Leilão de obras de Edemar Cid Ferreira é sinal de transição para digital
Diretora da SP-Arte escreve sobre o leilão que arrecadou cerca de R$ 37 milhões, valor que será usado para pagar os credores de massa falida
Publicado em 6 de outubro de 2020 às, 12h05.
Última atualização em 3 de novembro de 2020 às, 17h44.
Nos últimos dias, os olhos do mercado de arte se voltaram para a etapa final do leilão da coleção de arte da massa falida do Banco Santos, do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, controverso mecenas brasileiro da virada do século que chegou a presidir a Fundação Bienal de São Paulo e, no ano 2000, realizou a Mostra 500 Anos do Descobrimento do Brasil, um marco das grandes mostras blockbuster de arte no Brasil e a primeira a atrair mais de 1 milhão de visitantes. Em 2004 seu Banco sofreu intervenção judicial e em 2005 teve seus bens interditados e a falência decretada.
A primeira etapa do leilão ocorreu em 2016, com um conjunto menor de obras que estavam na residência de Cid Ferreira, e arrecadou R$ 11.8 milhões. Essa segunda etapa, conduzida pelo leiloeiro James Lisboa, comercializou, ao longo de dez dias, cerca de 1900 peças da coleção que incluía algumas raridades da arte nacional e internacional. Grande parte dessa coleção havia sido transferida, por decisão judicial, para o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), onde ficou sob guarda nos últimos quinze anos. Há discussões pertinentes no meio cultural sobre se algumas obras relevantes desta coleção deveriam ou não ter sido separadas da massa falida e doadas permanentemente aos museus de arte estaduais, em benefício público, ao invés de dadas em garantia dos credores da massa falida. Mas isso é assunto para outro artigo.
Na primeira noite, a tela “The Foundling #6”, do norte-americano Frank Stella, alcançou o valor de R$ 4,2 milhões. A obra “Muro”, de Cildo Meireles, foi vendida por R$ 1,35 milhão, mais de 67 vezes o valor do lance inicial. Já um esboço da tela “Operários”, de Tarsila do Amaral, foi arrematado por R$ 1,2 milhão — o lance mínimo era de R$ 32 mil[b1] . Vale aqui chamar atenção para a particularidade de esse ter sido um leilão judicializado em torno de uma massa falida, o que costuma partir de valores registrados à época da aquisição das peças, explicando os valores iniciais tão aquém dos seu valores de avaliação a mercado, ficando por conta da dinâmica do próprio leilão o ajuste do valor final ao preço de mercado das obras. Além disso, o fato de ser uma coleção pertencente a uma figura pública também explica 80% dos lotes terem sido arrematados, com ágio, na média, de cerca de 280% dos lances mínimos. No total, a venda da coleção arrecadou cerca de R$ 37 milhões, valor que será usado para pagar os credores da massa falida, como determina a Lei de Falência brasileira.
Este acontecimento recente traz aos olhos do público uma nova faceta da venda de arte por leilões, e o que eu gostaria de tratar nesse artigo não são as cifras, a qualidade das obras ou os percalços que envolvem essa longa história, mas sim uma novidade marcada por ela: o leilão, que estava programado para ocorrer em março, foi suspenso pela pandemia e migrou totalmente para o ambiente online poucos meses depois. Se em meu artigo anterior ressaltei o recente e ágil processo de digitalização das galerias e feiras de arte, gostaria agora de dividir algumas reflexões sobre[b2] como as casas de leilão vêm respondendo a desafios que o mundo digital (e claro, a pandemia) estão impondo ao mundo da arte. Como bem disse David Norman, CEO da Phillips, “Com a pandemia, a forma tradicional de fazermos negócio foi pelas janelas”.
