Minha história é a de um sobrevivente e de um self made man
Fui buscar e fiz o meu caminho. Acredito que o mundo será muito melhor do que é
Publicado em 4 de dezembro de 2021 às, 11h13.
Por Fabiana Monteiro
Sou natural de Ribeirão Preto e nasci à meia-noite e quinze de 4 de novembro de 1958. Sou o sétimo filho de uma família de nove irmãos, sendo meus pais Maurílio Biagi e Edilah Faria de Lacerda Biagi. Minha família é bem diversificada e tem uma capacidade incrível de se reinventar. Nossos antepassados são imigrantes e vieram da região do Veneto, no Norte italiano. Meu avô paterno foi carroceiro, oleiro, abriu um armazém de secos e molhados, adquiriu um pequeno engenho e, depois foi dono de usina. Já meu pai foi um autodidata que, em outubro de 1941, foi nomeado pela The Coca-Cola Company como seu primeiro fabricante familiar, com contrato a partir de 1948.
Tive uma educação inicial bem rígida e dali aprendi o valor da disciplina e da austeridade. Na verdade, passei por muitas escolas e nunca me fixei, pois tinha um forte déficit de atenção e acabava não me adaptando a elas e seus métodos. O que fizeram de bullying comigo foi uma loucura. Mas não reclamo, sobrevivi. Não tenho trauma de nada; não tenho sequelas. O que tenho é uma alegria e uma disposição fantásticas para viver.
Ainda em Ribeirão Preto, frequentei o Colégio Santa Úrsula, Colégio Guimaraes Rosa, Colégio Marista e depois o Vita et Pax, todas instituições administradas por ordens religiosas. Lembro-me de que no meu primeiro dia no Santa Úrsula, soltei todos os passarinhos que estavam presos nas gaiolas e viveiros. Depois, pulei o muro da escola, fui para casa e falei para o meu pai que era feriado. Ele, claro, percebeu que eu estava de traquinagem e me levou de volta para tirar a limpo aquela história. Quando chegamos lá, as freiras estavam desesperadas com o que eu tinha feito. Hoje, entendo que aquilo já era uma tradução do amor que tenho pela natureza. Para mim, lugar de pássaro é em liberdade.
Depois, em 1974, fui enviado para a Região Serrana do Rio de Janeiro, onde estudei a oitava série no tradicional Colégio Nova Friburgo, de propriedade da Fundação Getúlio Vargas. Este já não existe mais, pois só funcionou de 1950 até 1977. Posso dizer que peguei sua reta final de atividade. Era um lugar incrível, com sua arquitetura neoclássica, cercado pela Mata Atlântica e localizado no alto de uma colina, de onde se tinha uma visão privilegiada da cidade. Quando cheguei lá, dormia em um quartinho úmido na casa de um dos professores, me lembro que meu pijama era de número 424. Não tinha qualquer sistema de aquecimento e posso dizer que passei muito frio ali.
De Nova Friburgo fui em seguida para os Estados Unidos, passando a morar na cidade de Andover (Massachusetts), na região de Boston, e estudando na Phillips Academy, respeitada escola secundária de onde saíram grandes nomes da história norte-americana. Lá, meu maior amigo era John Fitzgerald Kennedy Jr. (John-John) e estudei também com a irmã dele, Caroline. Passei ainda por summer school de diversas instituições; depois fui para o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), e não me adaptei; fui para Harvard, fiquei seis meses, e não me adaptei. Era um rebelde e inquieto. Assim, sem dar qualquer satisfação à escola, certo dia peguei o que me pertencia e fui para Los Angeles, com o objetivo de fazer cinema.
Nestas idas e vindas, conheci Kim Basinger e Jodie Foster, que se tornaram minhas guardiãs e madrinhas, e descobri a lendária Studio 54, de Nova York, a maior discoteca do mundo. Foi o maior networking de minha história. Era uma experiência muito interessante. Ali, fui um privilegiado em todos os sentidos. Cheguei a trabalhar como assistente de direção, mas nunca pensei em ser ator. Queria mesmo era melhorar a forma como me comunicava. No entanto, meu sonho americano foi interrompido quando fui chamado de volta ao Brasil. A saúde do meu pai piorava a cada dia, o que o obrigou a sair de cena dos negócios em 1977, vindo a falecer no comecinho de 1978. A partir dali, uma nova fase se iniciava na minha vida.
