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Valeria Spechotto: Atue com transparência, promova a equidade e seja o dono da própria carreira

O papo da coluna é com Valeria Spechotto, ex-vice-presidente da Johnson & Johnson

Valeria Spechotto, ex-vice-presidente da Johnson & Johnson  (Divulgação)
Valeria Spechotto, ex-vice-presidente da Johnson & Johnson (Divulgação)

Pondero como alicercei uma bem-sucedida jornada profissional pautada por aprendizados desde os meus primeiros passos, incluindo a relevância de princípios como equidade, transparência, resiliência e coragem. Amparada por uma estratégia de carreira bem delineada, superei obstáculos distintos, especialmente por ser uma mulher inserida em um universo majoritariamente masculino.  

Soube lidar com os desafios que se apresentaram durante a carreira, alguns mais difíceis que outros, mas com o forte propósito de inspirar e motivar outras mulheres a fazerem o mesmo. Durante 34 anos, estruturei toda a minha carreira na Johnson & Johnson, proeminente multinacional, com a qual me identifiquei desde jovem quando conheci os valores da empresa, até alcançar a posição de vice-presidente de supply chain da organização, posicionando-me como uma pioneira no universo feminino 

Gostaria de ressaltar que minha história não representa todo universo feminino. Seria muita pretensão da minha parte. Eu compartilho minha história com o objetivo de motivar, incentivar outros jovens a buscar seus sonhos respeitando seus valores, sua dignidade e entendendo que o caminho para o sucesso é único; não existem fórmulas mágicas ou receitas prontas. O caminho é individual, intransferível e o máximo que podemos fazer é compartilhar as experiências. Algumas delas poderão servir para você trilhar seu caminho. 

Nasci em Santo André, no Grande ABC Paulista, e aos dez anos de idade, me mudei para Caçapava, cidade no interior do estado de São Paulo, junto com meus pais e meus três irmãos, onde desfrutei de uma adolescência típica de uma cidade pequena, com muita liberdade, cercada por amigos. Eu tive uma infancia e adolescência sem muitos percalços, e uma juventude bastante dinâmica, permeada por ótimas recordações.  

Ao chegar no momento de optar por uma faculdade, não tinha a menor ideia do que pretendia cursar. Havia estudado em colégios públicos e em particulares, porém, aos 17 anos faltava a maturidade para entender qual caminho percorrer, típica de uma adolescente. 

O propósito de promover a equidade  

A minha mãe teve um papel fundamental nesta fase, ao me influenciar a ser uma mulher independente e por esta razão escolhi a graduação na Faculdade de Engenharia Química de Lorena, que atualmente integra a Universidade de São Paulo (USP). Essa escolha foi um pouco intuitiva pois gostava muito da área de exatas, tinha facilidade para lidar com as disciplinas de matemática e física. Já havia, inclusive, realizado o curso técnico em química na Universidade de Taubaté.  

Após seis meses de faculdade, tive uma conversa com a minha mãe; ela me incentivou a seguir em frente, mesmo com todas as dificuldades que poderia enfrentar. Essa atitude dela foi fundamental para minha formação como engenheira química, numa época em que engenharia não era lugar para mulheres.   

Eu era a única mulher da minha turma, mas após várias desistências, as classes foram reorganizadas e éramos cinco mulheres. A minha carreira, desde o princípio, foi marcada por desafios inerentes ao mundo feminino. Atualmente, encontramos muitas mulheres nos cursos de engenharia, algo que estava longe de ser uma realidade há 40 anos. 

Após minha graduação na universidade, nunca mais parei de estudar. Sempre tive o objetivo de crescer profissionalmente e isso só seria possível se eu me dedicasse ao meu desenvolvimento pessoal. Realizei um MBA internacional em Operations Management, uma pós-graduação em neurociência pela Pontifícia Universidade Católica/RS (PUCRS) e outra pós-graduação na área da filosofia pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Além da formação acadêmica, realizei diversos cursos dentro da empresa.  

