Entendi desde cedo que meu negócio é gente
Sou filho de uma Empregada Doméstica, Maria Isabel, e meu pai, José Feliciano, era caminhoneiro
Publicado em 2 de outubro de 2021 às, 10h00.
Por: Fabiana Monteiro
Jorge Luiz Feliciano - Executivo de Gente e Gestão no Grupo Martins
Sou filho de uma Empregada Doméstica, Maria Isabel, e meu pai, José Feliciano, era caminhoneiro. Sou mineiro, nascido em Belo Horizonte, em 24 de abril de 1964, em uma favela chamada “Buraco Quente” e tive o privilégio de ser acolhido por uma nova família. Minha mãe que, em sua pura e verdadeira simplicidade, tinha uma capacidade extraordinária de relacionamentos, acabou fazendo amizade com dona Maria Faria Neves, que morava próximo, no Bairro Lagoinha, em Belo Horizonte. Como ela trabalhava durante o dia, para que eu não ficasse sozinho em casa, acabava indo para a residência dos Neves e, por eles, acabei sendo praticamente criado e educado. Ganhei um novo pai e nova mãe de criação, seu João e Dona Maria, e ainda quatro irmãos: Edelaine, Erivaldo, Erivelto e Eliane. Ali recebi muito amor e o amor é a base da boa educação.
Enquanto isso, minha mãe continuava trabalhando como doméstica. Mas, em 1974, os patrões dela se mudaram para o Rio de Janeiro e ela foi convidada para acompanhá-los. E junto com ela, lá fui eu. Aos 10 anos, desembarquei no Rio de Janeiro e na rodoviária carioca cheio de sonhos, achando que teria uma vida melhor e que iria morar em Copacabana. Mas lá só passei para conhecer a tal patroa da minha mãe. Fui enviado imediatamente para um colégio interno que tinha convênio com a antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem). Isso me trouxe muita tristeza porque ainda era um mineirinho ingênuo e bobo de Belo Horizonte, que, na época, não passava de uma roça grande, comparado com a capital fluminense.
Essa minha fase me faz lembrar muito do filme “Pixote – A lei do mais fraco”, de Hector Babenco, que retrata o que era a vida de um menor em uma grande cidade. Embora estivesse em um colégio interno, e não em uma “casa de recuperação”, via-se muita promiscuidade e restrições de toda sorte. Felizmente, toda base de educação que tive e o espírito de mineiro desconfiado me garantiram uma blindagem. E é graças à base de amor e carinho que recebi de minha mãe e da família Neves que fiz a opção pelo caminho certo, e aqui agora estou para contar minha história, que inclui 3 filhos – Felipe, Maria Isabel e Sophia - e três netas – Sophia, Maria Clara e Maitê. Ela inclui também passagens por grandes empresas e um casamento de 21 anos com Adriana Feliciano, mulher incrível e extraordinária, companheira leal de todas as horas.
A melhor decisão da minha vida
Fiquei no Rio de Janeiro de 1974 a 1985, quando voltei para Belo Horizonte, após a perda de minha mãe, para ser novamente acolhido pela família Neves. Concluí o Ensino Médio e, em 1991, um grande amigo meu à época, Marcos Araújo, me convidou para trabalhar no Carrefour, em Contagem-MG, município da Região Metropolitana de BH. Já estava com 27 anos, mas minha primeira pergunta foi: “Tem perspectiva de crescer aqui?”. Sim, aqui você pode crescer. Acabei contratado para atuar no Departamento Pessoal, que lá era chamado de Folha de Pagamento. Ali fazíamos admissão, desligamento, cálculo de férias, toda esta parte estrutural de uma área de Recursos Humanos, que era descentralizada em cada loja da rede. Isso foi um divisor de águas na minha vida e ao aceitar o convite do Marcos tomei a melhor decisão de minha vida.
No Carrefour encontrei um ambiente que dava muita oportunidade de crescimento profissional, sem necessariamente que eu tivesse curso superior. Essa era a cultura da empresa. Com 3 meses fui promovido a Analista e, com 6 meses, fui alçado à condição de Futuro Gerente de Setor. E 1 ano e 4 meses depois da minha contratação fui promovido a Gerente de uma unidade em Uberlândia. Ainda era 1992. Assim, com 28 anos, deixei a casa dos Neves e mudei de cidade para, literalmente, conhecer um novo mundo.
