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Dilemas crescentes no século 21

Quando olhamos a história, verificamos que o avanço tecnológico nos trouxe grandes mudanças. Qual será o impacto da tecnologia sobre o mercado de trabalho?

(Shutterstock/ Pathdoc/Corall Consultoria)
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corallconsultoria

Publicado em 24 de setembro de 2018 às 15h56.

O carro autoguiado será em breve uma realidade presente em várias cidades no mundo e trará impactos enormes em como nos deslocamos, na nossa relação com o ter ou não um carro, no número e gravidade de acidentes. Sim, os automóveis autoguiados são muito mais seguros do que os dirigidos por humanos pois seguem regras de forma restrita, estão com todos os sensores alertas a tudo o que acontece ao seu redor e nunca entram em estado de desatenção – e muito menos embriaguez. O autoguiado é regido por uma série de programas - a palavra algoritmo tem sido cada vez mais usada nestes casos – e são estes códigos que definem o que o carro deve fazer em cada situação. É por isto que quando percebe a aproximação de um pedestre, o autoguiado automaticamente freia ou desvia para evitar o acidente.

Imaginemos agora a seguinte situação: o autoguiado percebe a aproximação repentina de uma criança correndo e, dada as condições da estrada, a única alternativa para evitar o atropelamento é desviar para a outra pista, o que, devido ao fato de haver um caminhão na direção contrária, causará um acidente em que terei danos pessoais e talvez até a minha morte e de quem estiver no carro comigo. O que o auto fará? Fará o que estiver programado para fazer. Ou seja, o que estiver em seu algoritmo. Neste caso, a responsabilidade da decisão recairá sobre o programador e a empresa onde trabalha. A empresa para não ter sozinha esta responsabilidade, poderá por sua vez, durante o processo de compra, realizar perguntas ao comprador sobre como gostaria que seu auto se comportasse em situações extremas como esta. Que resposta você escolheria? Atropelar a criança ou correr o risco de morrer na batida contra o caminhão? De uma certa forma, algumas pessoas já passaram ou passam por dilema semelhante hoje quando estão dirigindo seus carros. A grande diferença hoje, no entanto, é que a decisão é tomada no reflexo, no instinto, e pode se dizer que não foi tomada de forma racional. No caso do programa para o autoguiado, a decisão será premeditada. Se acontecer isto, faça aquilo.

Ficção científica? Pode parecer, mas este tipo de dilema estará cada vez mais presente no nosso dia-a-dia. Há pouco mais de 10 anos, não existiam smartfones. O primeiro iphone foi lançado em 2007 e vejam a quantidade de mudanças que ocorreram no mundo com esta tecnologia. Uber, Airbnb, compras por aplicativos deixando muitos varejistas às moscas, etc. etc. Nosso mundo em 10 anos será muito diferente do que é hoje e com certeza os autoguiados estarão muito presentes em diversas cidades do mundo. E provavelmente viveremos situações que nem imaginamos serem possíveis hoje. Algo que podemos estar certos é que “o ritmo das mudanças nunca esteve tão lento quanto esteve até agora”.

Uma das reflexões que mais tenho feito é sobre o impacto da tecnologia sobre o mercado de trabalho. Quando olhamos para o que a história nos mostra, verificamos que o avanço tecnológico trouxe grande impactos nos deslocamentos profissionais. Em grandes ondas trabalhadores do setor agrário migraram para o industrial, e posteriormente do industrial migraram para o setor de serviços. Um exemplo marcante é o deslocamento de profissionais dedicados à agricultura que em menos de 100 anos passaram de mais de metade da mão de obra ativa a 2% nos dias de hoje (dados dos USA). Muitas profissões desapareceram ou ficaram reduzidas a um número ínfimo, só de especialistas, enquanto que profissões completamente novas passaram a existir. Alguns autores ousam dizer que mais de 60% das profissões que nossas crianças exercerão ainda não foram criadas. Previsões apocalípticas de décadas atrás de que máquinas ou robôs industriais eliminariam os empregos, não se materializaram, pois novas posições foram criadas, muitas delas no setor de serviços. Por exemplo, caixas automáticos reduziram drasticamente o número de caixas bancários mas muitas novas agências foram criadas oferecendo outros produtos e serviços.

Nestes movimentos sucessivos, uma tendência clara se manteve, posições que requeriam menor nível educacional foram substituídas por outras mais sofisticadas com maiores demandas técnicas e com maior especialização. O que está acontecendo na atualidade é que esta substituição está ocorrendo cada vez mais rapidamente. O controle do deslocamento de drones atualmente requer técnicos capazes de operá-los, mas já se sabe que em breve este trabalho poderá ser feito por programas sofisticados.