Considero fundamental o aprendizado contínuo em busca de uma carreira de sucesso, independentemente da área de atuação. A única constante que temos na vida são as mudanças. O mundo está se transformando com enorme velocidade e temos de nos atualizar, nos adaptar constantemente às novas tecnologias, aos novos conceitos.  

Precisamos saber em quais áreas precisamos nos aprofundar e quais competências devemos desenvolver, de acordo com o momento da carreira. Normalmente, no início de jornada, priorizamos cursos mais técnicos, mais especializados, mas conforme a carreira progride para cargos de liderança, é preciso considerar especializações voltadas para estratégia, pessoas, com ênfase numa visão holística.   

Defini como propósito ser uma referência feminina neste mercado dominado por homens. Sou oriunda de uma geração na qual não existiam mulheres no campo da engenharia e operações. Sempre busquei ser uma voz a favor das mulheres, da equidade de oportunidades, de salário e de cargos. E reitero que eu fui a responsável por toda a minha carreira, ao buscar as oportunidades, assumindo riscos, com erros e acertos, recebendo muitos nãos, mas sem jamais desistir de seguir em frente.  

Enfim, considero-me uma pioneira, amparada por resiliência, perseverança e coragem, sempre conciliando e priorizando a vida pessoal, pois sou mãe da Bruna e do João Paulo, minhas verdadeiras prioridades!  

A longa e exitosa jornada como executiva da Johnson  

Após efetuar dois estágios, iniciei minha carreira na Johnson & Johnson, em 1989, a única organização para a qual trabalhei e onde erigi uma trajetória magistral da qual me orgulho. Eu já observava a companhia desde jovem, e a considerava uma instituição diferenciada, sem muros, à beira da rodovia Presidente Dutra. Durante a faculdade, conheci a Carta de Valores da empresa (Credo) e, de imediato, me identifiquei com os ideais da companhia. Definitivamente, naquele momento decidi que trabalharia na Johnson após me formar. 

Contudo, precisei participar de três processos seletivos antes de conseguir uma vaga na multinacional, já bastante focada nessa decisão do que pretendia em termos de carreira. Existiam três unidades de negócio dentro do grupo J&J, independentes, com dinâmicas distintas, sendo que tive a oportunidade de trabalhar em todas, englobando consumer health, pharmaceutical e medical devices. 

Meu foco de atuação esteve voltado para supply chain e operações – segmentos aos quais me dediquei por aproximadamente 30 anos. Mas também passei pelas áreas de pesquisa & desenvolvimento e qualidade. Em supply chain, tive oportunidades de trabalhar em várias áreas, englobando plan, source, make, deliver, além de criar áreas novas como project management, asset management, portfolio management, áreas que se tornaram referências mundiais dentro da organização. Ademais, contei com o privilégio de desenvolver muitos líderes, que atualmente ocupam cargos estratégicos em nível global.   

O plano de carreira bem planejado e executado 

Não existem fórmulas mágicas ou receitas prontas para uma carreira de sucesso. Edifiquei um plano de carreira, no qual o desenvolvimento internacional era uma das prioridades. Ser mulher, latina, em operações, representa um desafio gigantesco. Um dos maiores desafios que eu tive como líder, foi quando eu mudei para os Estados Unidos para ocupar um cargo global. Todos os meus pares eram europeus e estadunidenses. Depois de seis meses na função, fui promovida, passando a chefiar estes colegas.  

Deparei-me com vários momentos de questionamentos, dúvidas a respeito das decisões tomadas. Assumi posições e áreas que não me agradaram. Mas fazia parte do meu desenvolvimento. Nem sempre fazemos somente o que gostamos. Nem tudo transcorreu como esperado e algumas vezes eu achava que não tinha tomado a decisão certa. Ao olhar para trás, analiso de outra forma, pois tudo fez sentido,  apesar de não ter sido fácil. Na maioria das vezes, estive fora da minha zona de conforto, assumi muitos riscos. Mas isso só fez com que minha trajetória se tornasse significante, superando obstáculos complexos, com vitórias sólidas.  

É notável contemplar como estabeleci uma jornada bem-sucedida em apenas uma organização. Durante os primeiros vinte anos estive na área de consumo (consumer health), em diversas áreas, alcançando a posição como diretora de manufatura, liderando três operações.  

