Liderança deve ser pautada por humildade, empatia e exemplo
É muito relevante conhecermos a nossa área de atuação para que possamos nos sentir seguros com aquilo que fazemos
Da Redação
Publicado em 25 de setembro de 2021 às 08h30.
Cristine Grings Nogueira, Presidente na PICCADILLY Company
Por: Fabiana Monteiro
Eu nasci e moro em Igrejinha, município com quase 40 mil habitantes na Região Metropolitana de Porto Alegre. Sou casada há 16 anos com Eduardo e temos duas filhas: Isadora, de 13 anos; e Valentine, de 8. Nossa família, bem como a Piccadilly, nasceram aqui. Meu pai, Tibúrcio Grings, brinca que, um dia, nossa cidade ainda vai virar uma catedral. Tenho muito orgulho de fazer parte dessa família empresária, mas, durante muito tempo, resisti à ideia de me juntar à empresa, temendo o julgamento das demais pessoas de que estava lá somente porque era filha de um dos donos. Assim, tomei inicialmente outro rumo.
Fiz Publicidade e Propaganda na Unisinos de São Leopoldo, e a minha principal influência para a escolha desse curso foi o meu próprio pai. Ele se doou à Piccadilly por 50 anos, tendo se afastado da gestão apenas em 2012, quando ocupava o posto de diretor de Desenvolvimento de Produtos. Dele, herdei a veia criativa. Quando pequena, gostava de desenhar calçados e roupas, mas, depois, passei a dizer que queria ser médica. Aos 17 anos, cheguei a fazer um estágio dentro da própria Piccadilly, passando por todo o processo produtivo e aprendendo muito sobre como fazer sapatos. Mais do que isso: aprendi, também, a ser feliz de forma simples, com os diversos colaboradores com quem tive o prazer de conviver, durante cerca de um ano.
Ainda assim, quando chegou a hora de decidir sobre qual graduação cursar, não tinha clareza de que rumo tomar. Foi meu pai quem melhor enxergou o meu perfil e me fez ver o que eu ainda não tinha visto. Fui para a faculdade e, antes de concluí-la, tranquei o curso e fui fazer um intercâmbio nos Estados Unidos, para aperfeiçoar o meu inglês. Na volta, retomei a graduação, trabalhei em um banco e, depois, comecei um estágio em uma agência de publicidade de Porto Alegre. Ali, adquiri vivência prática, me desenvolvi e percebi que havia feito a escolha certa.
Um ano depois, fui convidada para ser sócia de uma outra agência. Tinha apenas 21 anos e ainda era muito inexperiente. Mesmo assim, resolvi arriscar e me tornar empresária – o que se revelaria, depois, uma megaexperiência para mim. Era uma empresa pequena e eu acabava me envolvendo em todas as frentes. Foi uma oportunidade de aprendizado muito significativa e um desafio maravilhoso. Ali, tive minha primeira experiência como líder de uma equipe e isso, com certeza, faria muita diferença na minha vida profissional, ao longo de minha carreira.
Aprender, desaprender e reaprender
Enquanto me aventurava em meu próprio negócio, comecei a fazer um MBA em Marketing, na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Durante o curso, foi solicitado um trabalho prático, a partir do qual teríamos de construir um case e, quando me dei conta, em vez de falar sobre minha agência de publicidade, acabei falando sobre a Piccadilly. Depois disso, meu tio Paulo, então diretor-presidente, me convidou para assumir a gerência de Marketing da companhia. Naquele momento, eu já atuava havia três anos como empresária e me sentia muito mais preparada para contribuir com o negócio da família. Foi só então, para a surpresa do meu pai e da minha mãe, que acabei aceitando esse desafio e entrei de corpo e alma no mundo Piccadilly.
O ambiente da empresa faz parte da minha vida e história, e essa minha admiração é um legado dos meus pais. Tenho muitas lembranças de visitar a Piccadilly ainda criança e de fazer desenhos para o meu pai, colocando-os debaixo do tampo de vidro de sua mesa de trabalho. Ainda assim, eu não queria estar aqui apenas por ser a filha de um dos donos. Essa questão sempre mexeu comigo, mas, naquele momento, tratava-se de outro contexto. Eu já tinha outras vivências e o que oferecer.
