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O manual do deboísta corporativo

Para enfrentar a onda de desesperança que nos abateu e continua nos abatendo, a salvação pode estar no deboísmo.

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Gestão Fora da Caixa

Publicado em 30 de janeiro de 2017 às, 08h37.

Última atualização em 30 de janeiro de 2017 às, 10h47.

por Fabio Betti, sócio-consultor Corall. 

No meio de uma conversa de Facebook, uma amiga referiu-se a mim como deboísta. Procurando disfarçar a ignorância, apenas curti o comentário e fui correndo me consultar com o Dr. Google. Para meu alívio, logo descobri não ser nenhuma doença grave. Pelo contrário, para enfrentar a onda de desesperança que nos abateu e continua nos abatendo com uma frequência e uma intensidade quase que insuportáveis, a salvação pode estar no deboísmo.

 

O movimento não é novo. Consta que surgiu em agosto de 2014, quando uma tanatopraxista (praticamente um trava-lingua!) de nome Jéssica Loli, cansada de ver as colegas feministas se estapearem nas redes, criou, na brincadeira, uma corrente de feminismo que ela apelidou de deboísta. A ideia era fazer todo mundo parar de brigar entre si e conversar. Na página “Feminismo Deboísta”, Jéssica começou a postar fotos do bicho-preguiça que logo virou o mascote do movimento, com frases do tipo: “O nordeste é de boa, a xenofobia não é” e “pode beijar homem, pode beijar mulher. O importante é ser de boas”. Embora a página de Jessica tenha estacionado nas 40 mil curtidas, os memes com o bicho-preguiça e a cultura “de boas” logo espalharam-se pela internet, a ponto de servir de inspiração para uma campanha do Ministério do Trabalho intitulada “filosofia de vida”. Porém, mesmo que bem intencionada, associar bicho-preguiça a trabalho não foi, digamos, a melhor ideia do mundo, e os internautas detonaram a iniciativa em mais memes criativos e debochados.

 

Por outro lado, quando vemos a quantidade de gente doente nas organizações, que já não aguenta mais esse clima de treta permanente, com áreas ainda trabalhando em silos (tão anos 80!), colegas em clima de guerra, a ameaça permanente de degola e a inovação necessária à sobrevivência cada vez mais comprometida pelo medo, o movimento deboísta, ao pregar uma forma mais leve – o que não quer dizer menos comprometida – para lidar com nossos problemas, surge como uma possibilidade real de reconstrução de vínculos e recuperação da sanidade necessária para lidar com os desafios desse complexo e, às vezes, maluco mundo corporativo.

 

O manifesto da página “Deboísmo” indica o caminho: “Deboísmo é um estilo de vida. Ser de boa não significa ser inerte ao mundo, significa ser ponderado. Calma e paciência e o mundo se tornará um lugar melhor. Ser de boa não significa não debater, não significa se calar perante as injustiças. Significa não ofender as pessoas, argumentar de maneira lógica e sensata, sempre respeitando os direitos humanos. Ser de boa significa deixar uma discussão acabar mesmo sem convencer o inimigo, mesmo se ele partir para ofensas, pois em todo bom debate uma ideia é plantada e eventualmente o sujeito voltará a pensar sobre o assunto. Significa, em suma, ser de boas.”

 

Inspirado no “Feminismo Deboísta” e com a missão de tornar as pessoas um pouco mais de boas, a página criada em maio de 2015 também alimenta um blog que só publica algo raríssimo atualmente na imprensa e nas redes sociais: noticias boas, claro. Do aplicativo que propõe árvores em vez de procrastinar nas redes sociais à história do Batman catarinense que visita crianças em hospitais ou as 5 maneiras de ficar de boas com o seu ex-namorado, o blog tem uma produção intensa, de olho em quem está querendo ficar ou que já está de boas.

 

Inspirado nos Mandamentos Deboístas – sim, alguém criou 11 mandamentos, dá uma googleada -, resolvi apresentar aqui um protótipo* do que pode vir a ser o Manual do Deboísta Corporativo.

 

1. Abra sua cabeça
Uma opinião diferente da sua não precisa necessariamente ser vivida como contrária. Experimente encará-la como complementar e veja o que acontece.

