O líder de hoje tem que estar preparado para antever os desafios do futuro
Na coluna desta semana, conheça a história de Elías Camacho, Diretor Financeiro e Administrativo para a América Latina na Winterhalter Gastronom
Publicado em 29 de abril de 2022 às, 16h14.
Por Fabiana Monteiro
Sou espanhol, mas nasci na França e moro na cidade de São Paulo desde 2014. Logo contarei como cheguei até aqui. Mas, antes, quero, brevemente, falar um pouco sobre mim. Meus pais se mudaram para a região de Lille, próximo à fronteira com a Bélgica, onde nasci, em 1975. Deveria ser por um curto período, mas acabei ficando pelos vinte anos seguintes. Lá, fiz toda a minha educação até chegar à universidade. Sou, desde que vim ao mundo, um ser humano multicultural. A língua falada em casa era a espanhola, mas muito cedo tive contato com a cultura francesa.
Duas línguas significam duas formas de pensar. Não se trata apenas de traduzir uma palavra ou frase para outro idioma, mas uma forma diferente de se expressar ou apresentar uma ideia. Além disso, mantinha contato com crianças portuguesas, italianas e de países do Leste Europeu, pois a França é um país que recebe muitos imigrantes. Assim, sou muito grato por ter tido a sorte de ter vivenciado essa proximidade com tantas culturas.
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Na França, fiz meu primeiro ciclo da educação universitária, conquistando minha graduação em economia na Universidade de Lille. Depois, decidi voltar para a Espanha, porque queria ter um pouco mais de contato com minhas origens. Foi quando cursei uma licenciatura em administração de empresas e um master em tributação, ambos na Universidade de Alicante, cidade portuária da região do Mediterrâneo. Nessa fase, veio meu primeiro desafio, que foi terminar minha formação superior. Quando estava estudando, tinha de me sustentar financeiramente e, portanto, precisava me dividir entre estudar e, simultaneamente, lutar para obter renda. Naquela época, em 1995, era um pouco mais complicado, porque o curso era diurno. Assim, só sobrava o período noturno para trabalhar.
Meus primeiros empregos foram como recepcionista de hotéis à noite. Assim, tinha o dia “livre” para dormir de manhã e frequentar as aulas à tarde. Por experiência própria, digo que trabalho noturno é bem pesado e ruim, evidentemente, para a saúde. O corpo não descansa. Muitas vezes tive prova de manhã, saía do trabalho e ia direto para a faculdade.
Com o tempo, fui passando por outros empregos e comecei a trabalhar em uma agência bancária com um horário bem interessante: começava às 8h e saía às 15h. O único problema era que ficava a 120 quilômetros da minha casa, ou uma hora e vinte minutos dirigindo. Quero destacar essa experiência, pois é um ponto interessante de minha vida. Nessa época, usava 60% do meu salário com gasolina; e os outros 40%, com o aluguel. E ainda precisava de dinheiro para a alimentação e demais contas que temos na manutenção de uma casa. Enfim, somando tudo, eu gastava mais do que ganhava.
Alguns poderiam me dizer: “Elías, você é bobo! Você não sabe fazer contas? Afinal, você é ou não um administrador de empresas?”. Mas, essa seria uma visão de curto prazo e eu estava olhando lá na frente. Sabia que eu estava investindo em conhecimento. Eu estava em um banco; era uma forma de trabalho organizada, na qual ia aprender muito. Além disso, eu sonhava em ser efetivado. E, por fim, caso aquela instituição não tivesse disponibilidade, eu estava criando um currículo com uma experiência que era mais interessante do que aquilo que tinha feito antes, trabalhando em hotéis. Fiz o investimento certo, consegui levar estudo e trabalho simultaneamente e, no final de tudo, alcancei meu objetivo.
Esse banco era o Bilbao y Vizcaya (BBV), que se fundiria em 1999 com o Banco Argentaria para dar origem ao BBVA. Como caixa, eu conhecia o sistema informático da companhia, que as novas agências, surgida a partir da fusão, precisariam usar. Assim, fui designado para treinar muita gente que atendia os clientes. Passava duas ou três semanas em cada agência, vivendo sempre uma experiência diferente, pois, em cada uma dela, encontrava pessoas diferentes, diretores com formas diferentes de dirigir, e isso estava sendo um aprendizado muito valioso. Lá fiquei até 2001.