Certamente, nunca estamos totalmente prontos e completos como profissionais. É preciso sempre aprender, desaprender e reaprender. Isso valia para mim há quase 20 anos, quando comecei, e vale também agora, como presidente da companhia. É preciso evoluir continuamente, se aprimorar mais do que nunca e estar em constante aprendizado. Esse processo de conseguir limpar a memória das velhas certezas e inserir um reaprendizado é bem desafiador, mas fundamental para os executivos que estão no mercado.
Como disse, naquele 2004, aos 24 anos, quando aceitei a proposta do meu tio, me sentia muito mais preparada e confiante de que poderia contribuir para a perpetuação e edificação desse legado, que começou a ser construído pelo meu avô, Almiro Grings, e seus três sócios, em 1955. Fui particularmente influenciada pelo meu pai, com sua veia criativa e sua visão inovadora, e também pelo meu avô, com seu espírito empreendedor e visionário. Além deles, não posso deixar de destacar minha gratidão à minha mãe, aos meus tios e a toda a nossa família empresária, com quem tive, e ainda tenho, a oportunidade de aprender muito. Cada um, com seu perfil específico, tem se doado ao longo desses 66 anos (celebrados em 4 junho de 2021), com muito amor e trabalho duro. É essa dedicação coletiva que tem feito nosso negócio prosperar e crescer.
A perpetuação desse legado é o que me move de verdade, que me faz acordar cedo e buscar entregar o melhor – mesmo diante de tantos desafios que temos experimentado. Eu desejo ser lembrada como uma líder feminina inspiradora e, especialmente, uma líder movida pela fé. Isso é algo muito importante na minha vida hoje e tem feito a diferença para me fortalecer, em especial neste cenário em que nos encontramos, pós-pandemia. Meu desejo é o de fazer a diferença na história de nossa empresa e ajudar a Piccadilly a chegar sólida e próspera aos seus 100 anos.
O tabu da sucessão
Assumi a presidência exatamente quando a empresa completou 60 anos, tendo a companhia de minha prima, Ana Carolina, como vice-presidente. Naquele momento, a segunda geração fazia, aos poucos, o movimento de transição para a terceira geração. À época, já éramos diretores de muitas áreas. Assim, a geração anterior se sentiu confiante para ir “passando o bastão”. Meu tio, que era então presidente, começou também a sinalizar o desejo de deixar o cargo e ainda não tínhamos a definição de quem deveria assumir no lugar dele.
Sucessão era um assunto meio tabu, mas, em uma oportunidade, a terceira geração conseguiu abordar o tema. Tínhamos, então, iniciado um processo de governança na empresa que foi muito importante para nós, em que fazíamos combinações e alinhamentos relevantes para nosso negócio familiar. Foi, portanto, durante esse processo de construção da governança, que o tema da sucessão acabou vindo à tona. Nesse momento, meu irmão e meus primos me escolheram para ser a presidente da empresa. Para mim, isso foi bastante surpreendente, mas tendo o apoio de todos me sentia preparada. Por mais de dez anos, vinha fazendo um trabalho de coaching dentro da Piccadilly. Aliás, não só eu, mas toda a terceira geração. Isso ajudou no meu amadurecimento profissional de forma muito intensa. Além disso, depois de assumir a presidência da empresa, passei a contar com uma mentoria formal. Esse foi um momento diferente, porque eu efetivamente passei a ser apoiada, o que tem sido bastante importante para mim.
Sou evangélica e, quando surgiu a oportunidade de liderar a empresa, conversei muito com Deus e o questionava se isso tudo era para mim. Mas tive as respostas às minhas perguntas e a certeza de que Ele realmente estaria comigo ao longo desse processo. E foi isso o que me encorajou a aceitar o desafio. Digo com absoluta humildade que toda a força, resiliência e sabedoria que tenho e que a posição exige vêm d’Ele. É nisso que acredito e é disso que tenho orgulho, não vergonha, ao falar sobre minha fé. Me converti, aliás, um pouco antes de assumir a presidência da Piccadilly e isso contribuiu para me transformar como pessoa e para me tornar um ser humano melhor.
