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A arte de vencer os obstáculos que pareciam impossíveis

Sem querer ser demasiadamente argentino, nada me derruba. Sendo brasileiro, não desisto nunca

Outra coisa que aprendi com meu pai é que a vida é, de fato, como um bumerangue: tudo que você faz algum dia volta para você (Nestor Felpi/Divulgação)
DR

Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2021 às 09h00.

Última atualização em 13 de outubro de 2021 às 17h14.

Por:  Fabiana Monteiro

Nestor Felpi, Latam Innovation Supply Chain & Integration Executive Director na Natura & Co

Nasci em um bairro chamado Gerli, da cidade de Lanús, situada na região da Grande Buenos Aires. Minha mãe era professora de corte e confecção e meu pai tinha dois empregos: como administrativo no porto e como motorista de ônibus. Estudei sempre em escola pública e, apesar de filho único, fui muito exigido pelos dois. O sonho dos meus pais era que eu tivesse a melhor educação e estudasse na melhor escola. Ainda com seis anos, por exemplo, me mandaram aprender inglês. Naquela época, em 1969, ninguém pensava o quanto esse idioma seria importante. Não sei por que eles pediram para eu estudar inglês, mas meu pai sempre sonhou grande. Foi algo que ficou marcado na minha vida: sempre sonhar grande. E a outra coisa na qual realmente acredito é que precisamos sempre crer que nada é impossível.

Então, comecei a ter aulas de inglês com um primo, mas, como realizava provas em uma instituição de inglês no centro de Buenos Aires, acabei indo estudar nesta unidade da Cultura Inglesa. Da minha casa até lá, era uma viagem de 45 minutos de ônibus. Já tinha sete anos. Meus pais me acompanharam durante os primeiros meses, mas, depois, começaram a me deixar no transporte público e eu ia sozinho. A princípio, foi um encantamento para mim, quase como um menino aqui da periferia de São Paulo indo à Avenida Paulista.

Sempre me destaquei liderando, seja na bagunça ou nos trabalhos da escola. Por isso, quando virei escoteiro na igreja do meu bairro, em menos de três meses me tornei líder de grupo, antes mesmo de ter uniforme.

Tempos depois, terminei a escola e, de novo, meus pais almejavam que eu conseguisse entrar no melhor colégio industrial da Argentina, que ainda hoje é a Escuela Técnica Otto Krause. Trata-se da primeira instituição do gênero do país, com mais de 120 anos de história e que fica no bairro de Monserrat, na capital portenha.

Na época, meus pais pagaram uma professora particular para ajudar na minha preparação. Certo dia, amanheci com o caderno que usava para os estudos todo marcado de vermelho pela minha mãe. Sempre tive dificuldades com espanhol, até porque meus pais também cometiam muitos erros nessa matéria. Minha mãe, ao perceber meus deslizes, foi até a professora e disse: “Eu estou pagando e você não corrige o espanhol do meu filho?”. Naquele momento, fiquei assustado e passei a estudar ainda mais espanhol. Quando tinha uns vinte anos, perguntei a ela como conseguiu fazer aquilo. Ela me contou que havia pego um dicionário e encontrado um erro no caderno. Diante disso, decidiu ficar toda noite vendo cada palavra. Isso me ensinou a vontade de ajudar a ser cada dia melhor. Enfim entrei na Otto Krause, a antiga Escuela Industrial de La Nación, e, tempos depois, me formaria técnico em mecânica.

Quando terminei o curso de mecânico, era natural que surgisse em mim o desejo de ser engenheiro mecânico. Fiz os exames (como aqui seria a Fuvest) e entrei na renomada e pública Universidade de Buenos Aires (UBA), onde estudei entre 1982 e 1987. Mas, como o conteúdo da mecânica se mostrava repetitivo, sentia que estava perdendo tempo. “Por que não estudar outra coisa?”, pensava. Decidi então fazer outro tipo de engenharia. Fiquei em dúvida entre a civil e a industrial (chamada no Brasil de produção) e acabei optando por esta última. O curso era de seis anos, mas, como sou ansioso, me entusiasmei e terminei em cinco, adiantando algumas matérias.

