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Manual do hacker de transformações organizacionais

Organizações evoluem e se transformam a exemplo do que ocorre com pessoas. Por isso, dizemos transformações organizacionais e não mudanças organizacionais.

(Shutterstock/ Rawpixel.com/Corall Consultoria)
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corallconsultoria

Publicado em 3 de outubro de 2018 às 16h43.

Última atualização em 3 de outubro de 2018 às 16h49.

Disclaimer: Textão à vista!

Pesquisei várias fontes e não há um consenso sobre o tamanho ideal para um post de blog, com recomendações que variam de 400 a 2.000 palavras. O site.com.br, por exemplo, recomenda um texto de, no máximo, 600 palavras, enquanto o título não pode passar de 6 palavras. A boa notícia é que consegui seguir à risca a regra do título.

 

Antes de mais nada, quando escrevo hacker, o que quero dizer? Empresto o conceito de hackear não do mundo do crime mas de uma empresa que se orgulha de sua cultura hacker, tanto é que, além de seu headquarter estar localizado no endereço "1 Hacker Way" e de fazer diálogos ao vivo entre seu CEO e seu 25 mil colaboradores pelo mundo a partir da "Hacker Square", o Facebook também traz em seu manual de cultura o espírito hacker, definido pelas seguintes palavras (em tradução livre): "Hackear é uma abordagem à solução de problemas que é ao mesmo tempo humilde e otimista em sua convicção de que tudo o que foi construído pode ser melhorado.” E eu humildemente adicionaria que pode ser melhorado quando se usam caminhos não convencionais, porém legais, com o duplo sentido que a palavra em português propicia, como veremos mais à frente.

 

Na verdade, o título deste "postão" foi inspirado em uma oficina de três horas que conduzi com alunos e ex-alunos da Fundação Dom Cabral no I Campus Experience realizado especialmente para esse público na sede da instituição em Nova Lima, Minas Gerais. Meu objetivo é reproduzir os principais ensinamentos dessa experiência prática em um texto que possa inspirar qualquer pessoa que quiser a começar a agir como um hacker de transformação organizacional.

 

Por que transformação não mudança, Fábio?

Porque você muda de emprego, muda de casa, muda de país, muda até de nome, se quiser, mas não muda de corpo - pelo menos não nessa vida. Você se transforma, evolui e, depois de algum tempo, quando se compara o você de 10 anos atrás com o você de hoje, alguém pode comentar: Nossa, como você mudou! E você: Na verdade, eu me transformei, mas pelo visto você não estava por perto para acompanhar… Ok, melhor não falar assim.

 

Tendo em vista que organizações operam como seres vivos - é só olhar para uma organização para descobrir que, atrás do site, da marca, do prédio, têm sempre pessoas - , organizações evoluem e se transformam a exemplo do que ocorre com pessoas. Por isso, dizemos transformações organizacionais e não mudanças organizacionais.

 

Do título original da oficina - "Hackeando as Organizações do Futuro" - abdiquei da palavra futuro, para evitar a atração quase irresistível de sairmos por aí profetizando um amanhã, na real, impossível de se prever. Ou, pior, nos entregarmos ao futuro sombrio que muitos arautos do apocalipse vêm disseminando pelas redes sociais e já poderia até ser chamado de epidemia. E assim chegamos, com alguma demora, à primeira lição do textão.

 

Narrativas moldam a forma como vemos e vivemos o mundo - As narrativas que ouvimos, construímos, contamos, enfim, aceitamos como verdadeiras funcionam como mantras hipnóticos que, ao serem repetidas, nos fazem enxergar a realidade por um único viés. Falo do Brasil que não tem jeito, do político que é tudo corrupto e de muitas outras histórias que contaminam nosso dia a dia com generalizações perigosas e de alto contágio. Ou seja, narrativas criam transes o tempo todo. E, ao sabermos desse processo, podemos nos desesperar, entregando-nos ao auto-engano, ou usá-las ao nosso favor. Adivinha qual caminho iremos explorar aqui?