No mês passado, num grande evento na Singularity University, foi apresentada uma tecnologia muito interessante que trará muitas mudanças na forma como percebemos a interação com máquinas. Cenário: um homem conversa com a imagem virtual de uma mulher, que é produto da inteligência artificial. Ela entende e interage com o homem, respondendo às suas perguntas e fazendo outras perguntas ampliando o seu conhecimento e base de dados sobre aquela interação. O mais impressionante, no entanto, é que a partir da leitura facial do homem, o sistema era capaz de reconhecer quais eram as principais emoções vividas por ele e assim mudar o semblante da imagem da mulher, trazendo uma forte sensação de empatia, entendimento e conforto na interação. Este caso me levou a refletir que mesmo em profissões onde há necessidade de uma resposta mais emocional, empática, com “calor humano”, num futuro não tão distante, máquinas poderão trazer boas respostas, refinando e adequando a entonação da voz e da expressão facial.

Um aspecto marcante destas novas tecnologias é que apesar de seu desenvolvimento necessitar de altos investimentos, depois de finalizado, o produto é altamente “escalável”, ou seja, é muito mais fácil e barato encontrar situações onde pode ser usada com valores competitivos. O que me leva a refletir que não só as profissões focadas em padrões repetitivos, sejam manuais ou de conhecimento serão impactadas, mas mesmo aquelas em que uma interação que exige mais sensibilidade poderá ser realizada com máquinas.

Faço parte do grupo de otimistas e creio que a tecnologia continuará a trazer muitos benefícios para a humanidade. Mas não tenho dúvida de que o ser humano terá que fazer reflexões cada vez mais desafiadoras sobre o impacto e os dilemas que este cenário de avanço tecnológico acelerado nos traz. Países que não investirem fortemente no setor educacional e na capacidade de sua força de trabalho desenvolver habilidades como a de reaprender rapidamente, correm o risco de ficarem com grande parte da sua população simplesmente obsoleta e improdutiva. Faço aqui uma menção ao historiador e escritor Yuval Noah Harari, que em seus livros Sapiens, Homo Deus e 21 lições para o século 21, tem levantado muitos destes dilemas que já enfrentamos e que enfrentaremos de forma cada vez mais intensa. Não tenho ainda a sensibilidade do quão rápido tais dilemas baterão à nossa porta de uma forma generalizada, ou seja, em grande parte do mundo, mas suspeito que seja mais cedo do que poderíamos hoje imaginar.

Sinta-se à vontade para trocar mais ideias sobre o tema escrevendo para mim. Meu e-mail é ney@corall.net.

O carro autoguiado será em breve uma realidade presente em várias cidades no mundo e trará impactos enormes em como nos deslocamos, na nossa relação com o ter ou não um carro, no número e gravidade de acidentes. Sim, os automóveis autoguiados são muito mais seguros do que os dirigidos por humanos pois seguem regras de forma restrita, estão com todos os sensores alertas a tudo o que acontece ao seu redor e nunca entram em estado de desatenção – e muito menos embriaguez. O autoguiado é regido por uma série de programas - a palavra algoritmo tem sido cada vez mais usada nestes casos – e são estes códigos que definem o que o carro deve fazer em cada situação. É por isto que quando percebe a aproximação de um pedestre, o autoguiado automaticamente freia ou desvia para evitar o acidente.

Imaginemos agora a seguinte situação: o autoguiado percebe a aproximação repentina de uma criança correndo e, dada as condições da estrada, a única alternativa para evitar o atropelamento é desviar para a outra pista, o que, devido ao fato de haver um caminhão na direção contrária, causará um acidente em que terei danos pessoais e talvez até a minha morte e de quem estiver no carro comigo. O que o auto fará? Fará o que estiver programado para fazer. Ou seja, o que estiver em seu algoritmo. Neste caso, a responsabilidade da decisão recairá sobre o programador e a empresa onde trabalha. A empresa para não ter sozinha esta responsabilidade, poderá por sua vez, durante o processo de compra, realizar perguntas ao comprador sobre como gostaria que seu auto se comportasse em situações extremas como esta. Que resposta você escolheria? Atropelar a criança ou correr o risco de morrer na batida contra o caminhão? De uma certa forma, algumas pessoas já passaram ou passam por dilema semelhante hoje quando estão dirigindo seus carros. A grande diferença hoje, no entanto, é que a decisão é tomada no reflexo, no instinto, e pode se dizer que não foi tomada de forma racional. No caso do programa para o autoguiado, a decisão será premeditada. Se acontecer isto, faça aquilo.