Arrumar a própria cama antes de mudar o mundo
Não há trajetória sem frustrações. Mas são elas que nos ajudam em nosso desenvolvimento. Acredito que quando nos frustramos só há duas escolhas: ou nos sentimos desmotivados e desistimos ou escolhemos nos fortalecer a partir da dor. É esta última opção que recomendo: a de fazermos com que os aprendizados advindos das situações de desencanto e insatisfação nos apresentem a oportunidade de evoluir e crescer em busca dos nossos objetivos. Eu arrisco dizer que quem não está preparado para lidar com as frustrações não será bem-sucedido profissionalmente. Elas são inerentes à vida profissional, assim como as conquistas. O mundo em que vivemos tem nos colocado à prova muitas vezes, mas a gente vai seguindo, de conquista em conquista ou de frustração em frustração. A questão mais importante não é se tais situações surgirão, mas o que vamos fazer com elas.
Infelizmente, experimentamos um momento de colapso de valores e princípios. Estamos cada vez mais individualistas e superficiais. Por isso, temos um importante desafio pela frente: o de transformarmos o mundo em um lugar melhor. Isso exige que nós pensemos muito mais no coletivo do que no indivíduo. Exige, ainda, discussões mais profundas e relevantes, em vez de banalidades, como números de seguidores e curtidas nas redes sociais. Participei de um evento em Nova York e lá escutei uma frase de um brasileiro que achei fantástica. Segundo ele, a nova geração quer transformar o mundo, mas não sabe nem arrumar a própria cama. Essa frase, que é inspirada em outra, de William H. McCraven, ex-almirante da Marinha americana, diz muito sobre essa superficialidade que vivemos hoje.
Este é o momento de focarmos no equilíbrio dos nossos valores e de priorizarmos o que realmente faz sentido para nós. Inclusive, para buscarmos coisas mais simples, que, no fundo, são as mais valiosas da vida. É preciso garantir que tudo isso valha a pena e fazer com que tenhamos um recomeço mais equilibrado e saudável. Seria maravilhoso se, no final das contas, extraíssemos a parte boa desse processo, pois, como tudo na vida, há um lado bom. Mas isso, obviamente, não é uma tarefa fácil.
Sou absolutamente exigente comigo mesma
É muito relevante conhecermos a nossa área de atuação para que possamos nos sentir seguros com aquilo que fazemos. Isso nos ajuda a apresentar uma melhor performance e a ganhar credibilidade com a nossa equipe. Para mim, a liderança deve ser pautada por humildade e empatia. É importante mantermos uma escuta ativa, prestando atenção no outro e ouvindo realmente o que ele tem a dizer. Só assim a gente consegue transformar o sonho que é nosso em um sonho coletivo – e isso é fundamental em uma liderança.
Nunca é demais atentarmos também, para a importância de lideramos pelo exemplo. Isso faz diferença, porque entendo que discursos bonitos, frequentemente, são rasos e insustentáveis. Dessa forma, precisamos ser verdadeiros e transparentes nas nossas relações. Até porque, como líderes, estamos sempre sendo observados em nossas palavras e atitudes. São os sinais que damos que reforçam ou colocam em xeque aquilo que queremos construir. Além disso, dou muita importância à valorização e ao desenvolvimento das pessoas. Acredito que esse tipo de investimento torna os colaboradores devidamente preparados para abraçarem os desafios, ao estarem mais motivados e comprometidos com o negócio. A transformação acontece por intermédio das pessoas.
Também sou absolutamente exigente comigo mesma. E algo que fez toda a diferença na minha vida, tanto na esfera pessoal quanto, em especial, na profissional, foi ter a expectativa certa acerca das pessoas e das circunstâncias. Isso me ajudou muito a não me frustrar e a não me desmotivar, pois espero de uma pessoa apenas aquilo que ela pode me entregar. E quando ela vai mais longe, isso além de ser uma agradável surpresa, serve de motivação. Não construímos nada sozinhos e, como líderes, passamos a maior parte do nosso tempo lidando com pessoas. Então, essa relação entre líder e liderado é importante e deve ser construída da melhor e mais respeitosa forma possível.