2. Foque nas ideias
Não critique as pessoas, critique as ideias. E seja explícito ao fazer isso. Ninguém é obrigado a adivinhar suas reais intenções.

3. Foque na solução 1
Não perca tempo procurando argumentos para justificar por que as coisas não estão funcionando. Em sistemas vivos, descobrir por que algo não está funcionando não vai, necessariamente, fazer que volte a funcionar. Pior, só vai lhe criar uma boa desculpa para não resolver o problema.

4. Foque na solução 2
Quanto mais tempo você se concentrar no erro, mais você se afastará da solução. Em uma cultura que ainda tem dificuldade em encarar erros como etapas naturais de um processo de aprendizagem, pensar, falar, enfim, viver o erro só lhe fará sentir-se culpado.

5. Conecte-se com as forças
Deu ruim, a tendência é ir direto para os gaps. E lá vamos nós de novo descendo a ladeira do “ó vida, ó céus”. Deu ruim? Pergunte-se pelos talentos, pelas fortalezas, pelas competências já instaladas. Para superar um desafio, o que é melhor: sentir-se frágil e incompetente ou fortalecido e poderoso? A regra vale – e muito – para uma conversa sobre desempenho. Se você quer alguém da sua equipe performando melhor, ajude-o a contectar-se com o que ela ou ele tem de melhor.

6. Ressignifique a crise
A história da evolução das espécies é marcada por crises. Algumas espécies sucumbem, enquanto outras, as mais flexíveis e que mais rapidamente se adaptam às mudanças do ambiente em que vivem, evoluem. Em resumo: sem crise, sem energia para mudar. Olhe, portanto, para a crise como a oportunidade que o sistema do qual você faz parte precisa para evoluir.

7.Olhe além da crise
Uma crise é apenas uma dentre tantas descrições possíveis da realidade. O nome técnico dado à fixação por uma única descrição é trauma. Pergunte sobre o que mais além da crise está acontecendo e evite a prisão traumática e paralisante da história única. Não confundir com Síndrome de Pollyanna, que também é uma espécie de trauma, uma vez que só consegue perceber o que está bem. Como naquela música do Barão Vermelho, “que você descubra que rir é bom, mas que rir de tudo é desespero.”

8. Use sua inteligência: escute!
Se você não é nem onisciente nem onipresente, escutar com atenção e curiosidade genuína o que o outro está vendo não é apenas um gesto de educação, é uma demonstração de inteligência.

9. Aprenda a relaxar
Quando você está muito tenso, submetido à pressão extrema, seu sistema nervoso interpreta que sua vida está sob ameaça. O sangue migra para as extremidades, para os músculos e seu cérebro fica oxigenado apenas para garantir que você continue respirando. Pensar? Nem pensar! Se a leitura é que sua vida corre perigo, as decisões ficam a cargo do sistema reptiliano, que basicamente suprime sua capacidade de raciocínio e lhe dá apenas 3 opções de ação: lutar, fugir ou se fingir de morto (congelar). A boa notícia é que você pode ajudar seu organismo a operar sem esforço novamente e você não precisa ser nenhum guru para aprender a relaxar. Fique apenas atento aos sinais: coração disparou? Frio na barriga? Respire 3 vezes va-ga-ro-sa-e-pro-fun-da-men-te. Ou tome um copo d’água. Ou coloque uma música tranquila para ouvir. Ou vá dar uma volta no quarteirão. Simplesmente pare esse ciclo vicioso que faz seu organismo trabalhar sob stress intenso e, a longo prazo, vai lhe adoecer, pode crer.

 

Deboístas X Tretaístas: quem vencerá essa batalha?

É óbvio que nem tudo são flores no mundo deboísta. Criticado como movimento elitista, os desafetos responderam com o Tretaísmo: “Não somos contra o deboismo, apenas vamos dar colo pra quem não é privilegiado ou tem condições de ser adepto a ele.” Gente humilde não pode ficar de boas? Sei não... Bem, guerra ou não, o fato é que na batalha por adeptos, os deboístas estão ganhando de lavada: a página acumula mais de 1 milhão e 100 mil curtidas contra reles 30 mil dos colegas da treta.

 

* Se quiser me ajudar no desafio de construir o Manual do Deboísta Corporativo, envie sua contribuição para fabio@corall.net

 

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