Ficção científica? Pode parecer, mas este tipo de dilema estará cada vez mais presente no nosso dia-a-dia. Há pouco mais de 10 anos, não existiam smartfones. O primeiro iphone foi lançado em 2007 e vejam a quantidade de mudanças que ocorreram no mundo com esta tecnologia. Uber, Airbnb, compras por aplicativos deixando muitos varejistas às moscas, etc. etc. Nosso mundo em 10 anos será muito diferente do que é hoje e com certeza os autoguiados estarão muito presentes em diversas cidades do mundo. E provavelmente viveremos situações que nem imaginamos serem possíveis hoje. Algo que podemos estar certos é que “o ritmo das mudanças nunca esteve tão lento quanto esteve até agora”.

Uma das reflexões que mais tenho feito é sobre o impacto da tecnologia sobre o mercado de trabalho. Quando olhamos para o que a história nos mostra, verificamos que o avanço tecnológico trouxe grande impactos nos deslocamentos profissionais. Em grandes ondas trabalhadores do setor agrário migraram para o industrial, e posteriormente do industrial migraram para o setor de serviços. Um exemplo marcante é o deslocamento de profissionais dedicados à agricultura que em menos de 100 anos passaram de mais de metade da mão de obra ativa a 2% nos dias de hoje (dados dos USA). Muitas profissões desapareceram ou ficaram reduzidas a um número ínfimo, só de especialistas, enquanto que profissões completamente novas passaram a existir. Alguns autores ousam dizer que mais de 60% das profissões que nossas crianças exercerão ainda não foram criadas. Previsões apocalípticas de décadas atrás de que máquinas ou robôs industriais eliminariam os empregos, não se materializaram, pois novas posições foram criadas, muitas delas no setor de serviços. Por exemplo, caixas automáticos reduziram drasticamente o número de caixas bancários mas muitas novas agências foram criadas oferecendo outros produtos e serviços.

Nestes movimentos sucessivos, uma tendência clara se manteve, posições que requeriam menor nível educacional foram substituídas por outras mais sofisticadas com maiores demandas técnicas e com maior especialização. O que está acontecendo na atualidade é que esta substituição está ocorrendo cada vez mais rapidamente. O controle do deslocamento de drones atualmente requer técnicos capazes de operá-los, mas já se sabe que em breve este trabalho poderá ser feito por programas sofisticados.

No mês passado, num grande evento na Singularity University, foi apresentada uma tecnologia muito interessante que trará muitas mudanças na forma como percebemos a interação com máquinas. Cenário: um homem conversa com a imagem virtual de uma mulher, que é produto da inteligência artificial. Ela entende e interage com o homem, respondendo às suas perguntas e fazendo outras perguntas ampliando o seu conhecimento e base de dados sobre aquela interação. O mais impressionante, no entanto, é que a partir da leitura facial do homem, o sistema era capaz de reconhecer quais eram as principais emoções vividas por ele e assim mudar o semblante da imagem da mulher, trazendo uma forte sensação de empatia, entendimento e conforto na interação. Este caso me levou a refletir que mesmo em profissões onde há necessidade de uma resposta mais emocional, empática, com “calor humano”, num futuro não tão distante, máquinas poderão trazer boas respostas, refinando e adequando a entonação da voz e da expressão facial.

Um aspecto marcante destas novas tecnologias é que apesar de seu desenvolvimento necessitar de altos investimentos, depois de finalizado, o produto é altamente “escalável”, ou seja, é muito mais fácil e barato encontrar situações onde pode ser usada com valores competitivos. O que me leva a refletir que não só as profissões focadas em padrões repetitivos, sejam manuais ou de conhecimento serão impactadas, mas mesmo aquelas em que uma interação que exige mais sensibilidade poderá ser realizada com máquinas.

Faço parte do grupo de otimistas e creio que a tecnologia continuará a trazer muitos benefícios para a humanidade. Mas não tenho dúvida de que o ser humano terá que fazer reflexões cada vez mais desafiadoras sobre o impacto e os dilemas que este cenário de avanço tecnológico acelerado nos traz. Países que não investirem fortemente no setor educacional e na capacidade de sua força de trabalho desenvolver habilidades como a de reaprender rapidamente, correm o risco de ficarem com grande parte da sua população simplesmente obsoleta e improdutiva. Faço aqui uma menção ao historiador e escritor Yuval Noah Harari, que em seus livros Sapiens, Homo Deus e 21 lições para o século 21, tem levantado muitos destes dilemas que já enfrentamos e que enfrentaremos de forma cada vez mais intensa. Não tenho ainda a sensibilidade do quão rápido tais dilemas baterão à nossa porta de uma forma generalizada, ou seja, em grande parte do mundo, mas suspeito que seja mais cedo do que poderíamos hoje imaginar.

Sinta-se à vontade para trocar mais ideias sobre o tema escrevendo para mim. Meu e-mail é ney@corall.net.

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