A falta que faz um mentor

Quando entrei na universidade, tinha 18 anos. Dava algumas aulas particulares para ganhar dinheiro e, dois anos depois, comecei a lecionar na escola industrial em que havia estudado, que ficava bem próximo da UBA. Eu tinha encontrado a diretora, que fora minha professora, e ela perguntou se eu gostaria de trabalhar lá, uma vez que estava faltando um professor de metalurgia. Assim, como professor suplente, comecei a ganhar meu primeiro salário significativo. Todavia, quando estava no último ano de faculdade, um ex-aluno me convidou para trabalhar com o pai dele, que era diretor de uma empresa italiana de bebidas. Na época, fiquei em dúvida, pois, como docente, eu era responsável pela formação de muitos jovens. Além disso, gostava muito daquela escola. Porém, na empresa, o salário seria cinco vezes maior. Logo, comecei como chefe de manutenção na Cinzano, tradicional fábrica de vermute e outras bebidas.

Depois de um ano, tornei-me também chefe de produção. No entanto, quando a empresa mudou para San Juan, província próxima de Mendoza, optei por ficar em Buenos Aires. Durante dois anos, fui consultor na área de supply chain e, depois, apareceu uma oportunidade em um curtume. Trabalhei ali por apenas um ano, período em que fiz grandes reflexões sobre minha vida profissional. Como disse, fui o primeiro universitário de minha família e não tive quem me aconselhasse sobre carreira. Ao pensar sobre isso, descobri a importância de trabalhar em uma multinacional. Certamente, antes dessa conclusão, faltou a orientação de um mentor. Quando terminei a faculdade, não tinha ninguém por perto para me ajudar e ensinar o caminho das pedras.

Até então, o importante para mim era trabalhar e ganhar dinheiro, pouco importando a projeção da minha carreira. Quando fui para a Cinzano, por exemplo, fui pelo dinheiro. Poderia ter sido qualquer outra empresa. Vindo de uma família humilde, o salário era extremamente importante para mim. Mas, o fato de não ter tido um mentor para me orientar profissionalmente fez com que, hoje, eu ame ajudar as pessoas. Faço isso com os jovens sempre, sem pedir ou esperar qualquer tipo de contrapartida. Mesmo assim, recebo carinho de todos que ajudo. Como sempre falo: a vida é um bumerangue.

Como almejava (e almejo) realizar todos os meus sonhos e metas, consegui ser contratado pela Companhia Química do grupo Bunge & Born, onde trabalhei por quatro anos. Comecei lá como Gerente de Engenharia Industrial e, depois, Gerente de Logística, dando largada na minha carreira nesta área. Eles haviam comprado uma companhia com três fábricas e precisavam de uma boa operação logística para agilizar tudo. Durante meu último ano no grupo, entre 1993 e 1994, a empresa foi comprada pela Procter & Gamble (P&G). Na época, não conhecia muito bem a P&G. Sem ter certeza do que ia acontecer, tive uma proposta atrativa da Clorox, e foi nesta empresa que fiquei de 1994 a 2003.

A caminho do Brasil

Durante os cinco anos seguintes, trabalhei para a Clorox na Argentina, onde a empresa adquiriu outras cinco companhias. A Clorox é uma gigante de origem norte-americana que decidiu estrategicamente começar a crescer fora dos Estados Unidos. Naquela época, o mundo dava início ao processo de globalização e a empresa começou a adquirir ativos também no Brasil, como a Clorisol, Super Globo (de água sanitária), o multiuso X-14 e o inseticida SBP. Como havia muitas companhias compradas aqui, eles precisavam de alguém com experiência para consolidar toda a área de supply chain. Assim, fui convidado para vir para o Brasil. Mas, antes, negociei que seria uma passagem de curto prazo, devendo, depois, ser transferido para os Estados Unidos. Estava com 32 anos e tinha acabado de me divorciar da minha primeira esposa.

Como seria uma breve estadia e não tinha pretensões de voltar, aproveitei para conhecer o país. E foi assim que me apaixonei pelo Brasil. Fui para o carnaval no Rio de Janeiro e em Salvador, participei da Festa do Peão Boiadeiro de Barretos e da Festa do Boi de Uberaba e visitei Fernando de Noronha. Quando me falavam de lugares legais para conhecer, eu anotava em uma lista e ia. Gosto muito de viajar, então, em um fim de semana, pegava um avião e ia para Fortaleza; no outro, para outra praia. Mas, a farra acabou no ano seguinte, quando finalmente fui para Miami como Diretor de Logística para a América Latina da Clorox. Mal sabia eu que dois grandes eventos ocasionariam meu retorno ao Brasil: em 2001, os atentados terroristas contra os Estados Unidos, incluindo as Torres Gêmeas; e, em 2002, a crise econômica da Argentina, que era um grande mercado para a Clorox.