Bons marinheiros em mar revolto
Quando assumi a presidência da Piccadilly, fizemos todo o processo de transição e iniciamos um conselho de administração. O ano era, justamente, 2015 e vivíamos o início de um período de crise político-econômica. Meu tio Paulo se preocupou em nos passar o bastão num momento de mercado tão desafiador, mas entendeu que estávamos preparados, confiou em nós e manteve sua decisão. Me lembro muito bem de uma fala do presidente do nosso conselho, que dizia que não se treinam bons marinheiros em águas calmas. E ele está certo. Mas, no Brasil, o mar parece estar sempre revolto para nós marinheiros – isso quando não temos de encarar verdadeiros tsunamis. Por isso acredito que qualidades como resiliência, coragem, força e muito equilíbrio emocional para lidar com as adversidades sejam ainda mais importantes. Tomemos como exemplo o cenário que vivemos agora, no que diz respeito à pandemia. As pessoas, ao se sentirem inseguras, mais fragilizadas, para quem elas vão olhar? Para aqueles que exercem papel de liderança.
Portanto, é importante mantermos a serenidade, estarmos preparados e seguirmos trabalhando e acreditando que, apesar dos desafios – que são muitos – podemos atravessar a tormenta. A pandemia nos trouxe várias dores, falando especificamente da Piccadilly, mas também proporcionou uma série de aprendizados e oportunidades. Nossa primeira atitude foi a de proteger o negócio e as pessoas, pois precisávamos sobreviver. Mas, além de sobreviver, a gente quer se transformar. A covid-19 nos mostrou que não temos, absolutamente, o domínio de tudo. Então, querer fazer planejamentos a longo prazo já não faz muito sentido, hoje.
Nosso foco passou a ser agir com mais velocidade e senso de urgência, enxugando e desburocratizando os processos internos da empresa. Passamos a ser mais objetivos, a dar autonomia com responsabilidade para as equipes e a estimular com muito mais intensidade o tema da inovação e da criatividade. Fizemos um trabalho muito importante com relação ao exercício da empatia entre as pessoas e ao fortalecimento do espírito de equipe. A Piccadilly era, assim como outras grandes empresas, mais conservadora, lenta, burocrática. Nesse aspecto, eu diria que a pandemia – apesar de toda a dor que causou – foi positiva para a gente, porque aproveitamos esse contexto para promover uma mudança de atitude. Estamos experimentando uma verdadeira transformação cultural, mas respeitando nossos valores e tudo aquilo que representa nossa essência. E isso, tenho total consciência, vem sendo fundamental para que possamos seguir adiante, rumo aos nossos 100 anos.
Será que ela consegue, mesmo?
Ser um executivo bem-sucedido é a materialização de um sonho, e posso dizer que conheço muitas histórias de sucesso lindas. Mas todas elas foram construídas com muito amor, dedicação, trabalho duro e dor. Todas são para mim fonte de inspiração e encorajamento. Por isso, realmente acredito que, como executivos, temos um papel muito relevante, no sentido de instigarmos as pessoas a realmente acreditarem em si mesmas e a estimulá-las a correrem em busca dos seus próprios sonhos.
Hoje, o posicionamento da marca Piccadilly é pelo encorajamento feminino. Essa é uma mudança que está ocorrendo e é importante que aconteça. Não acreditamos que as mulheres devam ter privilégios, mas, sim, que tenham condições igualitárias. Entendo que a oportunidade de uma mulher se tornar uma profissional destacada não está vinculada a gênero, mas à entrega, à capacidade. Temos várias profissionais do sexo feminino exercendo o papel de liderança em nossa empresa, sendo que metade de nossa diretoria é formada por mulheres. Elas estão presentes no nosso conselho, e cerca de 60% do nosso quadro de colaboradores é constituído por mulheres – muitas delas ocupando cargos de liderança em setores que, normalmente, são destinados aos homens.
Levantamos a bandeira da inspiração e do encorajamento. Embora estejamos em um setor de calçados femininos, a maioria dos líderes, tanto das indústrias quanto do varejo, ainda é formada por homens. Trata-se de um processo que tende a mudar, mas esta é a presente realidade. Mesmo em função disso, não posso dizer que fui discriminada, mas, certamente, vi muitos pontos de interrogação serem colocados a meu respeito, no início do processo de transição na Piccadilly. “Será que ela consegue, mesmo?” Posso dizer que, para mim, isso sempre foi um motivador, que encarava como um desafio. “Ah é? Vou mostrar que posso, sim!”, dizia para mim mesma. E pude!