 

Já existem organizações entre nós que operam desde princípios que desejamos ver nas organizações para as quais gostaríamos de trabalhar no futuro. E existe um processo simples, rápido e baseado na inteligência coletiva para construir uma estrada de alta velocidade em direção a elas. Esse caminho é composto pelos pilares descritos a seguir.

 

Aceitar e ressignificar a crise - Ao primeiro sinal de ameaça à vida, nosso sistema nervoso aciona automaticamente um complexo mecanismo secretando substâncias químicas como adrenalina e cortisol, para que reajamos rapidamente contra o que nos ameaça. Os batimentos cardíacos se aceleram, o sangue é bombeado com mais velocidade para os músculos e extremidades e, ao invés de pensar, o que pode ser fatal numa situação de perigo iminente, somos impelidos a apenas três reações: lutar, fugir ou congelar (paralisar). E, acredite, isso é ótimo, por exemplo, para escapar de um atropelamento, quando precisamos reagir muito rapidamente. No entanto, como nosso sistema nervoso nem sempre consegue distinguir entre uma situação real de risco à vida - o encontro inesperado com um leão faminto - e situações que não representam um risco real - uma discussão ríspida - precisamos ajudá-lo a voltar à operação de cruzeiro, que é o estado físico e emocional mais apropriado para refletir e tomar decisões, digamos, inteligentes.

 

Primeiro passo para poder fazer isso: aceitar que funcionamos desse jeito, e reconhecer que isto não é um defeito - não tente, portanto, "consertá-lo". Segundo passo: respirar lenta e profundamente, para ajudar o coração a bombear o sangue de volta das extremidades e músculos para o cérebro - acredite, para encontrar o melhor caminho para lidar com a crise, você irá precisar de seu cérebro inteirinho, e não só o pedaço mais primitivo, também conhecido como reptiliano, que é quem assume o comando na hora de encarar leões famintos. Terceiro passo: ressignificar a discussão ríspida como o que ela é de fato: uma ameaça ilusória à vida.

 

Substitua a discussão ríspida por uma crise, qualquer crise. Toda crise aparece no sistema de um ser vivo como um sinal de alerta que fala, ou melhor, grita para esse indivíduo ou grupo de indivíduos que o meio e/ou a forma que esse ser escolheu para viver já não está mais funcionando. Em outras palavras, crises existem para acelerar nossa transformação pela inovação, nos presenteando com o senso de urgência que nos joga de repente na encruzilhada entre fazer algo diferente ou caminhar para a extinção. E só somos capazes de fazer algo diferente quando escapamos da armadilha do medo, que coloca nosso cérebro mais primitivo no comando. Por isso respirar é tão importante.

 

Reconectar-se com o poder de cada indivíduo - Costumo contar a história do diretor de uma multinacional que me chamou para jantar depois de um workshop e passou o tempo todo reclamando da empresa. E do que ele reclamava? De que não tinha autonomia para nada. Quando, já na sobremesa, quis saber minha opinião, respondi, como "bom" consultor, com outra pergunta: De tudo o que você faz, quantos por cento de autonomia diria que tem? E ele: Não devo ter autonomia em 90% do que faço. Ao que retruquei: Então estou curioso para saber o que você tem feito com seus 10%. Fim de discussão - e do jantar!

 

A maior parte das pessoas que conheço vive dominada pelos 90%, contando repetidamente histórias sobre o que elas não podem fazer em seu trabalho, em seus relacionamentos, em suas comunidades, em seu país. Nem me passa pela cabeça duvidar que essas histórias sejam verdadeiras. Pelo contrário, como meu colega diretor, todas as demais costumam apresentar fatos e dados bastante objetivos. A questão é que, enquanto ficam entretidas - leia-se "hipnotizadas" - com as narrativas do "eu não posso", nem se dão conta da existência dos 10%, esse outro lugar de narrativas igualmente verdadeiras porém onde elas têm autonomia para fazer alguma coisa para mudar o estado das coisas ao invés de ficar só reclamando.