O projeto de expansão da companhia sofreu um forte abalo. Pela Clorox, eu não poderia voltar para meu país; e nem para o Brasil, já que eles haviam vendido todos os ativos daqui. Diante desse impasse, fui ao mercado e apareceu uma oportunidade de trabalhar para a Avon. Logo, em 2003, voltei para São Paulo, para trabalhar como Diretor Regional da América Latina em Logística. Foi uma experiência única ver como funciona a venda direta. Fiquei lá por três anos e, em 2006, fui para a Philips, também como Diretor de Supply Chain da América Latina. Por fim, em 2009, a Natura me procurou com o objetivo de montar um escritório regional na Argentina e cuidar de toda a parte de supply chain fora do Brasil.

Tudo acertado, finalmente, em 2010, começou minha caminhada nesta empresa, à qual cheguei com um desafio enorme, já que, naquela época, a América Latina de língua espanhola representava pouco, e hoje é muito importante. Foi um momento incrível de crescimento e busca de melhorias. Fiquei em Buenos Aires até 2013, quando fui trazido de volta para cá, como Diretor de Planejamento. Em dezembro de 2017, tornei-me Diretor de Inovação em Supply Chain e Costumer Service, que eram duas diretorias.

Sempre participei de negociações de compras da Avon, por minha experiência (a vida é um bumerangue). Por isso, com a compra oficial da empresa, tornei-me, em janeiro de 2020, Diretor de Inovação em Supply Chain para a América Latina e de Integração da Natura & Co., grupo hoje presente em 73 países de todos os continentes e cujas empresas, juntas, formam o quarto maior conglomerado de beleza do mundo.

A vida é um bumerangue

Sem querer ser demasiadamente argentino, nada me derruba. Sendo brasileiro, não desisto nunca. Não sou do tipo que fica deprimido. Há dois anos soube que tenho hipotireoidismo, cujo sintoma é, entre outras coisas, cansaço. Quem me conhece pensa que o diagnóstico está errado: sou muito dinâmico. Assim, faz dois anos que costumo dizer para as pessoas que trabalham comigo: “Vocês têm sorte que eu tenha hipotireoidismo. Imaginem se eu não tivesse?”.

Mas, também, como qualquer um, estou sujeito às frustrações. No campo pessoal, meus dois divórcios se enquadram nesta categoria. No profissional, minha demissão da Avon, justificada por uma reestruturação e por culpa da Natura, que havia superado a Avon no ano anterior. Porém, até isso teve um saldo positivo, pois hoje me sensibilizo muito com as pessoas que não estão conseguindo trabalho. Se eu não tivesse passado por essa experiência, talvez não fosse tão sensível ao tema do desemprego. Por isso, quando recebo um currículo, tento ajudar de alguma forma. O mesmo com a sensação de estar em uma empresa que é comprada por outra. Conheço tanto o lado de quem compra (experiência na Clorox) quanto o da que foi comprada (experiência na P&G).

Outra coisa que aprendi com meu pai é que a vida é, de fato, como um bumerangue: tudo que você faz algum dia volta para você. Seja grato, seja justo. Meus pais me falavam sempre para cumprimentar e tratar bem a todos, com empatia, porque aquele que você ignora hoje pode ser seu chefe amanhã. Para mim, o caso da Avon se enquadra neste conceito do bumerangue. Fui mandado embora de lá e, recentemente, a Natura adquiriu a empresa. Com isso, acabei voltando. Mas, o mais especial é poder voltar depois de 13 anos e ver que algumas pessoas têm belas lembranças. Há processos que fiz que ainda perduram. Sinto como se tivesse deixado um legado. Eu sempre tento fazer coisas transformadoras, que perdurem no processo ou na história, assim como nos corações do meu time.

Sim, sou alguém que acredita no impossível. Muitos dos propósitos profissionais que estabeleci foram inicialmente julgados como impossíveis por algumas pessoas. Mas, quando os resultados eram atingidos, elas vinham até mim e falavam: “Você conseguiu extrair de mim muita coisa que eu pensava que não conseguia fazer”. Sou aquele líder que, além de dizer o que deve ser feito, dá exemplos e indica os caminhos. É como você se deparar com uma montanha e, em um primeiro momento, acreditar que não consegue subir. Mas, se nós nos prontificarmos a subir juntos, um vai levantando o outro e, quando chegarmos lá em cima, você vai se impressionar com a vista, que só é possível ver de lá. Então, vai poder dizer: “Se você não tivesse me levantado, jamais teria tido esta visão”.

