Felipe Miranda: O fim de duas eras
Para entender a era atual, voltemos a 1979, quando o rock era outro e um aumento inédito nos juros americanos levou a uma década perdida
Matheus Doliveira
Publicado em 24 de junho de 2022 às 06h00.
Última atualização em 18 de julho de 2022 às 19h32.
Até Caetano concordou: Lobão tem razão. O rock errou. Errou feio. Acho que as coisas pararam ali no Smashing Pumpkins. Mais especificamente no Mellon Collie and the Infinite Sadness, faixa 1979: “We were sure we’d never see an end to it all”. É sempre assim: ao viver um fenômeno ou as condições de uma era, achamos que aquilo nunca chegará ao fim, esquecendo-nos da impermanência das coisas. As circunstâncias parecem perenes, até que, de repente, desaparecem. Eterno enquanto dure.
Talvez o ouvido mais moderno e contemporâneo possa apontar um ou outro roqueiro jovem de qualidade. Eu haveria de concordar sobre The Killers e Greta Van Fleet, ótimas exceções para comprovar a regra. Quero mesmo insistir em 1979. Segundo choque do petróleo, inflação galopante; Paul Volcker assume o Banco Central dos Estados Unidos. Não lhe resta alternativa a não ser elevar as taxas de juro para níveis impensáveis ex-ante. Os 20% ao ano para a Fed Funds Rate terão consequências brutais. A moratória do México em 1982, a suspensão do pagamento da dívida externa brasileira em 1987 e, de algum modo, a década perdida de 1980 encontram raízes naquele fatídico ano.
Qualquer semelhança com o momento atual talvez não seja mera coincidência. A inflação ao consumidor americano apresenta seu maior patamar em 40 anos. Os problemas de oferta agregada persistem, com baixa capacidade de refino de petróleo, dificuldades de escoamento de produção com a guerra na Ucrânia e surto de covid na China. Com o mercado de trabalho aquecido nos Estados Unidos, inicia-se a perigosa espiral preços-salários, enquanto o consumidor, ainda acalentado pelos estímulos monetários e fiscais da pandemia, diminui sua taxa de poupança e segue comprando.
Uma somatória de choques exógenos e endógenos: oferta restrita com demanda ainda forte, tendo como resultado uma inflação mais alta do que todos supunham. Com o benefício do olhar em retrospectiva e sob o risco de incorrermos no clássico hindsight bias (a explicação enviesada distorcida pelo retrovisor), podemos ver hoje que o Fed errou. Chamou a inflação de transitória quando ela era persistente — Powell e Yellen admitem o equívoco. Os Tesouros Nacionais também abusaram de suas políticas fiscais para salvar-nos das mazelas da covid-19, indo além do razoável. A Academia (ou pelo menos parte relevante dela) se deixou seduzir pela atraente hipótese da Moderna Teoria Monetária, acreditando que, sob determinadas condições, poderíamos imprimir dinheiro infinitamente, sem maiores complicações. A conta chegou.
A aleatoriedade e a maré das circunstâncias também não ajudaram. Não se esperava uma guerra capaz de bagunçar completamente o fornecimento de petróleo, gás e alimentos na Europa, nem um duro lockdown em boa parte da China. Como resposta, o Banco Central dos Estados Unidos fez seu maior aumento de taxa básica de juro desde 1994. O consenso agora aponta para uma taxa de juro terminal neste ciclo em torno de 4%. A rigor, está terminando toda uma era de juros baixos, dinheiro barato, valorização do crescimento a qualquer custo, apresentações descoladas e promessas vazias alimentadas por grana sobrando para venture capital e afins. Em seis meses, as condições monetárias foram contraídas a ponto de reverterem toda a expansão feita na pandemia. O principal índice de ações nos Estados Unidos entrou em bear market, acumulando uma queda superior a 20% desde seu pico.