 

O coletivo sabe o que tem que fazer - Já dizia o ditado, duas cabeças pensam melhor que uma. Seguindo no entendimento de que empresas são sistemas vivos e que cada organização também se constitui uma rede de infinitas interconexões, vem da matemática, mais especificamente da geometria fractal, outro conceito que nos ajuda a entender que não precisamos reunir todos os colaboradores de uma organização para acessar a inteligência coletiva, o que pode ser algo impraticável.

 

Um fractal - ou fração - é um objeto geométrico que pode ser dividido em partes, cada uma das quais semelhante ao objeto original. Em muitos casos um fractal pode ser gerado por um padrão repetido, tipicamente um processo recorrente ou iterativo. Imagine que toda organização também segue esse princípio e que, portanto, um indivíduo (colaborador) é um representante fiel do que é/ocorre com o coletivo (organizacão). Os institutos de pesquisas trabalham desde esse mesmo princípio para entender o comportamento de grandes grupos estudando pequenas amostras. Isso significa que, para entender e transformar os padrões de um sistema organizacional, você não precisa de todos os indivíduos, mas de uma amostra de indivíduos mobilizados por um senso de urgência - por exemplo, uma crise - conscientes de onde está sua autonomia - seus 10% - e que se movem como qualquer ser vivo, por meio de ações adaptativas.

 

Um passo de cada vez - as escolas de administração nos ensinaram e as organizações transformaram numa prática do tipo vaca sagrada - ninguém tem coragem de mexer com ela! - que empresa que quer ser saudável financeiramente faz planejamento estratégico de longo prazo. Só faltou combinar com os russos, ou melhor, com o mundo, especialmente, com o mundo VUCA. Quem ousa dizer como estará o câmbio daqui um mês levanta a mão? E as relações entre EUA e China na semana que vem? Ao invés de seguir perdendo tempo com previsões que raramente se realizam, melhor aprender a trafegar nessas letrinhas mágicas (em tradução livre): para Volatilidade, Visão; Para (U)Incerteza, (U)Entendimento; para Complexidade, Conexão; e finalmente para Ambiguidade, Ação adaptativa.

 

A melhor forma de entender o conceito de ação adaptativa é assistindo ao vídeo - disponível no Youtube - Como Lobos Mudam Rios, que conta, com linguagem simples e didática e em pouco mais de 4 minutos, o desencadear das ações adaptativas que ocorreram no parque Yellowstone - sim, o do Zé Colmeia! - a partir da reintrodução de uma pequena matilha de lobos. O título do vídeo já traz o spoiler, mesmo assim aposto que você irá se surpreender com esse experimento iniciado num momento onde grande parte da vegetação do parque havia sido devastada em razão da proliferação de cervos.

 

Em meu trabalho de hacker de transformação organizacional, chamo a reinserção dos lobos em Yellowstone de ação de acupuntura, na medida em que se constitui naquela agulhada certeira que começa a transformar um determinado sistema - por exemplo, uma organização - na direção desejada.

 

A essa altura, você pode se perguntar: Mas, Fabio, como saber a melhor ação de acupuntura? Ao que eu respondo: Impossível saber antes de colocá-la em prática. Portanto, mais importante do que identificar a melhor ação, desafio que, não raras vezes, leva à paralisia e à inação, especialmente nos ambientes organizacionais dominados pelo medo, é colocar alguma ação em prática. E aprender com ela. E colocar em prática a nova ação evoluída a partir do primeiro aprendizado. E assim por diante. Ok, Fabio, mas como chegar pelo menos a uma ação de acupuntura com boas chances de movimentar o sistema na direção desejada? Recapitulando...