Vencendo os desafios e conquistando a confiança

Para mim, o maior desafio que enfrentei até hoje foi me mudar para o Brasil sem conhecer nada: nem o português, muito menos as questões culturais. Cheguei aqui em uma função de projeto, pois já tinham um profissional de logística. A ideia era que eu ficasse apenas seis meses, mas houve um problema relacionado à importação da linha de limpadores X-14 e aquele profissional foi afastado. Sendo assim, meu chefe de Miami pediu para que eu assumisse o projeto e a operação do dia a dia no Brasil.

Eu fui incumbido de fazer toda a estratégia de distribuição. Estávamos sem lugar para armazenar nossos produtos no interior da fábrica, devido ao crescimento, e teríamos de contratar um armazém externo ou um centro de distribuição. O mais interessante é que quem me ajudou foi a mãe dos meus filhos. E, naquela época, havia um medo terrível, pois São Paulo inundava muito e com frequência. Entre 1999 e 2000, não se conseguia chegar nem ao aeroporto quando chovia. Então, receávamos o fato de não conhecermos realmente a cidade e suas particularidades. Além disso, eu sentia uma rejeição por parte dos brasileiros, que sempre estavam criando algum tipo de problema.

Muitos torciam para que eu errasse ou cometesse um deslize e, evidentemente, sabiam que, se isso ocorresse, eu seria penalizado. Mas, passados quatro ou cinco meses, quando montei toda a estrutura, a estratégia foi um sucesso e as pessoas se surpreenderam. Tínhamos três companhias e eu consegui fazer rapidamente o relatório de estoque de todas elas. Eu reunia as informações com agilidade, gerando rápido atendimento de produtos. A partir de então, venci as resistências e passei a ter uma relação de admiração com o time no Brasil.

O que me estranha são os extremos

No período em que passei pelo Brasil, conheci minha segunda esposa e nos casamos em Miami. Lá nasceu meu filho, Lucas. Hoje ele tem 18 anos e estuda na Universidade de Michigan. Em 2004, quando voltei, tivemos nosso segundo filho, Nicholas, que é brasileiro. Com meus filhos, eu tenho aprendido o quanto este mundo muda. Como falam lá fora, é o mundo VUCA; ou, como falam no Brasil, uma muvuca. Com mais de cinquenta anos, eu procuro ser flexível e me adaptar. Considero-me um camaleão, adaptando-me facilmente às circunstâncias. Não sou do tipo que desiste, já que desistir para mim significa se sentir derrotado.

Há muita coisa legal, mas também muito exagero. De minha parte, o que me estranha neste mundo de hoje são os extremos. Aprecio a luta em favor da diversidade, incluindo todos os movimentos existentes, que são muitos. Valorizo aqueles que preferem o diálogo e não seguir para os extremos, que geram exageros. O mundo está mudando e me esforço para que mudemos juntos. Aprendi muita coisa com meus filhos: por exemplo, a reciclar o lixo.

Falando nisso, lembro de um exemplo de como as gerações mudam. Uma vez, fui para Camburi (no município de São Sebastião, litoral norte paulista) e levei meus pais. Juntamos em uma caixa todo o material reciclável. Quando fui descartá-lo, descobri que não seria possível reciclar lixo naquele reduto paradisíaco. Peguei então a caixa e a coloquei no carro. Meu pai me perguntou, incrédulo, se eu realmente ia levar o lixo para São Paulo. Eu disse que não deixaria ali e que na Capital poderia dar-lhe o destino certo. Ele olhou para mim sem entender, como se seu filho estivesse louco. Mas, são por esses pequenos gestos que você passa a ter responsabilidade; que você passa a entender aquilo que não entendia antes e, por isso, também não valorizava.

Minha biografia demonstra que nada é impossível

Algo que me faz feliz é o fato de saber que estou deixando minha assinatura em pessoas com as quais convivi e convivo, e nos processos novos que a gente faz hoje de modo muito mais eficiente do que antes. Fico feliz em saber que meu trabalho ajudou a aperfeiçoar processos e resultados das companhias às quais me dediquei.

Digo sempre que nada é impossível, e minha biografia pode mostrar isso. Venci os obstáculos que, inicialmente, pareciam intransponíveis. Acredito que é possível sair de uma origem humilde, crescer e chegar a um ponto até então inimaginável. Eu saí da Argentina e me lembro de algo que foi muito marcante para mim: quando cheguei a Miami, no primeiro dia, parei em frente ao belo prédio prateado, sede da Clorox, e me perguntei: “Como consegui chegar até aqui? ”. Esse foi um momento inesquecível, um momento que representou uma tomada de percepção daquilo que havia me tornado. Nada seria impossível!