Assumindo o controle dos negócios
A Uberlândia Refrescos foi fundada em 1971 pelo meu pai – como uma filial da Ipiranga Refrescos, de Ribeirão Preto – e, a partir da morte dele, ficou sob o comando do nosso irmão mais velho, Maurílio Biagi Filho. Quando voltei para o Brasil, confesso que fui escanteado dentro da família. Era só o bon-vivant que tinha retornado dos Estados Unidos. Mas, no final da década de 1980, houve uma reorganização na estrutura dos negócios familiares e eu aproveitei a chance. Detinha 33% das ações da Uberlândia e minha mãe o restante.
Ela acabou me dando a opção de comprar a parte dela e foi preciso que os irmãos validassem aquele processo de antecipação. Meu irmão Luiz conduziu a negociação e, no final, deu tudo certo e todos foram unânimes em aceitar. Fizemos tudo isso com muita classe, sabedoria, carinho e amor. Tenho uma grande admiração pelos meus irmãos e minhas irmãs. Assumi finalmente a presidência em julho de 1987 e, a partir dali, era por minha conta e risco. Tinha agora nas mãos o destino de uma empresa e de milhares de trabalhadores, portanto, falhar diante deste desafio não era (e continua não sendo) uma opção.
Minha mãe, que sempre acreditou na Uberlândia Refrescos e no potencial da região, ficou feliz porque não teve briga ou demanda judicial de nenhum tipo. Tudo foi cumprido à risca, conforme o combinado e foi bom para todo mundo. Quando assumi o controle, recebi uma empresa acanhada, e agora, veja no que se tornou. E o melhor, tem uma ótima perspectiva pela frente, cujo futuro está em nossas mãos. Podemos fazer um Oferta Pública de Ações (IPO), uma fusão ou aquisição, porque somos uma companhia sólida, com um rigoroso código de ética e líderes em compliance e ESG [Environment, Social and Governance]. Éramos até então uma empresa que ninguém queria, deficitária e construída a partir das sucatas da Ipiranga Refrescos. Tudo que não servia em Ribeirão Preto era enviado para cá. O caminhão estava pau-velho? “Envia para Uberlândia”. A máquina não funcionava? “Manda para Uberlândia”. Então, fizemos aqui um trabalho heroico. Vi o que outros não viram, pois é preciso abrir a visão. Não podemos ter antolhos (acessório usado em animal de montaria ou carga para evitar que ele veja dos lados), para que não tenhamos limitada nossa capacidade de enxergar. Tomei prejuízo no início, é verdade, mas sobrevivemos e crescemos.
Até aqui pude contar com muitas pessoas que me ajudaram. Mas meu principal guia, aquele que me apoiou desde sempre foi minha mãe. Ela teve a felicidade de completar 100 anos em 11 de março de 2021, e continua sendo uma mulher linda. Fiquei órfão de pai muito jovem e, querendo ou não, dona Edilah teve uma influência muito grande sobre mim. Não estou falando de ascendência sobre processos decisórios, eletivos ou de gestão, mas no jeito cuidadoso que ela sempre dispensou a mim. Além disso, saber levar com mão de ferro nove filhos não é para qualquer um. Eu a considero uma heroína. Ela veio para Uberlândia comigo, acreditou em mim e falou: “Vá em frente que você vai ser um sucesso”. E eu fui!
Tiramos crianças das ruas e as colocamos no conservatório
Logo no começo da minha gestão, procurei o cubano Roberto Goizueta, então presidente da Coca-Cola. Fui até Atlanta (EUA) e consegui inicialmente um contrato de seis meses com esta companhia (a divisão Brasil). Mas, posteriormente, firmamos outro de 20 anos, quando o padrão era de dez (hoje é de cinco anos). Na ocasião, enfrentei muitos desafios. Éramos uma empresa que faturava pouco, com baixa performance. Encontrei aqui uma equipe fraca e foi preciso fazer substituições e investir em treinamento. Construímos tudo praticamente a partir do zero, investindo em digitalização, SAP, automação, governança industrial, manejo das águas e responsabilidade ambiental e social, sem abrir mão de performance. Plantamos boas sementes aqui e passamos a colher os frutos. Somos uma empresa reconhecida, muito premiada, mas ainda com muito a trilhar, especialmente em ESG , pois temos foco nisso.