 

  1. Conscientize-se do poder das narrativas e use-as a seu favor
  2. Aceite a crise como um convite para a jornada de transformação e ressignifique-a não como ameaça mas como a energia necessária para fazer algo diferente
  3. Reconecte-se com o seu poder de transformação e o de cada indivíduo (foque nos 10%)
  4. Reúna gente incomodada, inquieta, enfim, que aceita o convite da crise, se empodera a partir da sua autonomia e decide usar seu poder e influência para começar a transformar como as coisas são feitas na organização. Mas não se desanime: menos de 10% das pessoas se enquadram nessas características - pelo menos, já é mais do que o suficiente para iniciar um movimento de transformação
  5. Coloque em prática ações simples, mas que tanto o indivíduo quanto o grupo que as criou consideram realmente com potencial de iniciar uma jornada de transformação
  6. Escolha ser o lobo e não o cervo

 

Quer exemplos super simples de como começar? Abaixo estão, sem qualquer filtro, edição ou classificação, algumas dezenas de ações de acupuntura (ações, atitudes, compromissos) criadas pelos participantes da oficina Hackeando as Organizações do Futuro (Sonhos) da I FDC Campus Experience, transformados momentaneamente em hackers de transformação organizacional. E sabe o que há de comum em praticamente todas essas ações? Além de simples e, por vezes, óbvias, realizá-las só depende das próprias pessoas que a criaram. "Sö" faltava a eles serem lembradas disso.

 

Aumentar a comunicação dos times; reproduzir a oficina com o próprio time; separar uma hora do dia para planejar; reservar uma hora por semana para o momento do planejamento; adotar uma data e horário para planejamento; promover o planejamento com frequência semanal e um dia para revisão; iniciar o dia sempre com 10 minutos para planejamento do dia; utilizar métodos ágeis; montar um cartão com a expectativa de uma reunião para cada um dos participantes para aumentar a eficácia das reuniões; capacitar os líderes como hackers de transformação organizacional; realizar a oficina de hackeamento com a própria equipe; adotar critérios claros de priorização; dizer não ao que não gera valor; elaborar metodologia e procedimentos com a equipe; entender que tempo é questão de prioridade; construir soluções em equipe; fazer no prazo, no tempo necessário, no horário de trabalho; priorizar o que mais importa; colocar mais foco nos processos e ações diretamente ligados aos resultados da organização; ter argumentos para dizer não quando ouvir "é pra ontem"; avaliar melhor as tarefas importantes; assumir mais riscos; elaborar procedimentos claros; colaboração, empatia, experimentação; elogiar mais, reforço positivo; criar uma estrutura de comunicação mais direta e de mão dupla com os funcionários; brainstorming com a equipe para ampliar possibilidades de solucionar um problema; agradecer os colegas; a cada segunda-feira combinar com uma pessoa do time para que assuma uma responsabilidade/tarefa naquela semana; promover uma ação onde colaboradores indicados por outros para trabalhar na empresa tirem uma foto juntos com uma placa "obrigado por ter confiado em mim"; compartilhar responsabilidades; ações de reconhecimento; manter os objetivos ou missão da empresa impressos na baia para sempre trabalhar na direção deles; reduzir em 50% o número de indicadores da companhia; inspirar os líderes da organização para "serem a mudança" rumo à organização dos sonhos; ações de integração frequentes com o RH e a alta gestão da empresa com todas as equipes da empresa; implantar um sistema de melhorias sugeridas pelos colaboradores da área; ouvir mais o outro e o ambiente; gerar confiança entre colegas; reunir as pessoas em lugares diferentes do ambiente de trabalho para se conhecerem e gerar confiança; permitir ousar mais; reconhecimento da organização quando uma ideia de algum indivíduo é implementada, por exemplo, reconhecimento na rede social da empresa; ações de autoconhecimento e conhecimento do outro, tanto sobre aspectos profissionais quanto pessoais; ensinar algumas atividades e dar autonomia para as pessoas realizarem; mapear processos e retirar da liderança as decisões; estar presente; eu deveria usar melhor e mais a autonomia que já possuo; compartilhar a tomada de decisão, dar o devido crédito e pedir a opinião de todos; dar oportunidade para os colaboradores criarem soluções para problemas que eles percebem; encontros periódicos para integração da equipe; saber que o que eu quero nem sempre poderei fazer.