Por:  Fabiana Monteiro

Nestor Felpi, Latam Innovation Supply Chain & Integration Executive Director na Natura & Co

Nasci em um bairro chamado Gerli, da cidade de Lanús, situada na região da Grande Buenos Aires. Minha mãe era professora de corte e confecção e meu pai tinha dois empregos: como administrativo no porto e como motorista de ônibus. Estudei sempre em escola pública e, apesar de filho único, fui muito exigido pelos dois. O sonho dos meus pais era que eu tivesse a melhor educação e estudasse na melhor escola. Ainda com seis anos, por exemplo, me mandaram aprender inglês. Naquela época, em 1969, ninguém pensava o quanto esse idioma seria importante. Não sei por que eles pediram para eu estudar inglês, mas meu pai sempre sonhou grande. Foi algo que ficou marcado na minha vida: sempre sonhar grande. E a outra coisa na qual realmente acredito é que precisamos sempre crer que nada é impossível.

Então, comecei a ter aulas de inglês com um primo, mas, como realizava provas em uma instituição de inglês no centro de Buenos Aires, acabei indo estudar nesta unidade da Cultura Inglesa. Da minha casa até lá, era uma viagem de 45 minutos de ônibus. Já tinha sete anos. Meus pais me acompanharam durante os primeiros meses, mas, depois, começaram a me deixar no transporte público e eu ia sozinho. A princípio, foi um encantamento para mim, quase como um menino aqui da periferia de São Paulo indo à Avenida Paulista.

Sempre me destaquei liderando, seja na bagunça ou nos trabalhos da escola. Por isso, quando virei escoteiro na igreja do meu bairro, em menos de três meses me tornei líder de grupo, antes mesmo de ter uniforme.

Tempos depois, terminei a escola e, de novo, meus pais almejavam que eu conseguisse entrar no melhor colégio industrial da Argentina, que ainda hoje é a Escuela Técnica Otto Krause. Trata-se da primeira instituição do gênero do país, com mais de 120 anos de história e que fica no bairro de Monserrat, na capital portenha.

Na época, meus pais pagaram uma professora particular para ajudar na minha preparação. Certo dia, amanheci com o caderno que usava para os estudos todo marcado de vermelho pela minha mãe. Sempre tive dificuldades com espanhol, até porque meus pais também cometiam muitos erros nessa matéria. Minha mãe, ao perceber meus deslizes, foi até a professora e disse: “Eu estou pagando e você não corrige o espanhol do meu filho?”. Naquele momento, fiquei assustado e passei a estudar ainda mais espanhol. Quando tinha uns vinte anos, perguntei a ela como conseguiu fazer aquilo. Ela me contou que havia pego um dicionário e encontrado um erro no caderno. Diante disso, decidiu ficar toda noite vendo cada palavra. Isso me ensinou a vontade de ajudar a ser cada dia melhor. Enfim entrei na Otto Krause, a antiga Escuela Industrial de La Nación, e, tempos depois, me formaria técnico em mecânica.

Quando terminei o curso de mecânico, era natural que surgisse em mim o desejo de ser engenheiro mecânico. Fiz os exames (como aqui seria a Fuvest) e entrei na renomada e pública Universidade de Buenos Aires (UBA), onde estudei entre 1982 e 1987. Mas, como o conteúdo da mecânica se mostrava repetitivo, sentia que estava perdendo tempo. “Por que não estudar outra coisa?”, pensava. Decidi então fazer outro tipo de engenharia. Fiquei em dúvida entre a civil e a industrial (chamada no Brasil de produção) e acabei optando por esta última. O curso era de seis anos, mas, como sou ansioso, me entusiasmei e terminei em cinco, adiantando algumas matérias.

A falta que faz um mentor

Quando entrei na universidade, tinha 18 anos. Dava algumas aulas particulares para ganhar dinheiro e, dois anos depois, comecei a lecionar na escola industrial em que havia estudado, que ficava bem próximo da UBA. Eu tinha encontrado a diretora, que fora minha professora, e ela perguntou se eu gostaria de trabalhar lá, uma vez que estava faltando um professor de metalurgia. Assim, como professor suplente, comecei a ganhar meu primeiro salário significativo. Todavia, quando estava no último ano de faculdade, um ex-aluno me convidou para trabalhar com o pai dele, que era diretor de uma empresa italiana de bebidas. Na época, fiquei em dúvida, pois, como docente, eu era responsável pela formação de muitos jovens. Além disso, gostava muito daquela escola. Porém, na empresa, o salário seria cinco vezes maior. Logo, comecei como chefe de manutenção na Cinzano, tradicional fábrica de vermute e outras bebidas.