Fiz uma bela carreira no Carrefour. De Uberlândia fui para Goiânia; e de Goiânia para São Paulo, em 1995. A partir da capital paulista tive uma carreira ascendente. Cheguei como gerente de Setor de Folha de Pagamento da loja da Avenida Aricanduva, na Zona Leste de São Paulo, onde me destaquei muito, e fui promovido para Gerente de Auditoria Interna, trabalhando na matriz no Morumbi, na Zona Sul. Agora era responsável por auditar todas as lojas da rede no País, orientando gestores por meio de planos de ação para correções e melhorias e atuando nos projetos de fusões e aquisições do Grupo. Entretanto, em 1999, saí da empresa quando era Gerente Nacional de Folha de Pagamento do Carrefour Brasil para ir para o Grupo Pão de Açúcar (GPA).
Minha primeira base foi Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, onde contribuí para reestruturar o RH da rede ABC Supermercados. Aceitei o desafio porque tinha o sonho de migrar da parte mais transacional para a Área de Humanas do RH. Na verdade, estava altamente estressado em São Paulo e a oportunidade de trabalhar no interior fez meus olhos brilharem. Além disso, ali o destino me permitiu conhecer aquela que seria minha futura esposa e 6 meses depois de minha chegada, celebrávamos nosso casamento na Granja Comary.
Gestão de pessoas sem recursos financeiros
O ABC Supermercados, que seria incorporado pelo Sendas e, em seguida, pelo Grupo Pão de Açúcar, à época só dava prejuízo. Mas, pouco mais de 1 ano depois de minha chegada e unido a um time de profissionais de alta performance, deixou de ser deficitário para ser superavitário. Quando o GPA assumiu o negócio e viu o trabalho que fazíamos ali com recursos escassos e limitados, houve espanto. Lá, realmente, fizemos gestão de pessoas sem recursos financeiros. E o Pão de Açúcar se interessou muito por aquele trabalho e acabou me convidando para voltar para São Paulo na condição de gerente de Projetos de RH. Assim, depois de sair de uma empresa de 30 mil colaboradores na ocasião (Carrefour) e ir para uma de 3 mil (ABC Supermercados), estava indo para outra de 65 mil colaboradores. Foi um orgulho e felicidade muito grande, embora estivesse ainda só o Ensino Médio completo.
Apesar de me sentir realizado profissionalmente, trazia comigo a frustração de não ter ainda feito uma Faculdade. Era um sonho. E o slogan do Pão de Açúcar era “lugar de gente feliz”. Só que não estava feliz com minha condição. Contudo, lá havia um estímulo muito grande à formação acadêmica. Tocava projetos com gente de importantes consultorias e da IBM e eles se surpreendiam com minha base metodológica, fruto de minhas leituras técnicas e daquilo que trouxe comigo das experiências práticas anteriores. Foi assim que resolvi voltar a um banco escolar. Em 2003, iniciei a Graduação em Administração de RH no Centro Universitário Nove de Julho, no campus Barra Funda. Já era um Gestor e tinha grande experiência prática. Mas ali aprendi a organizar o meu raciocínio e dar valor ainda mais às metodologias.
Virada de jogo
Continuei ascendendo no Pão de Açúcar e acabei sendo Business Partner de uma das vice-presidências. Estava numa posição que tinha tudo para ser Diretor, mas essa oportunidade nunca chegava. Finalmente percebi que não chegaria. Foi quando aceitei participar de um processo para ser Diretor de RH em uma pequena rede familiar de varejo de São Paulo e fui escolhido. Meus amigos questionaram minha decisão, diziam que tinha condições de estar em uma posição melhor. Acho que isso, de alguma forma, acabou mexendo comigo. Veio a soberba em função do meu histórico com grandes corporações. Fiquei nesta empresa apenas 1 ano e 4 meses. Percebi que ali realmente não era o meu lugar e fiz então a escolha por sair. Só que, menos de 1 mês depois, estourou a crise de 2008 e acabaria ficando desempregado pela primeira vez na vida.
Resolvi então fundar minha própria Empresa, uma consultoria focada em melhoria e revisão de processos transacionais da gestão de pessoas, pois entendia que o patrimônio intelectual que tinha era minha experiência prática. Vibrei muito quando consegui meu primeiro cliente, o grupo Etna/ Vivara. Fui tão bem que Nelson Kaufman, que liderou a Empresa até 2010, quis que me tornasse o Executivo de RH da Vivara. Mas meu sonho ainda era voltar para o interior, e esta oportunidade surgiu quando um headhunter me procurou para falar de uma posição de Diretor de RH do grupo É-Ouro, base de distribuição dos produtos do grupo Petrópolis. Assim, deixei meu apartamento nas Perdizes e me mudei para Boituva, próximo a Sorocaba, onde só fiquei 2 anos na empresa. Continuei à frente da minha consultoria, fiz alguns jobs no período, como para a Móveis Casa Verde, em São José do Rio Preto, até que, em 2019, meu telefone tocou.