 

Leu 2.533 palavras deste textão e ainda quer seguir aprendendo sobre o tema? Escreva para fabio@corall.net .

 

Disclaimer: Textão à vista!

Pesquisei várias fontes e não há um consenso sobre o tamanho ideal para um post de blog, com recomendações que variam de 400 a 2.000 palavras. O site.com.br, por exemplo, recomenda um texto de, no máximo, 600 palavras, enquanto o título não pode passar de 6 palavras. A boa notícia é que consegui seguir à risca a regra do título.

 

Antes de mais nada, quando escrevo hacker, o que quero dizer? Empresto o conceito de hackear não do mundo do crime mas de uma empresa que se orgulha de sua cultura hacker, tanto é que, além de seu headquarter estar localizado no endereço "1 Hacker Way" e de fazer diálogos ao vivo entre seu CEO e seu 25 mil colaboradores pelo mundo a partir da "Hacker Square", o Facebook também traz em seu manual de cultura o espírito hacker, definido pelas seguintes palavras (em tradução livre): "Hackear é uma abordagem à solução de problemas que é ao mesmo tempo humilde e otimista em sua convicção de que tudo o que foi construído pode ser melhorado.” E eu humildemente adicionaria que pode ser melhorado quando se usam caminhos não convencionais, porém legais, com o duplo sentido que a palavra em português propicia, como veremos mais à frente.

 

Na verdade, o título deste "postão" foi inspirado em uma oficina de três horas que conduzi com alunos e ex-alunos da Fundação Dom Cabral no I Campus Experience realizado especialmente para esse público na sede da instituição em Nova Lima, Minas Gerais. Meu objetivo é reproduzir os principais ensinamentos dessa experiência prática em um texto que possa inspirar qualquer pessoa que quiser a começar a agir como um hacker de transformação organizacional.

 

Por que transformação não mudança, Fábio?

Porque você muda de emprego, muda de casa, muda de país, muda até de nome, se quiser, mas não muda de corpo - pelo menos não nessa vida. Você se transforma, evolui e, depois de algum tempo, quando se compara o você de 10 anos atrás com o você de hoje, alguém pode comentar: Nossa, como você mudou! E você: Na verdade, eu me transformei, mas pelo visto você não estava por perto para acompanhar… Ok, melhor não falar assim.

 

Tendo em vista que organizações operam como seres vivos - é só olhar para uma organização para descobrir que, atrás do site, da marca, do prédio, têm sempre pessoas - , organizações evoluem e se transformam a exemplo do que ocorre com pessoas. Por isso, dizemos transformações organizacionais e não mudanças organizacionais.

 

Do título original da oficina - "Hackeando as Organizações do Futuro" - abdiquei da palavra futuro, para evitar a atração quase irresistível de sairmos por aí profetizando um amanhã, na real, impossível de se prever. Ou, pior, nos entregarmos ao futuro sombrio que muitos arautos do apocalipse vêm disseminando pelas redes sociais e já poderia até ser chamado de epidemia. E assim chegamos, com alguma demora, à primeira lição do textão.

 

Narrativas moldam a forma como vemos e vivemos o mundo - As narrativas que ouvimos, construímos, contamos, enfim, aceitamos como verdadeiras funcionam como mantras hipnóticos que, ao serem repetidas, nos fazem enxergar a realidade por um único viés. Falo do Brasil que não tem jeito, do político que é tudo corrupto e de muitas outras histórias que contaminam nosso dia a dia com generalizações perigosas e de alto contágio. Ou seja, narrativas criam transes o tempo todo. E, ao sabermos desse processo, podemos nos desesperar, entregando-nos ao auto-engano, ou usá-las ao nosso favor. Adivinha qual caminho iremos explorar aqui?

 

Já existem organizações entre nós que operam desde princípios que desejamos ver nas organizações para as quais gostaríamos de trabalhar no futuro. E existe um processo simples, rápido e baseado na inteligência coletiva para construir uma estrada de alta velocidade em direção a elas. Esse caminho é composto pelos pilares descritos a seguir.