Cristine Grings Nogueira, Presidente na PICCADILLY Company
Por: Fabiana Monteiro
Eu nasci e moro em Igrejinha, município com quase 40 mil habitantes na Região Metropolitana de Porto Alegre. Sou casada há 16 anos com Eduardo e temos duas filhas: Isadora, de 13 anos; e Valentine, de 8. Nossa família, bem como a Piccadilly, nasceram aqui. Meu pai, Tibúrcio Grings, brinca que, um dia, nossa cidade ainda vai virar uma catedral. Tenho muito orgulho de fazer parte dessa família empresária, mas, durante muito tempo, resisti à ideia de me juntar à empresa, temendo o julgamento das demais pessoas de que estava lá somente porque era filha de um dos donos. Assim, tomei inicialmente outro rumo.
Fiz Publicidade e Propaganda na Unisinos de São Leopoldo, e a minha principal influência para a escolha desse curso foi o meu próprio pai. Ele se doou à Piccadilly por 50 anos, tendo se afastado da gestão apenas em 2012, quando ocupava o posto de diretor de Desenvolvimento de Produtos. Dele, herdei a veia criativa. Quando pequena, gostava de desenhar calçados e roupas, mas, depois, passei a dizer que queria ser médica. Aos 17 anos, cheguei a fazer um estágio dentro da própria Piccadilly, passando por todo o processo produtivo e aprendendo muito sobre como fazer sapatos. Mais do que isso: aprendi, também, a ser feliz de forma simples, com os diversos colaboradores com quem tive o prazer de conviver, durante cerca de um ano.
Ainda assim, quando chegou a hora de decidir sobre qual graduação cursar, não tinha clareza de que rumo tomar. Foi meu pai quem melhor enxergou o meu perfil e me fez ver o que eu ainda não tinha visto. Fui para a faculdade e, antes de concluí-la, tranquei o curso e fui fazer um intercâmbio nos Estados Unidos, para aperfeiçoar o meu inglês. Na volta, retomei a graduação, trabalhei em um banco e, depois, comecei um estágio em uma agência de publicidade de Porto Alegre. Ali, adquiri vivência prática, me desenvolvi e percebi que havia feito a escolha certa.
Um ano depois, fui convidada para ser sócia de uma outra agência. Tinha apenas 21 anos e ainda era muito inexperiente. Mesmo assim, resolvi arriscar e me tornar empresária – o que se revelaria, depois, uma megaexperiência para mim. Era uma empresa pequena e eu acabava me envolvendo em todas as frentes. Foi uma oportunidade de aprendizado muito significativa e um desafio maravilhoso. Ali, tive minha primeira experiência como líder de uma equipe e isso, com certeza, faria muita diferença na minha vida profissional, ao longo de minha carreira.
Aprender, desaprender e reaprender
Enquanto me aventurava em meu próprio negócio, comecei a fazer um MBA em Marketing, na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Durante o curso, foi solicitado um trabalho prático, a partir do qual teríamos de construir um case e, quando me dei conta, em vez de falar sobre minha agência de publicidade, acabei falando sobre a Piccadilly. Depois disso, meu tio Paulo, então diretor-presidente, me convidou para assumir a gerência de Marketing da companhia. Naquele momento, eu já atuava havia três anos como empresária e me sentia muito mais preparada para contribuir com o negócio da família. Foi só então, para a surpresa do meu pai e da minha mãe, que acabei aceitando esse desafio e entrei de corpo e alma no mundo Piccadilly.
O ambiente da empresa faz parte da minha vida e história, e essa minha admiração é um legado dos meus pais. Tenho muitas lembranças de visitar a Piccadilly ainda criança e de fazer desenhos para o meu pai, colocando-os debaixo do tampo de vidro de sua mesa de trabalho. Ainda assim, eu não queria estar aqui apenas por ser a filha de um dos donos. Essa questão sempre mexeu comigo, mas, naquele momento, tratava-se de outro contexto. Eu já tinha outras vivências e o que oferecer.