A chegada ao Brasil
Passei 15 anos na Espanha fazendo muitas coisas. Desenvolvi-me na área tributária e depois na contabilidade e controladoria. Trabalhei para os setores público e privado. Depois desse tempo, a vida me levou a mudar de novo, dessa vez para a Inglaterra, onde morei por dois anos, e depois para os Estados Unidos, onde fiquei mais um ano. Aprender inglês era uma tarefa pendente para mim e que não podia mais adiar. E a melhor forma de aprender uma língua é estar no país onde ela é falada e usá-la todos os dias a todo momento. Depois disso, retornei à Europa, me estabelecendo inicialmente na Espanha e sendo enviado em seguida, novamente, para fazer auditoria interna na França e na Inglaterra, até aparecer uma oportunidade no Brasil. É sobre as circunstâncias que me trouxeram para cá que quero falar agora.
Antes de vir para o Brasil, estava trabalhando no Cupa Group, multinacional que tem muitas atividades. Uma delas é a incorporação imobiliária. Atuava desde abril de 2013 como auditor interno e viajava para vários países, em virtude de minha habilidade com línguas e meu conhecimento de setores bem diversos. Um ano e meio depois, propuseram-me uma transferência para o Brasil, onde uma das empresas do grupo estava fazendo dois tipos de incorporação: uma do programa Minha Casa, Minha Vida e outra de alto padrão. Como o profissional que estava aqui voltou para a Espanha, precisavam de alguém para cuidar da parte burocrática, lidar com situações envolvendo prefeitura e habite-se, formalizar as entregas aos clientes e gerir os relacionamentos com os sócios e as instituições financeiras. Era uma posição melhor – assumi como Diretor-Gerente e Diretor Financeiro –, uma nova língua para aprender e um desafio muito atraente. E eu adoro abraçar os desafios.
Mas, concluída minha missão aqui, fui convocado a voltar para a Espanha. Só que eu julgava que minha experiência tinha sido muito curta e que não tinha aproveitado o que o Brasil poderia me proporcionar. Foi quando apareceu uma oportunidade para trocar de empresa: outra multinacional, dessa vez alemã, que me permitiria ficar aqui. Foi a decisão que tomei. Assim, em janeiro de 2017, assumi a posição de Diretor Financeiro do Brasil da Winterhalter Gastronom, empresa especializada em soluções profissionais na área de lavagem industrial.
Um líder inspirador
Eu não tive o que se poderia chamar de mentor. Mas, tive um chefe que marcou muito minha carreira. O nome dele é Enrique Andreu Mompean e ele acabou influenciando muito minha forma de trabalhar. Na época, era analista fiscal e tributário na empresa Gestión Tributaria Territorial (GTT), que atendia prefeituras e instituições governamentais espanholas. Enrique era uma pessoa muito objetiva, que, quando solicitava algo, dava uma pequena orientação, mas não entrava em detalhes. Isso me obrigava a pensar e a conversar com meus demais colegas para buscar outros pontos de vista. Quando terminava aquela tarefa, ia até ele e, só então, ele entrava em detalhes. “Elías, aqui está bem, mas aqui, não. Isso você teria de ter olhado nesse lugar”. Adorei a experiência, até porque ele me dava liberdade e autonomia, mas também suporte. Ele exigia que eu pensasse e isso faz a gente crescer. Quando tudo é muito parametrizado, você acaba fazendo um trabalho muito rotineiro e automático.
Por isso, considero Enrique como a pessoa que mais me marcou profissionalmente. Não apenas aprendi a trabalhar melhor com ele, mas considerei que aquela era uma boa forma de dirigir. Hoje tento seguir o mesmo modelo. Assim, ele me marcou em meu direcionamento profissional como trabalhador, sendo uma influência em minha forma de dirigir outras pessoas. E esta não é uma forma fácil, pois, quando você lidera, é muito fácil ir para o detalhe. “Eu quero que você faça isso primeiro e, depois, aquilo”. Você acaba sendo muito preciso. Mas, sempre tento lembrar desse chefe e dou liberdade para que meu liderado pense e consiga dar a resposta dele.
Quando se faz sempre da mesma maneira não seria a hora de mudar?