 

Aceitar e ressignificar a crise - Ao primeiro sinal de ameaça à vida, nosso sistema nervoso aciona automaticamente um complexo mecanismo secretando substâncias químicas como adrenalina e cortisol, para que reajamos rapidamente contra o que nos ameaça. Os batimentos cardíacos se aceleram, o sangue é bombeado com mais velocidade para os músculos e extremidades e, ao invés de pensar, o que pode ser fatal numa situação de perigo iminente, somos impelidos a apenas três reações: lutar, fugir ou congelar (paralisar). E, acredite, isso é ótimo, por exemplo, para escapar de um atropelamento, quando precisamos reagir muito rapidamente. No entanto, como nosso sistema nervoso nem sempre consegue distinguir entre uma situação real de risco à vida - o encontro inesperado com um leão faminto - e situações que não representam um risco real - uma discussão ríspida - precisamos ajudá-lo a voltar à operação de cruzeiro, que é o estado físico e emocional mais apropriado para refletir e tomar decisões, digamos, inteligentes.

 

Primeiro passo para poder fazer isso: aceitar que funcionamos desse jeito, e reconhecer que isto não é um defeito - não tente, portanto, "consertá-lo". Segundo passo: respirar lenta e profundamente, para ajudar o coração a bombear o sangue de volta das extremidades e músculos para o cérebro - acredite, para encontrar o melhor caminho para lidar com a crise, você irá precisar de seu cérebro inteirinho, e não só o pedaço mais primitivo, também conhecido como reptiliano, que é quem assume o comando na hora de encarar leões famintos. Terceiro passo: ressignificar a discussão ríspida como o que ela é de fato: uma ameaça ilusória à vida.

 

Substitua a discussão ríspida por uma crise, qualquer crise. Toda crise aparece no sistema de um ser vivo como um sinal de alerta que fala, ou melhor, grita para esse indivíduo ou grupo de indivíduos que o meio e/ou a forma que esse ser escolheu para viver já não está mais funcionando. Em outras palavras, crises existem para acelerar nossa transformação pela inovação, nos presenteando com o senso de urgência que nos joga de repente na encruzilhada entre fazer algo diferente ou caminhar para a extinção. E só somos capazes de fazer algo diferente quando escapamos da armadilha do medo, que coloca nosso cérebro mais primitivo no comando. Por isso respirar é tão importante.

 

Reconectar-se com o poder de cada indivíduo - Costumo contar a história do diretor de uma multinacional que me chamou para jantar depois de um workshop e passou o tempo todo reclamando da empresa. E do que ele reclamava? De que não tinha autonomia para nada. Quando, já na sobremesa, quis saber minha opinião, respondi, como "bom" consultor, com outra pergunta: De tudo o que você faz, quantos por cento de autonomia diria que tem? E ele: Não devo ter autonomia em 90% do que faço. Ao que retruquei: Então estou curioso para saber o que você tem feito com seus 10%. Fim de discussão - e do jantar!

 

A maior parte das pessoas que conheço vive dominada pelos 90%, contando repetidamente histórias sobre o que elas não podem fazer em seu trabalho, em seus relacionamentos, em suas comunidades, em seu país. Nem me passa pela cabeça duvidar que essas histórias sejam verdadeiras. Pelo contrário, como meu colega diretor, todas as demais costumam apresentar fatos e dados bastante objetivos. A questão é que, enquanto ficam entretidas - leia-se "hipnotizadas" - com as narrativas do "eu não posso", nem se dão conta da existência dos 10%, esse outro lugar de narrativas igualmente verdadeiras porém onde elas têm autonomia para fazer alguma coisa para mudar o estado das coisas ao invés de ficar só reclamando.