Neste momento, fui chamada para ser general manager de operações no setor farmacêutico, em 2010. Não conhecia o segmento e tinha a missão de fazer um turnaround e posicionar a operação do Brasil como uma das melhores em desempenho, em nível global. Foi a oportunidade que eu esperava para colocar em prática todo conhecimento que havia adquirido em experiências anteriores pois seria responsável por toda a operação. 

Formei um time competente e em três anos conseguimos fazer o turnaround e posicionamos a operação do Brasil como uma das cinco melhores em desempenho, em nível global. Missão cumprida! 

O processo abarcou o estabelecimento de metas, compreendendo a situação envolvendo os stakeholders locais e globais, alto nível de investimentos, implementação de ações de curto e longo prazo, com todo mapeamento da situação mercadológica. Além disso, o gerenciamento de expectativas dos principais stakeholders foi crítico, pois quando temos uma operação com problemas, o senso de urgência é enorme e às vezes atrapalha na condução de um bom plano de longo prazo.  

Depois dessa experiência, eu decidi me mover para uma posição global, nos Estados Unidos. Um desafio gigante em todos os sentidos, pois me mudei com meus dois filhos. Eu tive muito suporte de amigos durante esse período, especialmente da minha querida amiga Sabrina Lipp que me ajudou na adaptação.  

Adaptei-me a um país novo, em uma posição bastante relevante, com promoções sucessivas. Confesso que senti um pouco de receio, mas soube administrar muito bem as responsabilidades a mim atribuídas. Após três anos nessa posição, decidi voltar para casa por motivos pessoais, o que, para muitas pessoas não fez sentido. Mas fez muito sentido para mim. Temos que entender o que nos faz feliz. E estou me referindo à felicidade real e não à toxica, ilusória, das mídias sociais. 

Com o retorno ao Brasil, surgiu a oportunidade de me mover novamente, agora para o setor de medical devices, como vice-presidente de supply shain para a América Latina. Outra experiência espetacular e assim permaneci durante cinco anos construindo uma organização inteira, desenvolvendo pessoas, processos, sistemas, além de implementarmos um turnaround no serviço de ortopedia com enorme êxito. Enfim, uma etapa muito gratificante, com resultados expressivos. 

Gostei muito de ter atuado nestas três áreas – muito distintas entre elas, com aprendizados preciosos. Em consumer health, os conceitos de eficiência e inovação são fortes – um ambiente muito competitivo e trata-se de uma área nervosa.  

O nicho farmacêutico promove a reflexão, haja vista que operamos com produtos que salvam vidas; é muito nobre trabalhar neste setor, ciente de estar entregando produtos essenciais para a vida das pessoas. 

E no segmento de dispositivos médicos, deparei-me primordialmente com o ambiente cirúrgico, vivenciando o cotidiano de hospitais. Acompanhei bem de perto os centros cirúrgicos e como nossos produtos eram utilizados (instrumentação e próteses), proporcionando-me o sentimento de guarnecer qualidade de vida aos pacientes, algo impagável.  

O privilégio de ser líder em uma multinacional inclusiva 

Considero imprescindível compreender o seu ambiente – a dinâmica do mundo é muito masculina, quer goste ou não. Esse panorama vem mudando gradativamente, mas ainda precisaremos de algumas gerações para a equidade se estabelecer adequadamente.  

Sem dúvida, contei com o privilégio de atuar em uma multinacional prestigiada, que vem aprimorando os conceitos de diversidade & inclusão com o decorrer do tempo. Mas existem várias áreas e organizações em que este quesito não esteja tão evoluído. Portanto, é essencial agir com a humildade de compreender que determinadas colocações não representam todas as áreas, todas as organizações. 

Durante a minha carreira, tive de lidar com situações complexas, inerentes ao fato de ser uma mulher competente e bem-resolvida. A maternidade representou um desafio muito grande e fico indignada por identificar que esse tema ainda é um tabu em algumas organizações. Sempre tive de me posicionar, com coragem para dizer o não, principalmente quando algo poderia impactar negativamente minha vida pessoal. Simples de falar, difícil de viver pois toda ação tem uma consequência. 