Para mim, uma educação sólida desde o início é fundamental. O que se aprende nos primeiros anos escolares é muito mais importante do que qualquer MBA. Nessa fase, formam-se as estruturas, a maneira de ser, a personalidade. Tive a sorte de estar em um sistema educacional muito bom, que é o francês. Sempre fui uma pessoa muito curiosa e meus professores fomentavam isso. Já na adolescência, outros me ensinaram a pensar e não a memorizar. Isso faz com que você questione determinadas situações. Já não é o bastante que alguém lhe diga ou que você veja na TV para que aceite algo como sendo o certo ou a verdade.
Nesse processo, contei também com o suporte de meus pais, embora eles, infelizmente, não tenham sido contemplados com a educação que eu tive. Mas, isso não os impediu de me passar conhecimento. Conversavam comigo sobre fatos que me interessavam e despertavam meu interesse. Enfim, temos de pensar por nós mesmos e isso vale também para o trabalho. Nas empresas, costumam dizer: “Mas sempre foi feito dessa forma”. As pessoas não questionam. Minha educação, ao contrário, me fez questionar absolutamente tudo.
Alguns me perguntam como gostaria de ser lembrado, mas não gosto dessa frase. É um momento triste, que remete ao fim de um ciclo de vida ou daqueles que já não estão mais na empresa. Eu não quero ser lembrado, apenas pretendo influenciar pessoas com meu exemplo. Mas, não tenho a pretensão que digam: “Isso eu aprendi do Elías!”, porque, na verdade, não é de Elías. O que hoje ensino, aprendi de outros. Estou repassando o que recebi de muitos e não me considero merecedor de qualquer reverência. Não inventei nada e, de fato, considero que, na trajetória da humanidade, dificilmente se inventa alguma coisa. No mínimo, nenhuma invenção nasce do zero. Tudo que é criado vem de um trabalho feito anteriormente e que é constantemente melhorado.
O genial Albert Einstein, por exemplo, não teria conseguido o que conseguiu sem os cientistas que o antecederam e que já tinham feito, previamente, em séculos anteriores, parte do trabalho para ele. Portanto, tudo que eu sei não é meu; veio dos meus pais, professores, das pessoas com quem já interagi, dos meus chefes e também dos meus subordinados. Assim, entre ser lembrado e influenciar, prefiro o último e, especialmente, ajudar as pessoas a pensarem de uma forma diferente e a questionar o que está estabelecido, de modo a sempre melhorar mais um pouquinho a cada dia.
Experiências desagradáveis podem se converter em conhecimento
Infelizmente, há situações na vida que marcam de forma negativa. Eu, por exemplo, tive uma experiência desagradável quando senti que fui usado para que os donos de uma certa empresa conseguissem benefícios próprios. Era um momento em que a organização estava passando por uma situação difícil e coube a mim informar aos fornecedores sobre um plano de recuperação que, na verdade, os donos sabiam que não seria cumprido. Sou alguém idealista, que acredita na boa vontade das pessoas. Só que o mundo não é bom e muitas empresas também não. Há empresários que não são éticos.
Quando você se depara com esse tipo de situação, sente-se enganado. E é um pouco como perder a inocência infantil no mundo corporativo. Sempre pensei que só existia uma maneira de agir: a maneira certa. E se não fosse assim, a empresa não funcionaria. E se não funcionasse, ninguém ganharia.
Embora algumas pessoas saibam que o mundo não é bem assim, eu tinha a ilusão de que fosse. Mas, é bom que a gazela saiba que existem tigres, caso contrário, será devorada facilmente por eles. É bom saber que, nas empresas, nem sempre você vai se deparar com ações éticas e isso te ajuda a ficar mais atento, a ter critérios próprios e a tomar decisões que precisam ser tomadas. Essa foi uma lição de como uma experiência desagradável pode se tornar em conhecimento de vida. Somos responsáveis por nossas escolhas, especialmente no mundo diretivo. Já não dá para dizer: “Eu segui ordens” ou “fiz porque me mandaram”. É preciso ter critérios e ficar do lado da ética.