Certamente, nunca estamos totalmente prontos e completos como profissionais. É preciso sempre aprender, desaprender e reaprender. Isso valia para mim há quase 20 anos, quando comecei, e vale também agora, como presidente da companhia. É preciso evoluir continuamente, se aprimorar mais do que nunca e estar em constante aprendizado. Esse processo de conseguir limpar a memória das velhas certezas e inserir um reaprendizado é bem desafiador, mas fundamental para os executivos que estão no mercado.
Como disse, naquele 2004, aos 24 anos, quando aceitei a proposta do meu tio, me sentia muito mais preparada e confiante de que poderia contribuir para a perpetuação e edificação desse legado, que começou a ser construído pelo meu avô, Almiro Grings, e seus três sócios, em 1955. Fui particularmente influenciada pelo meu pai, com sua veia criativa e sua visão inovadora, e também pelo meu avô, com seu espírito empreendedor e visionário. Além deles, não posso deixar de destacar minha gratidão à minha mãe, aos meus tios e a toda a nossa família empresária, com quem tive, e ainda tenho, a oportunidade de aprender muito. Cada um, com seu perfil específico, tem se doado ao longo desses 66 anos (celebrados em 4 junho de 2021), com muito amor e trabalho duro. É essa dedicação coletiva que tem feito nosso negócio prosperar e crescer.
A perpetuação desse legado é o que me move de verdade, que me faz acordar cedo e buscar entregar o melhor – mesmo diante de tantos desafios que temos experimentado. Eu desejo ser lembrada como uma líder feminina inspiradora e, especialmente, uma líder movida pela fé. Isso é algo muito importante na minha vida hoje e tem feito a diferença para me fortalecer, em especial neste cenário em que nos encontramos, pós-pandemia. Meu desejo é o de fazer a diferença na história de nossa empresa e ajudar a Piccadilly a chegar sólida e próspera aos seus 100 anos.
O tabu da sucessão
Assumi a presidência exatamente quando a empresa completou 60 anos, tendo a companhia de minha prima, Ana Carolina, como vice-presidente. Naquele momento, a segunda geração fazia, aos poucos, o movimento de transição para a terceira geração. À época, já éramos diretores de muitas áreas. Assim, a geração anterior se sentiu confiante para ir “passando o bastão”. Meu tio, que era então presidente, começou também a sinalizar o desejo de deixar o cargo e ainda não tínhamos a definição de quem deveria assumir no lugar dele.
Sucessão era um assunto meio tabu, mas, em uma oportunidade, a terceira geração conseguiu abordar o tema. Tínhamos, então, iniciado um processo de governança na empresa que foi muito importante para nós, em que fazíamos combinações e alinhamentos relevantes para nosso negócio familiar. Foi, portanto, durante esse processo de construção da governança, que o tema da sucessão acabou vindo à tona. Nesse momento, meu irmão e meus primos me escolheram para ser a presidente da empresa. Para mim, isso foi bastante surpreendente, mas tendo o apoio de todos me sentia preparada. Por mais de dez anos, vinha fazendo um trabalho de coaching dentro da Piccadilly. Aliás, não só eu, mas toda a terceira geração. Isso ajudou no meu amadurecimento profissional de forma muito intensa. Além disso, depois de assumir a presidência da empresa, passei a contar com uma mentoria formal. Esse foi um momento diferente, porque eu efetivamente passei a ser apoiada, o que tem sido bastante importante para mim.
Sou evangélica e, quando surgiu a oportunidade de liderar a empresa, conversei muito com Deus e o questionava se isso tudo era para mim. Mas tive as respostas às minhas perguntas e a certeza de que Ele realmente estaria comigo ao longo desse processo. E foi isso o que me encorajou a aceitar o desafio. Digo com absoluta humildade que toda a força, resiliência e sabedoria que tenho e que a posição exige vêm d’Ele. É nisso que acredito e é disso que tenho orgulho, não vergonha, ao falar sobre minha fé. Me converti, aliás, um pouco antes de assumir a presidência da Piccadilly e isso contribuiu para me transformar como pessoa e para me tornar um ser humano melhor.