 

O coletivo sabe o que tem que fazer - Já dizia o ditado, duas cabeças pensam melhor que uma. Seguindo no entendimento de que empresas são sistemas vivos e que cada organização também se constitui uma rede de infinitas interconexões, vem da matemática, mais especificamente da geometria fractal, outro conceito que nos ajuda a entender que não precisamos reunir todos os colaboradores de uma organização para acessar a inteligência coletiva, o que pode ser algo impraticável.

 

Um fractal - ou fração - é um objeto geométrico que pode ser dividido em partes, cada uma das quais semelhante ao objeto original. Em muitos casos um fractal pode ser gerado por um padrão repetido, tipicamente um processo recorrente ou iterativo. Imagine que toda organização também segue esse princípio e que, portanto, um indivíduo (colaborador) é um representante fiel do que é/ocorre com o coletivo (organizacão). Os institutos de pesquisas trabalham desde esse mesmo princípio para entender o comportamento de grandes grupos estudando pequenas amostras. Isso significa que, para entender e transformar os padrões de um sistema organizacional, você não precisa de todos os indivíduos, mas de uma amostra de indivíduos mobilizados por um senso de urgência - por exemplo, uma crise - conscientes de onde está sua autonomia - seus 10% - e que se movem como qualquer ser vivo, por meio de ações adaptativas.

 

Um passo de cada vez - as escolas de administração nos ensinaram e as organizações transformaram numa prática do tipo vaca sagrada - ninguém tem coragem de mexer com ela! - que empresa que quer ser saudável financeiramente faz planejamento estratégico de longo prazo. Só faltou combinar com os russos, ou melhor, com o mundo, especialmente, com o mundo VUCA. Quem ousa dizer como estará o câmbio daqui um mês levanta a mão? E as relações entre EUA e China na semana que vem? Ao invés de seguir perdendo tempo com previsões que raramente se realizam, melhor aprender a trafegar nessas letrinhas mágicas (em tradução livre): para Volatilidade, Visão; Para (U)Incerteza, (U)Entendimento; para Complexidade, Conexão; e finalmente para Ambiguidade, Ação adaptativa.

 

A melhor forma de entender o conceito de ação adaptativa é assistindo ao vídeo - disponível no Youtube - Como Lobos Mudam Rios, que conta, com linguagem simples e didática e em pouco mais de 4 minutos, o desencadear das ações adaptativas que ocorreram no parque Yellowstone - sim, o do Zé Colmeia! - a partir da reintrodução de uma pequena matilha de lobos. O título do vídeo já traz o spoiler, mesmo assim aposto que você irá se surpreender com esse experimento iniciado num momento onde grande parte da vegetação do parque havia sido devastada em razão da proliferação de cervos.

 

Em meu trabalho de hacker de transformação organizacional, chamo a reinserção dos lobos em Yellowstone de ação de acupuntura, na medida em que se constitui naquela agulhada certeira que começa a transformar um determinado sistema - por exemplo, uma organização - na direção desejada.

 

A essa altura, você pode se perguntar: Mas, Fabio, como saber a melhor ação de acupuntura? Ao que eu respondo: Impossível saber antes de colocá-la em prática. Portanto, mais importante do que identificar a melhor ação, desafio que, não raras vezes, leva à paralisia e à inação, especialmente nos ambientes organizacionais dominados pelo medo, é colocar alguma ação em prática. E aprender com ela. E colocar em prática a nova ação evoluída a partir do primeiro aprendizado. E assim por diante. Ok, Fabio, mas como chegar pelo menos a uma ação de acupuntura com boas chances de movimentar o sistema na direção desejada? Recapitulando...