Depois de um ano, tornei-me também chefe de produção. No entanto, quando a empresa mudou para San Juan, província próxima de Mendoza, optei por ficar em Buenos Aires. Durante dois anos, fui consultor na área de supply chain e, depois, apareceu uma oportunidade em um curtume. Trabalhei ali por apenas um ano, período em que fiz grandes reflexões sobre minha vida profissional. Como disse, fui o primeiro universitário de minha família e não tive quem me aconselhasse sobre carreira. Ao pensar sobre isso, descobri a importância de trabalhar em uma multinacional. Certamente, antes dessa conclusão, faltou a orientação de um mentor. Quando terminei a faculdade, não tinha ninguém por perto para me ajudar e ensinar o caminho das pedras.

Até então, o importante para mim era trabalhar e ganhar dinheiro, pouco importando a projeção da minha carreira. Quando fui para a Cinzano, por exemplo, fui pelo dinheiro. Poderia ter sido qualquer outra empresa. Vindo de uma família humilde, o salário era extremamente importante para mim. Mas, o fato de não ter tido um mentor para me orientar profissionalmente fez com que, hoje, eu ame ajudar as pessoas. Faço isso com os jovens sempre, sem pedir ou esperar qualquer tipo de contrapartida. Mesmo assim, recebo carinho de todos que ajudo. Como sempre falo: a vida é um bumerangue.

Como almejava (e almejo) realizar todos os meus sonhos e metas, consegui ser contratado pela Companhia Química do grupo Bunge & Born, onde trabalhei por quatro anos. Comecei lá como Gerente de Engenharia Industrial e, depois, Gerente de Logística, dando largada na minha carreira nesta área. Eles haviam comprado uma companhia com três fábricas e precisavam de uma boa operação logística para agilizar tudo. Durante meu último ano no grupo, entre 1993 e 1994, a empresa foi comprada pela Procter & Gamble (P&G). Na época, não conhecia muito bem a P&G. Sem ter certeza do que ia acontecer, tive uma proposta atrativa da Clorox, e foi nesta empresa que fiquei de 1994 a 2003.

A caminho do Brasil

Durante os cinco anos seguintes, trabalhei para a Clorox na Argentina, onde a empresa adquiriu outras cinco companhias. A Clorox é uma gigante de origem norte-americana que decidiu estrategicamente começar a crescer fora dos Estados Unidos. Naquela época, o mundo dava início ao processo de globalização e a empresa começou a adquirir ativos também no Brasil, como a Clorisol, Super Globo (de água sanitária), o multiuso X-14 e o inseticida SBP. Como havia muitas companhias compradas aqui, eles precisavam de alguém com experiência para consolidar toda a área de supply chain. Assim, fui convidado para vir para o Brasil. Mas, antes, negociei que seria uma passagem de curto prazo, devendo, depois, ser transferido para os Estados Unidos. Estava com 32 anos e tinha acabado de me divorciar da minha primeira esposa.

Como seria uma breve estadia e não tinha pretensões de voltar, aproveitei para conhecer o país. E foi assim que me apaixonei pelo Brasil. Fui para o carnaval no Rio de Janeiro e em Salvador, participei da Festa do Peão Boiadeiro de Barretos e da Festa do Boi de Uberaba e visitei Fernando de Noronha. Quando me falavam de lugares legais para conhecer, eu anotava em uma lista e ia. Gosto muito de viajar, então, em um fim de semana, pegava um avião e ia para Fortaleza; no outro, para outra praia. Mas, a farra acabou no ano seguinte, quando finalmente fui para Miami como Diretor de Logística para a América Latina da Clorox. Mal sabia eu que dois grandes eventos ocasionariam meu retorno ao Brasil: em 2001, os atentados terroristas contra os Estados Unidos, incluindo as Torres Gêmeas; e, em 2002, a crise econômica da Argentina, que era um grande mercado para a Clorox.