O desafio de ser mulher em uma área predominantemente masculina, mantendo-se no topo, com feminilidade, é bastante exigente. Algumas vezes é exaustivo pois é uma batalha diária. Ainda vivemos numa sociedade machista e muitas vezes não percebemos isso. Uma dica que eu daria às mulheres é a de evitar se vitimizar. Analise o cenário ao seu redor, faça suas escolhas e mantenha a segurança em suas convicções, com assertividade, sem desistir dos seus sonhos, mesmo que algumas pessoas desestimulem tais planos. É uma luta diária e não podemos subestimar isso. 

Jamais mudei a minha personalidade para alcançar determinado cargo. Tenho clareza que talvez pudesse ter alçado promoções mais rápido, se tivesse cedido a algumas pressões. Mas isso teria impactado muito minha vida pessoal, a vida dos meus filhos e eu não estava disposta a pagar o preço.  

Portanto, mesmo com todas as adversidades, tenho o orgulho de ter me estabelecido como a primeira mulher vice-presidente de supply chain para América Latina na Johnson & Johnson. 

A pessoa é a responsável e a dona da própria carreira  

A sua carreira começa com as decisões que você toma. Como conseguimos o primeiro emprego? Na maioria das vezes, nós selecionamos as empresas que gostaríamos de trabalhar e participamos do processo seletivo. Portanto, a primeira decisão é sua. 

Ao longo da jornada, nós temos que estabelecer planos de carreira. E aqui enfatizo planos no plural, pois não necessariamente temos que ter um plano somente. Quando eu comecei minha jornada, não tinha ideia do que teria que fazer para chegar à posição de vice-presidente. Estava muito longe da minha realidade. 

Além disso, os planos precisam ter flexibilidade, pois existem muitas oportunidades que não enxergamos. Estar antenado e entender a organização onde trabalhamos é fundamental para estabelecer os próximos passos. Ter um mentor ou uma mentora ajuda muito. Eu tive vários mentores ao longo da minha carreira para me ajudar a enxergar as oportunidades. Tanto de crescimento como de desenvolvimento. 

Outro ponto importante é entender que vamos ter muitos nãos na vida. Às vezes é preciso persistir, buscar alternativas e perseverar; às vezes precisamos mudar o caminho. E tudo bem! Se o mundo muda a todo instante, por que não podemos mudar? 

Uma armadilha é querer ter sucesso a qualquer preço. A preocupação por uma boa vida às vezes dá lugar à histeria pela sobrevivência. É preciso trabalhar o autoconhecimento para entender o que faz você feliz. Onde você quer acordar? O que você quer enxergar? Qual o cheiro que você quer sentir? O que o motiva a levantar todos os dias? Faça essa reflexão e você vai se surpreender com o resultado. 

É claro que precisamos da contrapartida da empresa, dos líderes. Mas reitero que você é o maestro, a maestrina que orquestra sua carreira. É sua responsabilidade. Faça sua parte com afinco e o resultado virá. 

Seja transparente, honesto e busque assumir riscos 

Considero-me uma pessoa com forte personalidade, muito transparente e sempre trabalhei para fortalecer minha equipe. Saliento como o ego é um inimigo que circula e que pode, inclusive, destruir um time. Por isso trabalhar o autoconhecimento, gerenciar o próprio ego é primordial para seu sucesso individual e o sucesso da sua equipe. 

Aprecio assumir riscos, e penso que as pessoas devam tomar decisões baseadas em seus valores, em seu propósito. Apesar das adversidades, que certamente virão, tudo pode dar certo. Se você sente o frio na barriga, vá em frente! É preciso se permitir, experimentar, sem medo de errar. Aliás, você vai errar e tudo bem. Isso auxilia no crescimento.  

E acima de tudo, busque a sua felicidade. Mas aquela felicidade verdadeira, madura, e não a felicidade tóxica, vazia, das mídias sociais. Acredite que tudo pode dar certo!