As três lições do bloqueio de compra de carne do Carrefour francês
A decisão do CEO do grande grupo varejista europeu revela verdades profundas sobre o protecionismo e sobre nossas fragilidades
Publicado em 22 de novembro de 2024 às, 14h21.
Última atualização em 22 de novembro de 2024 às, 14h22.
Existem três importantes lições a serem aprendidas com a decisão recente do CEO do Carrefour francês de suspender compras de carne do Mercosul. A primeira lição, a mais óbvia, é que o protecionismo agrícola dos países está bem forte. E tem influência política de sobra para impor suas pressões aos dirigentes de Estado e de grandes grupos empresariais. O agronegócio europeu, especialmente o francês, exerce uma influência significativa nas decisões políticas tanto na França quanto na União Europeia. Um exemplo recente é a resistência francesa ao acordo entre Mercosul e União Europeia, amplamente atribuída à pressão de agricultores franceses.
O setor agrícola da França, composto por milhares de pequenos produtores, tem poderosos sindicatos como a FNSEA, que frequentemente exigem proteção contra a concorrência externa e flexibilização de normas ambientais. Essas demandas levaram o governo de Emmanuel Macron a se posicionar contra o acordo comercial e adotar medidas para proteger os interesses locais, como barrar produtos agrícolas do Mercosul sob justificativa ambiental, mas com claras motivações protecionistas. Além disso, os agricultores franceses realizam protestos regulares, que incluem bloqueios de estradas e ações contra mercadorias importadas, forçando o governo a ceder a diversas demandas, como subsídios e ajustes regulatórios que favorecem o setor nacional.
A segunda lição, menos comentada, é que esse protecionismo está acirrado por uma crise generalizada de produção provocada pelas mudanças climáticas. Os eventos extremos climáticos têm impactado severamente a produção agrícola e pecuária na Europa. Na pecuária, ondas de calor prolongadas reduziram a disponibilidade de água e pastagens, levando a um aumento nos custos de alimentação animal. Em 2022, por exemplo, uma seca histórica afetou 47% do continente, prejudicando severamente a produção de alimentos para o gado, como o feno, e elevando os preços dos insumos.
Além disso, inundações frequentes em regiões como a Alemanha e a Bélgica resultaram na perda de infraestrutura rural e rebanhos, colocando em risco a subsistência de pequenos produtores actos climáticos têm pressionado os agricultores europeus a adotarem novas práticas e a buscar maior apoio político para mitigar os danos.
Mas a terceira lição é a mais importante para o Brasil. Nesse cenário de conflito e pressão, onde o Brasil deve trabalhar para defender seu agro e expandir nossa capacidade competitiva, estamos desnecessariamente vulneráveis. Nós temos uma fragilidade ambiental. A decisão do Carrefour reflete a pressão de agricultores franceses que desejam proteger seus mercados locais da concorrência de países como o Brasil, onde a produção é mais eficiente. Mas o Brasil fica vulnerável toda vez que se invoca - com maior ou menor sinceridade - uma preocupação ambiental.
O discurso ambiental ganhou destaque nas respostas de autoridades brasileiras. O Ministério da Agricultura (MAPA) defendeu a reputação dos produtos nacionais, destacando a qualidade, sanidade e sustentabilidade da carne exportada. Já a Associação Brasileira de Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec) ressaltou o papel do Brasil como líder global em carne bovina e o compromisso do setor com padrões rigorosos. Embora essas declarações sejam válidas, o episódio também trouxe à tona uma fragilidade estrutural: a conexão da produção brasileira com o desmatamento ilegal na Amazônia.
O desmatamento na Amazônia, que é amplamente associado à abertura de áreas para pastagens, continua a ser um ponto de crítica internacional. Estudos recentes mostram que mais de 90% desse desmatamento é ilegal. A falta de rastreabilidade completa na cadeia produtiva ainda é um desafio para exportadores brasileiros, como demonstrado pelo Radar Verde, o único indicador independente de rastreabilidade da carne brasileira para evitar desmatamento na Amazônia. Um levantamento recente do Radar Verde apontou que nenhuma empresa brasileira exportadora de carne para a Europa consegue garantir controle total de sua cadeia. Com novas regulamentações europeias exigindo comprovação de que os produtos não estão associados ao desmatamento, o Brasil corre o risco de perder competitividade nesses mercados.
Apesar dos desafios, a pecuária brasileira não depende do desmatamento para crescer. Há extensas áreas já abertas e subutilizadas que poderiam ser aproveitadas de forma sustentável. Empresas do setor estão avançando na regularização de fornecedores e na exclusão de criminosos das cadeias produtivas, mas o processo é lento. Enquanto isso, grandes compradores e varejistas poderiam acelerar a transformação, adotando políticas de compra mais exigentes e utilizando ferramentas como o Radar Verde para monitorar o progresso.
A pecuária brasileira está em um momento crítico. É essencial decidir entre manter vínculos com práticas ambientalmente prejudiciais ou assumir a liderança na transição para um modelo sustentável. O primeiro passo é abraçar a transparência e observar os indicadores independentes como monitores do processo de melhoria do setor. Essa mudança não é apenas necessária para atender às exigências éticas e ambientais, mas também para garantir acesso contínuo a mercados globais exigentes e consolidar o Brasil como líder em produção responsável.