Do outro lado da linha estava Rubens Batista. Ele tinha sido meu líder no Carrefour e foi responsável por minha promoção 27 anos antes. Professávamos a mesma fé e, por mantermos contato via LinkedIn, sabia que ocupava a posição de Chief Finantial Officer (CFO) no Grupo Martins. Falamos amenidades, ele quis saber como eu estava e, a certa altura, perguntou se gostaria de ouvir uma proposta que me levaria a sentar de novo numa cadeira de Executivo. Rubens me apresentou a Flávio Lúcio Borges Martins, o Fafá, CEO do grupo desde 2018, que me entrevistou no restaurante Santo Grão do Morumbi. A conversa era para durar 1 hora e ficamos por 2 horas e 40 minutos. A gente teve uma sintonia espetacular e, assim, desde setembro de 2019, esta tem sido a minha casa, onde sou executivo de Gente e Gestão. Estou muito feliz, completamente adaptado à cultura da empresa e atuando determinado a cumprir com os planos e diretrizes estratégicas na gestão de pessoas, orientado a atingir resultados sustentáveis junto a um extraordinário time de executivos e profissionais do mais alto nível.
Vendendo a própria marca
Tenho muitas pessoas que posso qualificar como mentores, mas a primeira delas é a minha mãe Maria Izabel. Ele dizia para eu copiar os bons exemplos e é isso que tenho procurado fazer. Era analfabeta, mas tinha uma sabedoria espetacular e não errava o português. A escola dela foi a alta sociedade e, seguindo o que ela mesma recomendava, ouvia, aprendia e aplicava. Já na minha trajetória profissional, mirei muito no exemplo de Marcos Araújo, que foi quem me levou para o Carrefour. É um profissional muito inteligente e estruturado e voltamos a trabalhar juntos na época do grupo É-Ouro/Itaipava. É realmente um grande amigo. Tem também o Antônio Jorge, que foi meu Gerente na mesma rede e que era um sujeito extremamente metódico do ponto de vista de regras. Ele era muito disciplinado e, com ele aprendi a importância desta qualidade.
Outro colega com quem aprendi muito foi o Jorge Nicolau, igualmente do Carrefour. Ele tinha um modo muito duro de ser, exigia muita qualidade na entrega e tinha um raciocínio rápido e bem elaborado. Lembro-me dele em especial por uma história. Eu sempre tive o espírito de ajudar na formação de outras pessoas e um dia ele chegou para mim e perguntou descompromissadamente: “Você não se incomoda de ensinar as pessoas e você não crescer?”. Eu respondi que gostava de ensinar. Então ele assinalou que eu deveria ser um pouquinho mais egoísta e que me apresentasse primeiro. “Como assim?” disse, estranhando aquela orientação. E ele me deu uma aula sobre comportamento. No fundo quis simplesmente me dizer que deveria, sim, ajudar os outros, mas que, ao mesmo tempo, deveria vender a minha marca. Foi um aprendizado interessante e que passei a seguir. 3 meses depois, fui promovido. Por volta de 2016 eu liguei para ele e foi o filho dele que atendeu. Nicolau tinha falecido de câncer, o que me causou grande tristeza. Ficou imensa gratidão.
Investimento nas pessoas, mas com cobrança de retorno
Percebi minha vocação logo que comecei no Carrefour. Lá, na loja que trabalhava, eu tinha de atender pessoas. Eram cerca de 700 funcionários. Tratava todo mundo bem e comecei a ser visto como alguém que gostava de gente, independentemente de quem fosse. Por conta de minhas origens humildes e de minhas experiências, consigo conversar com todos, da base da pirâmide ao acionista da empresa. Transito bem entre os extremos da base da pirâmide. O meu negócio é gente. E entendi isso logo que comecei. Estar onde me encontro agora é muito gratificante, pois é o lugar de onde consigo contribuir. Eu trabalho muito hoje com a questão da influência por conta de minha experiência de vida, capacitação e maturidade.