Sou também um grande entusiasta das artes e da cultura. Fundamos, no final de 2009, o Instituto Alexa. Ele representa a realização de um sonho, com o qual trabalhamos com crianças e adolescentes de seis a 16 anos. Integramos educação, cultura, consciência ambiental e responsabilidade social. Tiramos as crianças das ruas e as colocamos no conservatório. Juntamente com isso, fomentamos projetos que ajudam a diminuir a desigualdade das pessoas e a criar oportunidades. Estamos construindo um anfiteatro de 120 lugares onde serão oferecidas aulas de diversas expressões artísticas, como música e teatro. Simultaneamente, está ganhando corpo uma pinacoteca e uma reserva técnica na galeria permanente de arte na Unidade Alexandre Biagi da Uberlândia Refrescos.
Ainda por intermédio do Instituto Alexa, mantemos a Reserva Ambiental do Pau Furado, localizada entre Uberlândia e Araguari. Temos uma preocupação genuína com sustentabilidade, meio ambiente e valores humanos. Empregamos um modelo de gestão integrada e já recebemos mais de 30 premiações, incluindo a de engarrafadora número 1 em qualidade do Brasil. Fazemos também um trabalho muito bonito de conscientização, pois temos um problema sério de queimadas criminosas na nossa região. Em 2021, por exemplo, a maioria das propriedades que fazem parte da Alebisa Holding, que é dona da Uberlândia Refrescos, teve registros de queimadas e perdemos 80% das reservas permanentes e 30% do pasto. Nelas se encontravam corredeiras e nascentes que simplesmente secaram. Mas não nos entregamos e já se encontra em ação um plano de recomposição e reconstituição da fauna e da flora de todas estas áreas. É um desafio interminável, mas somos teimosos e resilientes.
O desafio de contratar e reter talentos
A qualidade que julgo mais importante no ser humano é a lealdade. Tenho poucos amigos, mas os que tenho me são leais, e sou leal a eles. Circulo muito pouco por Uberlândia. Venho trabalhar, volto para casa, tenho contato restrito com as pessoas. Não mais frequento a sociedade. Eu, que já fui alguém supersocial, descobri, enfim, que o anonimato nos deixa muito mais próximo da felicidade. Estar nos holofotes é uma situação arriscada. A exposição é muito perigosa e a tendência é que eu fique cada vez mais enclausurado no meu bunker.
Mas existe um mundo lá fora que pede ajuda. E uns dos maiores desafios que temos de enfrentar é o abismo social e a falta de diversidade. Infelizmente, não são os únicos pois, a julgar pelo caminho que estamos seguindo, daqui a pouco não teremos nem água potável. Nós, como pessoas físicas ou jurídicas, estamos neste planeta e dependemos dele. Por isso, não nos cansamos de apostar em iniciativas que estejam em sintonia com esta maneira de pensar, e o saldo é muito positivo. Somos zero waste, zero energy, zero carbon. Recebemos inclusive o selo Leadership in Energy and Environmental Design (Leed) Platinum, concedido pela United States Green Building Council. Este é simplesmente a mais alta certificação que esta respeitada entidade destina a prédios verdes.
Para trabalhar comigo hoje, o profissional tem de estar imbuído destes valores. Aliás, tanto contratar quanto reter talentos é igualmente um dos grandes desafios dentro das organizações. E é preciso se atentar a isso, pois toda mudança que se faz no ambiente corporativo apaga parte da memória da empresa. Outro desafio do século 21 e dos mais prejudiciais é a ansiedade. Da minha parte, valorizo pessoas motivadas, que agregam valor, que trazem novas ideias e que pensam fora da caixa. Além disso, é preciso ter disciplina, pois não se constrói uma carreira de sucesso sem esta qualidade. É este tipo de profissional que quero ter comigo, fazendo parte das minhas empresas.