Arrumar a própria cama antes de mudar o mundo
Não há trajetória sem frustrações. Mas são elas que nos ajudam em nosso desenvolvimento. Acredito que quando nos frustramos só há duas escolhas: ou nos sentimos desmotivados e desistimos ou escolhemos nos fortalecer a partir da dor. É esta última opção que recomendo: a de fazermos com que os aprendizados advindos das situações de desencanto e insatisfação nos apresentem a oportunidade de evoluir e crescer em busca dos nossos objetivos. Eu arrisco dizer que quem não está preparado para lidar com as frustrações não será bem-sucedido profissionalmente. Elas são inerentes à vida profissional, assim como as conquistas. O mundo em que vivemos tem nos colocado à prova muitas vezes, mas a gente vai seguindo, de conquista em conquista ou de frustração em frustração. A questão mais importante não é se tais situações surgirão, mas o que vamos fazer com elas.
Infelizmente, experimentamos um momento de colapso de valores e princípios. Estamos cada vez mais individualistas e superficiais. Por isso, temos um importante desafio pela frente: o de transformarmos o mundo em um lugar melhor. Isso exige que nós pensemos muito mais no coletivo do que no indivíduo. Exige, ainda, discussões mais profundas e relevantes, em vez de banalidades, como números de seguidores e curtidas nas redes sociais. Participei de um evento em Nova York e lá escutei uma frase de um brasileiro que achei fantástica. Segundo ele, a nova geração quer transformar o mundo, mas não sabe nem arrumar a própria cama. Essa frase, que é inspirada em outra, de William H. McCraven, ex-almirante da Marinha americana, diz muito sobre essa superficialidade que vivemos hoje.
Este é o momento de focarmos no equilíbrio dos nossos valores e de priorizarmos o que realmente faz sentido para nós. Inclusive, para buscarmos coisas mais simples, que, no fundo, são as mais valiosas da vida. É preciso garantir que tudo isso valha a pena e fazer com que tenhamos um recomeço mais equilibrado e saudável. Seria maravilhoso se, no final das contas, extraíssemos a parte boa desse processo, pois, como tudo na vida, há um lado bom. Mas isso, obviamente, não é uma tarefa fácil.
Sou absolutamente exigente comigo mesma
É muito relevante conhecermos a nossa área de atuação para que possamos nos sentir seguros com aquilo que fazemos. Isso nos ajuda a apresentar uma melhor performance e a ganhar credibilidade com a nossa equipe. Para mim, a liderança deve ser pautada por humildade e empatia. É importante mantermos uma escuta ativa, prestando atenção no outro e ouvindo realmente o que ele tem a dizer. Só assim a gente consegue transformar o sonho que é nosso em um sonho coletivo – e isso é fundamental em uma liderança.
Nunca é demais atentarmos também, para a importância de lideramos pelo exemplo. Isso faz diferença, porque entendo que discursos bonitos, frequentemente, são rasos e insustentáveis. Dessa forma, precisamos ser verdadeiros e transparentes nas nossas relações. Até porque, como líderes, estamos sempre sendo observados em nossas palavras e atitudes. São os sinais que damos que reforçam ou colocam em xeque aquilo que queremos construir. Além disso, dou muita importância à valorização e ao desenvolvimento das pessoas. Acredito que esse tipo de investimento torna os colaboradores devidamente preparados para abraçarem os desafios, ao estarem mais motivados e comprometidos com o negócio. A transformação acontece por intermédio das pessoas.
Também sou absolutamente exigente comigo mesma. E algo que fez toda a diferença na minha vida, tanto na esfera pessoal quanto, em especial, na profissional, foi ter a expectativa certa acerca das pessoas e das circunstâncias. Isso me ajudou muito a não me frustrar e a não me desmotivar, pois espero de uma pessoa apenas aquilo que ela pode me entregar. E quando ela vai mais longe, isso além de ser uma agradável surpresa, serve de motivação. Não construímos nada sozinhos e, como líderes, passamos a maior parte do nosso tempo lidando com pessoas. Então, essa relação entre líder e liderado é importante e deve ser construída da melhor e mais respeitosa forma possível.
