América Latina; e Gustavo Pinheiro é coordenador do Portfólio de Economia de Baixo Carbono do Instituto Clima e Sociedade (iCS).
Rebeca Rocha, Miriam Garcia e Gustavo Pinheiro*
O recente ‘ boom do ESG’ surgiu como uma resposta à forma como a degradação ambiental tem afetado o sistema financeiro: estima-se que eventos climáticos catastróficos, potencializados pela mudança do clima, tenham causado perdas ao setor de seguros superiores a US$ 105 bilhões em 2021, apenas nos Estados Unidos.
Os riscos relacionados à mudança do clima já são uma realidade, e reguladores em todo o planeta já acordaram para os potenciais impactos sistêmicos da crise climática. Há uma corrida em curso no sistema financeiro global, e os avanços regulatórios começam a ser acompanhados pelos reguladores brasileiros.
Em setembro do ano passado, o Banco Central promulgou um pacote de regulações para a integração de riscos climáticos, sociais e ambientais pelas instituições financeiras. Três meses depois, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) fez um primeiro movimento para orientar a divulgação de informações por empresas listadas em bolsa sobre aspectos ESG.
O setor de seguros brasileiro agora dá o primeiro passo através da consulta pública lançada pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) no fim de 2021 e que apresenta requisitos de sustentabilidade a serem observados pelas sociedades seguradoras, entidades abertas de previdência complementar (EAPCs), sociedades de capitalização e resseguradores locais. O prazo para contribuições para a consulta pública se encerra na próxima segunda-feira (07/03).
A minuta de circular proposta pela SUSEP é positiva ao integrar riscos relacionados à clima, sociais, ambientais e de sustentabilidade ao arcabouço de gestão de riscos de seus regulados. O texto também trata da Política de Sustentabilidade e das diretrizes para o Relatório de Sustentabilidade que deverá ser publicado pelas reguladas. O nível de exigência varia de acordo com o porte da instituição, e também determina requisitos obrigatórios e facultativos.
A SUSEP cumpre seu papel ao criar apetite institucional para a integração da gestão de riscos e a identificação de oportunidades. Responde ao desafio de preparar o setor para os impactos da crise climática e assim contribuir para a estabilidade financeira. A formalização das práticas ESG inaugurará uma dinâmica de incentivos e possibilitará a responsabilização de atos em desconformidade.
A regulação proposta segue recomendações da Força-Tarefa para Divulgações Financeiras Relacionadas ao Clima (TCFD), criada no contexto do G-20 para a divulgação de informações mais completas e estruturadas para riscos climáticos. Todavia, tal qual feito pelo Banco Central, adota-se o princípio de “TCFD ampliada”, em que o framework é adaptado à divulgação dos demais riscos, uma inovação brasileira.
O alinhamento das regulações financeiras à TCFD é essencial, mas não suficiente. Apesar de positiva, não está alinhada aos padrões de ambição recomendados pela ciência. Na trajetória de divulgação de informações corporativas, riscos climáticos são a porta de entrada para uma compreensão mais profunda dos impactos dos negócios sobre as pessoas e o planeta.
Na versão atual, apesar da menção a projeções de longo prazo, não é sinalizada ou encorajada a definição de planos de transição compatíveis com o cenário de 1,5ºC, conforme recomendado pela melhor ciência disponível. Tal condição é indispensável para que alcancemos os objetivos do Acordo de Paris, limitando o aquecimento global ao teto de 1.5oC até o fim deste século e evitando as piores consequências da mudança do clima. Este limite deve ser perseguido para otimizarmos as chances de limitar perdas e danos para os ecossistemas, a sociedade e a economia. Requer que todos os atores econômicos alcancem emissões líquidas zero (net-zero) até 2050, e requer que na segunda metade do século a economia global seja capaz de capturar parte dos gases de efeito estufa da atmosfera do planeta.
O texto proposto pela SUSEP também peca ao não obrigar a divulgação das metas utilizadas pelas reguladas para avaliar e gerir riscos e oportunidades relacionados às mudanças climáticas. Tampouco requer a divulgação da performance da instituição no cumprimento de suas metas. A divulgação de metas pelas reguladas é fundamental para a transparência e o monitoramento de ações climáticas e deveria ser incluída na versão final da regulação a ser promulgada.
O informe de oportunidades no relatório de sustentabilidade também foi colocado como opcional, seguindo um perigoso precedente estabelecido pelo Banco Central. A TCFD baseia-se no binômio risco-oportunidade e na falta de detalhamento sobre que oportunidades o negócio identifica na transição para uma economia de baixo carbono lega aos investidores e outros usuários da informação divulgada uma imagem incompleta da situação e sobre a estratégia da empresa.
O caminho da regulação
A SUSEP foi o primeiro regulador brasileiro a comprometer-se a promover o diálogo sobre a TCFD e a atender às suas recomendações, poucos meses depois de seu lançamento. Plataformas de divulgação ambiental corporativa, como o CDP, também estão alinhadas às recomendações desde 2018. Especialmente as reguladas de maior porte já se encontram familiarizadas com essas exigências e poderiam inclusive antecipar os prazos de implementação propostos pela SUSEP.
A publicação da circular da SUSEP para integração dos riscos de sustentabilidade, com destaque para os riscos climáticos, é um primeiro, forte e claro sinal para o mercado de seguros sobre a necessidade de se buscar uma economia descarbonizada e resiliente. Apesar disso, ainda há necessidade de aprimoramento do texto proposto, eliminando lacunas, evitando brechas e fortalecendo os instrumentos que promovam a ação climática alinhada à melhor ciência disponível.
Ao promover a efetiva integração desses riscos nos processos de gestão e de governação das reguladas, a SUSEP fomentará tomadas de decisão ótimas, que consideram as variáveis sociais, ambientais e climáticas. Isso mitigará riscos e ampliará as oportunidades para que o mercado de seguros se desenvolva no país evitando as armadilhas da crise climática.
O desafio colocado para o setor de seguros neste século é sem precedentes, a regulação é o primeiro passo de uma jornada que se desenvolverá com a implementação das novas regras e sua revisão periódica para adequação aos desdobramentos da crise climática. O futuro do setor depende das decisões dos reguladores e da qualidade da implementação pelas reguladas.
*Rebeca Rocha é analista de Finanças Sustentáveis do CDP América Latina; Miriam Garcia é gerente sênior de Políticas Públicas do CDP América Latina; e Gustavo Pinheiro é coordenador do Portfólio de Economia de Baixo Carbono do Instituto Clima e Sociedade (iCS).