 

  1. Conscientize-se do poder das narrativas e use-as a seu favor
  2. Aceite a crise como um convite para a jornada de transformação e ressignifique-a não como ameaça mas como a energia necessária para fazer algo diferente
  3. Reconecte-se com o seu poder de transformação e o de cada indivíduo (foque nos 10%)
  4. Reúna gente incomodada, inquieta, enfim, que aceita o convite da crise, se empodera a partir da sua autonomia e decide usar seu poder e influência para começar a transformar como as coisas são feitas na organização. Mas não se desanime: menos de 10% das pessoas se enquadram nessas características - pelo menos, já é mais do que o suficiente para iniciar um movimento de transformação
  5. Coloque em prática ações simples, mas que tanto o indivíduo quanto o grupo que as criou consideram realmente com potencial de iniciar uma jornada de transformação
  6. Escolha ser o lobo e não o cervo

 

Quer exemplos super simples de como começar? Abaixo estão, sem qualquer filtro, edição ou classificação, algumas dezenas de ações de acupuntura (ações, atitudes, compromissos) criadas pelos participantes da oficina Hackeando as Organizações do Futuro (Sonhos) da I FDC Campus Experience, transformados momentaneamente em hackers de transformação organizacional. E sabe o que há de comum em praticamente todas essas ações? Além de simples e, por vezes, óbvias, realizá-las só depende das próprias pessoas que a criaram. "Sö" faltava a eles serem lembradas disso.

 

Aumentar a comunicação dos times; reproduzir a oficina com o próprio time; separar uma hora do dia para planejar; reservar uma hora por semana para o momento do planejamento; adotar uma data e horário para planejamento; promover o planejamento com frequência semanal e um dia para revisão; iniciar o dia sempre com 10 minutos para planejamento do dia; utilizar métodos ágeis; montar um cartão com a expectativa de uma reunião para cada um dos participantes para aumentar a eficácia das reuniões; capacitar os líderes como hackers de transformação organizacional; realizar a oficina de hackeamento com a própria equipe; adotar critérios claros de priorização; dizer não ao que não gera valor; elaborar metodologia e procedimentos com a equipe; entender que tempo é questão de prioridade; construir soluções em equipe; fazer no prazo, no tempo necessário, no horário de trabalho; priorizar o que mais importa; colocar mais foco nos processos e ações diretamente ligados aos resultados da organização; ter argumentos para dizer não quando ouvir "é pra ontem"; avaliar melhor as tarefas importantes; assumir mais riscos; elaborar procedimentos claros; colaboração, empatia, experimentação; elogiar mais, reforço positivo; criar uma estrutura de comunicação mais direta e de mão dupla com os funcionários; brainstorming com a equipe para ampliar possibilidades de solucionar um problema; agradecer os colegas; a cada segunda-feira combinar com uma pessoa do time para que assuma uma responsabilidade/tarefa naquela semana; promover uma ação onde colaboradores indicados por outros para trabalhar na empresa tirem uma foto juntos com uma placa "obrigado por ter confiado em mim"; compartilhar responsabilidades; ações de reconhecimento; manter os objetivos ou missão da empresa impressos na baia para sempre trabalhar na direção deles; reduzir em 50% o número de indicadores da companhia; inspirar os líderes da organização para "serem a mudança" rumo à organização dos sonhos; ações de integração frequentes com o RH e a alta gestão da empresa com todas as equipes da empresa; implantar um sistema de melhorias sugeridas pelos colaboradores da área; ouvir mais o outro e o ambiente; gerar confiança entre colegas; reunir as pessoas em lugares diferentes do ambiente de trabalho para se conhecerem e gerar confiança; permitir ousar mais; reconhecimento da organização quando uma ideia de algum indivíduo é implementada, por exemplo, reconhecimento na rede social da empresa; ações de autoconhecimento e conhecimento do outro, tanto sobre aspectos profissionais quanto pessoais; ensinar algumas atividades e dar autonomia para as pessoas realizarem; mapear processos e retirar da liderança as decisões; estar presente; eu deveria usar melhor e mais a autonomia que já possuo; compartilhar a tomada de decisão, dar o devido crédito e pedir a opinião de todos; dar oportunidade para os colaboradores criarem soluções para problemas que eles percebem; encontros periódicos para integração da equipe; saber que o que eu quero nem sempre poderei fazer.

 

Leu 2.533 palavras deste textão e ainda quer seguir aprendendo sobre o tema? Escreva para fabio@corall.net .

 

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