O projeto de expansão da companhia sofreu um forte abalo. Pela Clorox, eu não poderia voltar para meu país; e nem para o Brasil, já que eles haviam vendido todos os ativos daqui. Diante desse impasse, fui ao mercado e apareceu uma oportunidade de trabalhar para a Avon. Logo, em 2003, voltei para São Paulo, para trabalhar como Diretor Regional da América Latina em Logística. Foi uma experiência única ver como funciona a venda direta. Fiquei lá por três anos e, em 2006, fui para a Philips, também como Diretor de Supply Chain da América Latina. Por fim, em 2009, a Natura me procurou com o objetivo de montar um escritório regional na Argentina e cuidar de toda a parte de supply chain fora do Brasil.

Tudo acertado, finalmente, em 2010, começou minha caminhada nesta empresa, à qual cheguei com um desafio enorme, já que, naquela época, a América Latina de língua espanhola representava pouco, e hoje é muito importante. Foi um momento incrível de crescimento e busca de melhorias. Fiquei em Buenos Aires até 2013, quando fui trazido de volta para cá, como Diretor de Planejamento. Em dezembro de 2017, tornei-me Diretor de Inovação em Supply Chain e Costumer Service, que eram duas diretorias.

Sempre participei de negociações de compras da Avon, por minha experiência (a vida é um bumerangue). Por isso, com a compra oficial da empresa, tornei-me, em janeiro de 2020, Diretor de Inovação em Supply Chain para a América Latina e de Integração da Natura & Co., grupo hoje presente em 73 países de todos os continentes e cujas empresas, juntas, formam o quarto maior conglomerado de beleza do mundo.

A vida é um bumerangue

Sem querer ser demasiadamente argentino, nada me derruba. Sendo brasileiro, não desisto nunca. Não sou do tipo que fica deprimido. Há dois anos soube que tenho hipotireoidismo, cujo sintoma é, entre outras coisas, cansaço. Quem me conhece pensa que o diagnóstico está errado: sou muito dinâmico. Assim, faz dois anos que costumo dizer para as pessoas que trabalham comigo: “Vocês têm sorte que eu tenha hipotireoidismo. Imaginem se eu não tivesse?”.

Mas, também, como qualquer um, estou sujeito às frustrações. No campo pessoal, meus dois divórcios se enquadram nesta categoria. No profissional, minha demissão da Avon, justificada por uma reestruturação e por culpa da Natura, que havia superado a Avon no ano anterior. Porém, até isso teve um saldo positivo, pois hoje me sensibilizo muito com as pessoas que não estão conseguindo trabalho. Se eu não tivesse passado por essa experiência, talvez não fosse tão sensível ao tema do desemprego. Por isso, quando recebo um currículo, tento ajudar de alguma forma. O mesmo com a sensação de estar em uma empresa que é comprada por outra. Conheço tanto o lado de quem compra (experiência na Clorox) quanto o da que foi comprada (experiência na P&G).

Outra coisa que aprendi com meu pai é que a vida é, de fato, como um bumerangue: tudo que você faz algum dia volta para você. Seja grato, seja justo. Meus pais me falavam sempre para cumprimentar e tratar bem a todos, com empatia, porque aquele que você ignora hoje pode ser seu chefe amanhã. Para mim, o caso da Avon se enquadra neste conceito do bumerangue. Fui mandado embora de lá e, recentemente, a Natura adquiriu a empresa. Com isso, acabei voltando. Mas, o mais especial é poder voltar depois de 13 anos e ver que algumas pessoas têm belas lembranças. Há processos que fiz que ainda perduram. Sinto como se tivesse deixado um legado. Eu sempre tento fazer coisas transformadoras, que perdurem no processo ou na história, assim como nos corações do meu time.

Sim, sou alguém que acredita no impossível. Muitos dos propósitos profissionais que estabeleci foram inicialmente julgados como impossíveis por algumas pessoas. Mas, quando os resultados eram atingidos, elas vinham até mim e falavam: “Você conseguiu extrair de mim muita coisa que eu pensava que não conseguia fazer”. Sou aquele líder que, além de dizer o que deve ser feito, dá exemplos e indica os caminhos. É como você se deparar com uma montanha e, em um primeiro momento, acreditar que não consegue subir. Mas, se nós nos prontificarmos a subir juntos, um vai levantando o outro e, quando chegarmos lá em cima, você vai se impressionar com a vista, que só é possível ver de lá. Então, vai poder dizer: “Se você não tivesse me levantado, jamais teria tido esta visão”.