Fazer isso bem feito nas empresas pelas quais passei é um dos meus legados. Em todas formei times e deixei um legado importante e minha marca registrada, com trabalhos marcantes e sustentáveis. Existem iniciativas que foram lideradas por mim e que estão até hoje implantadas no Grupo Pão de Açúcar. Saí de lá há mais de 20 anos e, em algumas lojas têm pessoas que ainda me reconhecem. Faz algum tempo entrei no vestiário de uma das unidades da rede e lá estava um projeto que a gente fez, com outro formato mas o mesmo conteúdo. Isso para mim é motivo de grande satisfação.
Sempre fui alguém que agregou e fez a diferença positivamente na vida das pessoas com quem interagi. Elas também acabaram me moldando. Portanto, sou o reflexo das minhas boas relações e da capacidade que tive de olhar para aqueles que foram exemplos para mim. Isso é algo que é muito claro para mim. Hoje sou um profissional diverso, multidisciplinar e generalista. Nasci em uma especialização, que é folha de pagamento e migrei para todos os subsistemas de RH. Então tenho domínio de todos os seus subsistemas. Um dos diferenciais que tenho é justamente o fato de ter transitado na área de exatas, financeira e humanas. No Carrefour, por exemplo, Folha de Pagamento não estava vinculada ao RH, mas sim a área contábil. Ali tive uma estruturação muito forte sobre orçamentos, custo e produtividade, que hoje, por incrível que pareça, é muito mais desejada nos executivos de RH. Infelizmente, quando se fala de um Executivo de RH ainda persiste um certo preconceito de que este não sabe fazer conta e que só gosta de eventos motivacionais ou popularmente por gostar de “abraçar árvore”. Hoje consigo ter uma percepção que a minha característica é ter uma visão estratégica relativamente ampla e transito muito mais no estratégico do que no tático.
Para mim não foi fácil aprender a delegar, uma vez que domino relativamente a maioria dos processos do meu segmento. Às vezes, pedia para alguém fazer determinada tarefa e, quando esta era apresentada, não gostava do resultado e acabava refazendo. Hoje isso não mais acontece. Agora meu estilo de liderança é extremamente democrático. Delego mesmo, mas acompanho e cobro resultados.
Por outro lado, mantenho ainda em mim a mesma satisfação de transferir conhecimentos. Basicamente, o que mais me atrai hoje é receber e compartilhar o que aprendi e aprendo. O saber é um bem que não retenho. O nosso mantra onde atuo é que cuidamos de pessoas para que elas possam gerar resultados sustentáveis para os acionistas e também ser felizes. Oferecemos todas as condições para que o colaborador não dê desculpas pela não entrega do resultado. Esse princípio tem sido muito bem-sucedido aqui. Acreditamos nas pessoas e investimos nelas, mas cobramos o retorno do investimento no tempo adequado.
Conhecimento é algo poderosíssimo
Pede-se muito para que nossos jovens invistam em estudo e na formação acadêmica. Mas também é preciso que não se esqueça de falar também de valores, de família, de colaboração e da importância do trabalho em time. Nós, executivos, como profissionais com mais maturidade, temos a responsabilidade de transmitir para os jovens bons exemplos e boas histórias.
Tenho procurado compartilhar a minha trajetória e, para minha surpresa, muitos jovens se identificam com ela. Não adianta eu dizer: “Você é negro, você não vai ter oportunidade”. Nada disso. Você também vai ter oportunidade só que, na condição de negro, vai ter de trabalhar mais, vai ter de tirar mais pedras do caminho, vai ter de superar mais obstáculos. Trabalhe duro e estude, porque conhecimento é poderosíssimo. Com ele nos tornamos uma marca atrativa. Essa geração precisa ouvir isso e ter estímulos e, graças a Deus, tenho tido oportunidade de contribuir nisso. Aprender permanentemente.
Tenho orgulho da minha história e gratidão pelas oportunidades que me foram dadas e que criei. Digo que mesmo nos tempos mais difíceis temos de manter a esperança e a fé em Deus e sermos resilientes. Nosso suporte começa em casa, por isso que defendo que as famílias precisam ter mais estrutura e que as relações precisam ser mais verdadeiras. Acredito que podemos fazer sempre mais pelo outro, pelas organizações às quais estamos vinculados, pela sociedade e pelo mundo que vivemos. Então, que façamos mais, pois, no final das contas, tudo se reverterá em benefício de nós mesmos. Sigamos em frente buscando sermos plenos e felizes.