Um mundo em crise
As mudanças criam tensões. Há em curso uma série de questões identitárias, de lutas e reivindicações de diversos grupos. Tudo isso são mudanças em curso, mas que, inicialmente, apresentam-se na forma de crise. No Brasil, nos Estados Unidos, na França, pessoas se manifestam em busca de seus direitos. Ao passo que há aquelas que querem mudar, outras querem que fique como está. Não é algo de agora. As crises acontecem desde sempre, pois as tensões sempre existiram. Há cerca de cem anos, as mulheres queriam votar e isso trouxe tensões. “As mulheres nunca votaram, por que querem votar agora?”, certamente muitos questionavam. O velho discurso se chocou com o novo. Tudo isso traz mudanças, e eu, particularmente, não enxergo nisso algo perigoso. Ao contrário, mudanças são oportunidades, novas necessidades que se sobrepõem. As crises são naturais e a sociedade muda, como faz todo ser vivo. Isso traz medo, mas, na verdade, temos de conviver, adaptar-nos e seguir adiante.
Sou do tipo que gosta de conhecer em detalhes a matéria da qual trato. Se vou liderar uma área, gosto de entender como ela funciona. Defino-me como um profissional hands-on, mão na massa. Para eu poder falar que um relatório ou uma conta contábil está errada, entendo que tenho que ter feito antes e saber como se faz. Essa minha capacidade me ajuda, em primeiro lugar, a dirigir melhor e, em segundo, a indicar como as coisas podem ser feitas. Se disserem que determinada tarefa não pode ser realizada, digo que sim, pode, porque eu mesmo já a fiz, conheço a matéria. Julgo que isso é muito importante para ajudar a empresa a dar um passo maior.
Mas, concordo que pessoas possam ter opiniões e visões diferentes. Sei, por exemplo, que Steve Jobs não era bom tecnicamente, mas tinha uma visão extraordinária. Ele podia não saber como fazer, mas direcionava seus engenheiros para que chegassem aonde ele queria. Portanto, não sei se estou certo ou errado na forma em como eu entendo que um dirigente tem que dirigir, mas é minha forma de ver e de agir. Talvez eu seja muito operacional e entre muito nos detalhes, mas isso me dá segurança na condução dos processos.
A partir do momento que se alcança um posto de liderança, é importante seguir demonstrando para a empresa que se pode contribuir com a melhoria dela. Você tem que seguir crescendo e isso implica aprender mais. Aceitar ficar na zona de conforto está fora de cogitação. Também é importante não ter medo, pois tentar se agarrar à posição é a forma mais fácil de perdê-la. Não se pode ser visto como uma ameaça, mas como alguém que agrega e que traz novidades. Esteja certo de que as coisas vão mudar, então é melhor que seja com você.
O líder tem que se antecipar. Acabou a era da reação. Todos estamos em posição para evitar que os problemas aconteçam. Ontem foi a Covid-19, amanhã teremos outra crise e as empresas terão de mudar muito rapidamente, em 15 dias ou um mês. O líder de hoje tem que estar preparado para antever os desafios do futuro. “O que vai acontecer se, de repente, nossos clientes de São Paulo não quiserem mais nossos produtos, mas percebermos um interesse dos canadenses? Em quanto tempo consigo atender a nova demanda? O que precisarei mudar no produto? Como me adapto a uma nova normativa que pede alterar a fonte de energia que eu uso? (o que vai acontecer)?”. É preciso estar preparado para novos cenários e se antecipar a eles. Esse é o trabalho do líder.
Vim ao Brasil para aprender
Não vim para o Brasil para agir da forma que já fazia na Europa. Vim para ver como se faz. Esse é o caminho quando se está diante de uma nova cultura: você vai aprendendo e se adaptando. Trouxe, evidentemente, uma visão particular de mundo, que pode ser um pouco diferente em alguns pontos, embora, em outros, nem tanto. Mas, quando se vem aberto, como foi meu caso, o novo não surpreende tanto. Vim com disposição para aprender. E o Brasil é um país ocidental. Dessa forma, embora eu tenha visto uma realidade nova aqui, não foi nada que tenha provocado em mim um choque cultural.
Tem uma frase muito conhecida, atribuída a Tom Jobim, que diz que “o Brasil não é para principiantes”. E é verdade! É um país muito desafiador. Mas, sou uma pessoa que gosta do desafio. Então, enxergo este como um país de oportunidades, onde estou muito confortável. Tenho sido muito bem tratado aqui e gosto da forma de ser do brasileiro. Além disso, aqui ainda há muito por fazer, tem um potencial muito grande e eu quero contribuir com tudo isso.