Não parece, no entanto, que o ajuste tenha terminado. Conforme lembraram Larry Summers e Stanley Druckenmiller, historicamente, sempre que a inflação esteve acima de 4,5% e o desemprego nos Estados Unidos na casa de 4%, o aperto monetário seguinte levou a economia americana à recessão. Em sendo o caso, seria natural vermos a bolsa dos Estados Unidos sendo negociada em linha com sua média histórica de múltiplos, o que ensejaria uma queda adicional de cerca de 10%. A isso, poderíamos somar uma esperada revisão para baixo nas estimativas de lucro das empresas, dado o cenário recessivo. O cenário mais negativo levaria a uma queda potencial de cerca de 20% para Wall Street.
O momento requer guarda alta, com uma carteira de investimentos bastante diversificada e permeada por boas proteções, que poderiam incluir muito caixa, uma exposição a ouro e algumas posições vendidas, seja em bolsa americana, seja em ações locais de alto crescimento ainda caras.
Mas nem tudo é notícia ruim. Há outra era terminando. Aquela hipótese de Francis Fukuyama, de que, com a queda do Muro de Berlim, teríamos chegado ao Fim da História, encontra uma alternativa. Parecia mesmo que a História, definida como um processo dialético de embate entre tese e antítese, poderia ter se encerrado, pois não se colocava mais contra-argumento à democracia liberal. Então, Putin invade a Ucrânia e volta a apresentar uma hipótese alternativa: de autocracias que se insurgem contra os valores ocidentais clássicos. Temos uma antítese à tese prevalecente.
Para que o mundo sobreviva, sem nenhum exagero, precisamos que a síntese se forme a partir da vitória da tese por superação positiva. Havemos de voltar a valorizar as democracias consolidadas, as nações pacíficas e longe de situações de perigo. Os fornecedores de alimentos, minério de ferro e celulose para o mundo. A matriz hídrica e fontes renováveis em geral. Temos tudo isso no Brasil. E temos também um processo de aperto monetário muito mais avançado do que no restante do mundo, com a Selic já na fase de ajuste fino, terminando o ciclo, enquanto lá fora começa. Para completar, oferecemos preços de ativos em múltiplos bastante abaixo da média histórica, também diferente dos países desenvolvidos, e títulos indexados à inflação com juros reais muito convidativos.
Voltando a Smashing Pumpkins, no clássico Tonight, Tonight: “We’ll make things right, we’ll feel it all tonight”. A chance está dada, na nossa frente. A bossa nova não gosta do rock. Esperamos que o Brasil não erre.
Até Caetano concordou: Lobão tem razão. O rock errou. Errou feio. Acho que as coisas pararam ali no Smashing Pumpkins. Mais especificamente no Mellon Collie and the Infinite Sadness, faixa 1979: “We were sure we’d never see an end to it all”. É sempre assim: ao viver um fenômeno ou as condições de uma era, achamos que aquilo nunca chegará ao fim, esquecendo-nos da impermanência das coisas. As circunstâncias parecem perenes, até que, de repente, desaparecem. Eterno enquanto dure.
Talvez o ouvido mais moderno e contemporâneo possa apontar um ou outro roqueiro jovem de qualidade. Eu haveria de concordar sobre The Killers e Greta Van Fleet, ótimas exceções para comprovar a regra. Quero mesmo insistir em 1979. Segundo choque do petróleo, inflação galopante; Paul Volcker assume o Banco Central dos Estados Unidos. Não lhe resta alternativa a não ser elevar as taxas de juro para níveis impensáveis ex-ante. Os 20% ao ano para a Fed Funds Rate terão consequências brutais. A moratória do México em 1982, a suspensão do pagamento da dívida externa brasileira em 1987 e, de algum modo, a década perdida de 1980 encontram raízes naquele fatídico ano.
Qualquer semelhança com o momento atual talvez não seja mera coincidência. A inflação ao consumidor americano apresenta seu maior patamar em 40 anos. Os problemas de oferta agregada persistem, com baixa capacidade de refino de petróleo, dificuldades de escoamento de produção com a guerra na Ucrânia e surto de covid na China. Com o mercado de trabalho aquecido nos Estados Unidos, inicia-se a perigosa espiral preços-salários, enquanto o consumidor, ainda acalentado pelos estímulos monetários e fiscais da pandemia, diminui sua taxa de poupança e segue comprando.