Simplicidade, sim! Arrogância, não
A pandemia me tornou ainda mais resiliente, mais paciente e menos autoritário. Estes dias sombrios e de incertezas me ensinaram a cultuar simplicidade e a trabalhar meu lado arrogante. Enfim, desci do salto, baixei a bola, como popularmente se diz. Mas, como mencionei logo no início, não sou de reclamar, sou de sobreviver. Recentemente, tive um problema de saúde sério e nem contei para ninguém. Fui para o hospital, submeti-me à operação, resolveram o problema e estou zerado de novo.
Sim, minha história também é a de um sobrevivente. Sou uma pessoa que já foi assaltada 74 vezes e sequestrada uma vez em cativeiro e duas na forma relâmpago. E mesmo assim, prefiro morrer a ter de andar armado, embora veja cada vez mais pessoas fazendo esta opção. Mas empunhar uma arma nunca me passou pela cabeça. Entendo que a violência urbana é um problema sério a ser resolvido no Brasil, mas estamos perdendo a noção de senso e de bom senso.
A crença em um mundo melhor
Precisamos acreditar que o Brasil é maior do que qualquer pessoa que esteja no poder. Nosso País tem 215 milhões de habitantes, muitos deles com fome e sede. Portanto, há muito trabalho a ser feito para mudar esta realidade. Será exigido bom senso para mudar isso, especialmente das gerações mais novas. Precisamos de segurança não só governamental, mas também social e ambiental. Construir carros elétricos ou a hidrogênio e aeronaves que levam a outros planetas, é fácil. Difícil mesmo é colocar comida na mesa de bilhões de pessoas aqui mesmo, neste mundo. Será um problema produzir alimento no futuro. Temos de rever nossas prioridades. Como uma pessoa que tem uma família e que ganha um salário mínimo consegue sobreviver no Brasil? Infelizmente, existem muitos problemas estruturais sérios e não nos cabe fechar os olhos para eles. Terra cada vez mais seca.
Com tantos desafios, acaba sendo difícil manter a mente sã. Ainda consigo isso com boa gastronomia e bom vinho, que são meus pontos fracos, mas com moderação. Também mantendo o corpo ativo. Faço academia com carga de musculação moderada, tênis, pilates, ioga e tai chi chuan. Gosto também de manter a leitura em dia, mas com livros físicos. Um dos últimos que li foi O Inconformista, biografia que narra a trajetória do meu parente empreendedor Rubens Ometto. “A leitura engrandece a alma”, diria Voltaire, e é imprescindível para qualquer ser humano. Afinal, como crescer sem conhecer?
Por fim, eu nasci de pai e mãe abastados, mas não fiquei esperando nada deles. Minha trajetória é de um self made man. Fui buscar e fiz o meu caminho. Acredito que o mundo será muito melhor do que é. Um mundo melhor não é apenas um sonho, mas uma realidade possível. Contudo, sei também que alcançar isso não será uma tarefa fácil. É algo que deve ser construído diariamente e com muito trabalho.
Por isso, reitero: acredito que o bom e o melhor ainda estão por vir. Eu sempre acordo todos os dias com este pensamento, embora não feche os olhos ao fato de que, nos próximos 40 anos, teremos muitos embaraços, como as consequências das mudanças climáticas, os buracos na camada de ozônio, vírus, pandemias, a questão da falta d’água. Gosto de meditar e rezar. Tenho muita fé em Deus, mas rejeito e quero distância de fanatismo religioso.
O que desejo mesmo é sempre evoluir. E, para evoluir, é preciso sempre conviver com pessoas melhores do que a gente. Felizmente, é o que tenho feito desde que deixei Ribeirão Preto, com muito mais dúvidas do que certezas. Consegui muito, mas do alto dos meus mais de 60 anos, na porta da terceira idade, ainda tenho muitos sonhos por realizar. E dois deles, certamente, são deixar um legado de conteúdo e consistência, que possa ser perpétuo, e alcançar uma grande sucessão profissional nos negócios.
ALEXANDRE BIAGI é CEO na Uberlândia Refrescos, franquia da The Coca-Cola Company no Triângulo Mineiro, Alto Paranaíba e Noroeste de Minas Gerais