Vencendo os desafios e conquistando a confiança

Para mim, o maior desafio que enfrentei até hoje foi me mudar para o Brasil sem conhecer nada: nem o português, muito menos as questões culturais. Cheguei aqui em uma função de projeto, pois já tinham um profissional de logística. A ideia era que eu ficasse apenas seis meses, mas houve um problema relacionado à importação da linha de limpadores X-14 e aquele profissional foi afastado. Sendo assim, meu chefe de Miami pediu para que eu assumisse o projeto e a operação do dia a dia no Brasil.

Eu fui incumbido de fazer toda a estratégia de distribuição. Estávamos sem lugar para armazenar nossos produtos no interior da fábrica, devido ao crescimento, e teríamos de contratar um armazém externo ou um centro de distribuição. O mais interessante é que quem me ajudou foi a mãe dos meus filhos. E, naquela época, havia um medo terrível, pois São Paulo inundava muito e com frequência. Entre 1999 e 2000, não se conseguia chegar nem ao aeroporto quando chovia. Então, receávamos o fato de não conhecermos realmente a cidade e suas particularidades. Além disso, eu sentia uma rejeição por parte dos brasileiros, que sempre estavam criando algum tipo de problema.

Muitos torciam para que eu errasse ou cometesse um deslize e, evidentemente, sabiam que, se isso ocorresse, eu seria penalizado. Mas, passados quatro ou cinco meses, quando montei toda a estrutura, a estratégia foi um sucesso e as pessoas se surpreenderam. Tínhamos três companhias e eu consegui fazer rapidamente o relatório de estoque de todas elas. Eu reunia as informações com agilidade, gerando rápido atendimento de produtos. A partir de então, venci as resistências e passei a ter uma relação de admiração com o time no Brasil.

O que me estranha são os extremos

No período em que passei pelo Brasil, conheci minha segunda esposa e nos casamos em Miami. Lá nasceu meu filho, Lucas. Hoje ele tem 18 anos e estuda na Universidade de Michigan. Em 2004, quando voltei, tivemos nosso segundo filho, Nicholas, que é brasileiro. Com meus filhos, eu tenho aprendido o quanto este mundo muda. Como falam lá fora, é o mundo VUCA; ou, como falam no Brasil, uma muvuca. Com mais de cinquenta anos, eu procuro ser flexível e me adaptar. Considero-me um camaleão, adaptando-me facilmente às circunstâncias. Não sou do tipo que desiste, já que desistir para mim significa se sentir derrotado.

Há muita coisa legal, mas também muito exagero. De minha parte, o que me estranha neste mundo de hoje são os extremos. Aprecio a luta em favor da diversidade, incluindo todos os movimentos existentes, que são muitos. Valorizo aqueles que preferem o diálogo e não seguir para os extremos, que geram exageros. O mundo está mudando e me esforço para que mudemos juntos. Aprendi muita coisa com meus filhos: por exemplo, a reciclar o lixo.

Falando nisso, lembro de um exemplo de como as gerações mudam. Uma vez, fui para Camburi (no município de São Sebastião, litoral norte paulista) e levei meus pais. Juntamos em uma caixa todo o material reciclável. Quando fui descartá-lo, descobri que não seria possível reciclar lixo naquele reduto paradisíaco. Peguei então a caixa e a coloquei no carro. Meu pai me perguntou, incrédulo, se eu realmente ia levar o lixo para São Paulo. Eu disse que não deixaria ali e que na Capital poderia dar-lhe o destino certo. Ele olhou para mim sem entender, como se seu filho estivesse louco. Mas, são por esses pequenos gestos que você passa a ter responsabilidade; que você passa a entender aquilo que não entendia antes e, por isso, também não valorizava.

Minha biografia demonstra que nada é impossível

Algo que me faz feliz é o fato de saber que estou deixando minha assinatura em pessoas com as quais convivi e convivo, e nos processos novos que a gente faz hoje de modo muito mais eficiente do que antes. Fico feliz em saber que meu trabalho ajudou a aperfeiçoar processos e resultados das companhias às quais me dediquei.

Digo sempre que nada é impossível, e minha biografia pode mostrar isso. Venci os obstáculos que, inicialmente, pareciam intransponíveis. Acredito que é possível sair de uma origem humilde, crescer e chegar a um ponto até então inimaginável. Eu saí da Argentina e me lembro de algo que foi muito marcante para mim: quando cheguei a Miami, no primeiro dia, parei em frente ao belo prédio prateado, sede da Clorox, e me perguntei: “Como consegui chegar até aqui? ”. Esse foi um momento inesquecível, um momento que representou uma tomada de percepção daquilo que havia me tornado. Nada seria impossível!

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