Bons marinheiros em mar revolto
Quando assumi a presidência da Piccadilly, fizemos todo o processo de transição e iniciamos um conselho de administração. O ano era, justamente, 2015 e vivíamos o início de um período de crise político-econômica. Meu tio Paulo se preocupou em nos passar o bastão num momento de mercado tão desafiador, mas entendeu que estávamos preparados, confiou em nós e manteve sua decisão. Me lembro muito bem de uma fala do presidente do nosso conselho, que dizia que não se treinam bons marinheiros em águas calmas. E ele está certo. Mas, no Brasil, o mar parece estar sempre revolto para nós marinheiros – isso quando não temos de encarar verdadeiros tsunamis. Por isso acredito que qualidades como resiliência, coragem, força e muito equilíbrio emocional para lidar com as adversidades sejam ainda mais importantes. Tomemos como exemplo o cenário que vivemos agora, no que diz respeito à pandemia. As pessoas, ao se sentirem inseguras, mais fragilizadas, para quem elas vão olhar? Para aqueles que exercem papel de liderança.
Portanto, é importante mantermos a serenidade, estarmos preparados e seguirmos trabalhando e acreditando que, apesar dos desafios – que são muitos – podemos atravessar a tormenta. A pandemia nos trouxe várias dores, falando especificamente da Piccadilly, mas também proporcionou uma série de aprendizados e oportunidades. Nossa primeira atitude foi a de proteger o negócio e as pessoas, pois precisávamos sobreviver. Mas, além de sobreviver, a gente quer se transformar. A covid-19 nos mostrou que não temos, absolutamente, o domínio de tudo. Então, querer fazer planejamentos a longo prazo já não faz muito sentido, hoje.
Nosso foco passou a ser agir com mais velocidade e senso de urgência, enxugando e desburocratizando os processos internos da empresa. Passamos a ser mais objetivos, a dar autonomia com responsabilidade para as equipes e a estimular com muito mais intensidade o tema da inovação e da criatividade. Fizemos um trabalho muito importante com relação ao exercício da empatia entre as pessoas e ao fortalecimento do espírito de equipe. A Piccadilly era, assim como outras grandes empresas, mais conservadora, lenta, burocrática. Nesse aspecto, eu diria que a pandemia – apesar de toda a dor que causou – foi positiva para a gente, porque aproveitamos esse contexto para promover uma mudança de atitude. Estamos experimentando uma verdadeira transformação cultural, mas respeitando nossos valores e tudo aquilo que representa nossa essência. E isso, tenho total consciência, vem sendo fundamental para que possamos seguir adiante, rumo aos nossos 100 anos.
Será que ela consegue, mesmo?
Ser um executivo bem-sucedido é a materialização de um sonho, e posso dizer que conheço muitas histórias de sucesso lindas. Mas todas elas foram construídas com muito amor, dedicação, trabalho duro e dor. Todas são para mim fonte de inspiração e encorajamento. Por isso, realmente acredito que, como executivos, temos um papel muito relevante, no sentido de instigarmos as pessoas a realmente acreditarem em si mesmas e a estimulá-las a correrem em busca dos seus próprios sonhos.
Hoje, o posicionamento da marca Piccadilly é pelo encorajamento feminino. Essa é uma mudança que está ocorrendo e é importante que aconteça. Não acreditamos que as mulheres devam ter privilégios, mas, sim, que tenham condições igualitárias. Entendo que a oportunidade de uma mulher se tornar uma profissional destacada não está vinculada a gênero, mas à entrega, à capacidade. Temos várias profissionais do sexo feminino exercendo o papel de liderança em nossa empresa, sendo que metade de nossa diretoria é formada por mulheres. Elas estão presentes no nosso conselho, e cerca de 60% do nosso quadro de colaboradores é constituído por mulheres – muitas delas ocupando cargos de liderança em setores que, normalmente, são destinados aos homens.
Levantamos a bandeira da inspiração e do encorajamento. Embora estejamos em um setor de calçados femininos, a maioria dos líderes, tanto das indústrias quanto do varejo, ainda é formada por homens. Trata-se de um processo que tende a mudar, mas esta é a presente realidade. Mesmo em função disso, não posso dizer que fui discriminada, mas, certamente, vi muitos pontos de interrogação serem colocados a meu respeito, no início do processo de transição na Piccadilly. “Será que ela consegue, mesmo?” Posso dizer que, para mim, isso sempre foi um motivador, que encarava como um desafio. “Ah é? Vou mostrar que posso, sim!”, dizia para mim mesma. E pude!