Uma somatória de choques exógenos e endógenos: oferta restrita com demanda ainda forte, tendo como resultado uma inflação mais alta do que todos supunham. Com o benefício do olhar em retrospectiva e sob o risco de incorrermos no clássico hindsight bias (a explicação enviesada distorcida pelo retrovisor), podemos ver hoje que o Fed errou. Chamou a inflação de transitória quando ela era persistente — Powell e Yellen admitem o equívoco. Os Tesouros Nacionais também abusaram de suas políticas fiscais para salvar-nos das mazelas da covid-19, indo além do razoável. A Academia (ou pelo menos parte relevante dela) se deixou seduzir pela atraente hipótese da Moderna Teoria Monetária, acreditando que, sob determinadas condições, poderíamos imprimir dinheiro infinitamente, sem maiores complicações. A conta chegou.
A aleatoriedade e a maré das circunstâncias também não ajudaram. Não se esperava uma guerra capaz de bagunçar completamente o fornecimento de petróleo, gás e alimentos na Europa, nem um duro lockdown em boa parte da China. Como resposta, o Banco Central dos Estados Unidos fez seu maior aumento de taxa básica de juro desde 1994. O consenso agora aponta para uma taxa de juro terminal neste ciclo em torno de 4%. A rigor, está terminando toda uma era de juros baixos, dinheiro barato, valorização do crescimento a qualquer custo, apresentações descoladas e promessas vazias alimentadas por grana sobrando para venture capital e afins. Em seis meses, as condições monetárias foram contraídas a ponto de reverterem toda a expansão feita na pandemia. O principal índice de ações nos Estados Unidos entrou em bear market, acumulando uma queda superior a 20% desde seu pico.
Não parece, no entanto, que o ajuste tenha terminado. Conforme lembraram Larry Summers e Stanley Druckenmiller, historicamente, sempre que a inflação esteve acima de 4,5% e o desemprego nos Estados Unidos na casa de 4%, o aperto monetário seguinte levou a economia americana à recessão. Em sendo o caso, seria natural vermos a bolsa dos Estados Unidos sendo negociada em linha com sua média histórica de múltiplos, o que ensejaria uma queda adicional de cerca de 10%. A isso, poderíamos somar uma esperada revisão para baixo nas estimativas de lucro das empresas, dado o cenário recessivo. O cenário mais negativo levaria a uma queda potencial de cerca de 20% para Wall Street.
O momento requer guarda alta, com uma carteira de investimentos bastante diversificada e permeada por boas proteções, que poderiam incluir muito caixa, uma exposição a ouro e algumas posições vendidas, seja em bolsa americana, seja em ações locais de alto crescimento ainda caras.
Mas nem tudo é notícia ruim. Há outra era terminando. Aquela hipótese de Francis Fukuyama, de que, com a queda do Muro de Berlim, teríamos chegado ao Fim da História, encontra uma alternativa. Parecia mesmo que a História, definida como um processo dialético de embate entre tese e antítese, poderia ter se encerrado, pois não se colocava mais contra-argumento à democracia liberal. Então, Putin invade a Ucrânia e volta a apresentar uma hipótese alternativa: de autocracias que se insurgem contra os valores ocidentais clássicos. Temos uma antítese à tese prevalecente.
Para que o mundo sobreviva, sem nenhum exagero, precisamos que a síntese se forme a partir da vitória da tese por superação positiva. Havemos de voltar a valorizar as democracias consolidadas, as nações pacíficas e longe de situações de perigo. Os fornecedores de alimentos, minério de ferro e celulose para o mundo. A matriz hídrica e fontes renováveis em geral. Temos tudo isso no Brasil. E temos também um processo de aperto monetário muito mais avançado do que no restante do mundo, com a Selic já na fase de ajuste fino, terminando o ciclo, enquanto lá fora começa. Para completar, oferecemos preços de ativos em múltiplos bastante abaixo da média histórica, também diferente dos países desenvolvidos, e títulos indexados à inflação com juros reais muito convidativos.
Voltando a Smashing Pumpkins, no clássico Tonight, Tonight: “We’ll make things right, we’ll feel it all tonight”. A chance está dada, na nossa frente. A bossa nova não gosta do rock. Esperamos que o Brasil não erre.