Tal como as galerias, a maior parte das negociações nos leilões sempre ocorreram através de encontros presenciais nos meses da primavera e do outono, em procedimento que se realiza há mais de dois séculos. Para ilustrarmos a relevância dos leilões, no ano passado, esse setor foi responsável por 42% das transações do mercado de arte no mundo, sendo que EUA, Reino Unido e China abocanham nada menos que 84% do montante global, cerca de USD 25 bilhões. Se alguns tradicionais leilões no segmento de luxo, como relógios e joias ou obras de arte de valores até USD 50mil já estavam integrados ao mundo digital e habituados a lances via internet, sem dúvidas a Covid-19 lançou a todos na urgência de repensar essa dinâmica e expandir para todas as categorias, inclusive as das obras mais caras.
O marco desta mudança na era do distanciamento foi o primeiro leilão transmitido ao vivo para o mundo, por streaming, pela Sotheby’s no dia 29 de junho, que durou quatro horas e meia e negociou USD 363,2 milhões. Ainda que não tenha batido um recorde de leilão usual, o tríptico de Francis Bacon foi vendido por USD 84,6 milhões, após uma batalha de quase dez minutos entre um comprador que estava diretamente conectado on-line da China e outro que estava ao telefone de Nova York. Leilões, assim como as feiras de arte digitais, têm sido essenciais para garantir e restabelecer a confiança aos colecionadores, artistas e mercado de arte em geral nesse semestre. Agora virá a parte mais difícil que é adaptar-se a essa nova era no longo prazo. Os veteranos sabem que o mercado de arte não é uma corrida de velocidade, mas sim de resistência.
Algumas destas mudanças impostas pela Covid-19 foram bem-vindas, e estavam sendo gestadas nos últimos anos, com alguma resistência. O distanciamento apenas acelerou esse processo de tomada da decisão de mudanças de hábitos muito enraizados num setor tradicional por natureza.
1) A extinção dos luxuosos, caros e antiecológicos catálogos em papel para eventos comerciais deste porte já era esperada uma vez que todas as informações podem estar disponíveis online, de forma muito mais imersiva, com recursos de áudio e vídeo para complementar a experiência e o conteúdo. Digam adeus aos catálogos pelo correio!
2) A migração definitiva de muitos leilões para o ambiente online, inclusive os de obras de maior valor, liderada pelos Milennials. Se antes somente obras abaixo de USD 50 mil eram vendidas online, agora as obras das faixas mais altas também entraram nessa disputa online. Nesse primeiro semestre o mesmo trio de casas de leilão mencionado acima realizou 130 leilões online, mais do que o dobro de leilões realizados no ano de 2019 e movimentou até a presente data, em torno de USD 825 milhões, um expressivo aumento de 540%. O valor médio de obras de arte compradas online aumentou em 15%, de USD 24 mil para USD 27mil. Aqui aparece novamente a figura dos Millenials, que em 2019 já gastaram mais que seus pais, da chamada geração dos Baby Boomers.
3) A fusão de departamentos antes muito segmentados e a flexibilização das categorias poderão criar leilões mais diversificados, ecléticos e menos departamentalizados, como o realizado pela Sotheby’s em julho “De Rembrandt a Richter”, ou a inclusão de obras de uma importante coleção latino-americana em um leilão tradicional de impressionismo pela mesma casa.
4) Transformações comportamentais também serão notadas daqui para frente, que afetarão, pelo menos de imediato, o glamour do setor com menos viagens, menos recepções e jantares para colecionadores e operações mais enxutas, com foco em especialistas que tenham não só conhecimento de história da arte mas também com fluência nos processos tecnológicos de divulgação de informação e aquisição de novos clientes em escala global, consolidação dos colecionadores Millenials e a expansão em todas as faixas de preços do Mercado, em busca de uma internacionalização plena das marteladas e arremates para colecionadores de qualquer parte do mundo.
Acredito que uma das características fundamentais do mercado de arte seja o ciclo virtuoso e a integração gravitacional de seus players - ou seja, ao passo que galerias, feiras, casas de leilão e uma vasta gama de instituições de arte são lembrados simultaneamente que a presença digital sólida é muito mais do que acessória, isso traz uma confiança importante ao mercado e aos clientes.
É provável que o saldo deste ano errático oscile para baixo, mas o salto representado pelos eventos virtuais foram suficientes para aplacar as ansiedades e comprovar a elasticidade e resiliência do mercado de arte.