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"Favela é potência, não é carência", diz Celso Athayde, da Favela Holding

As empresas precisam enxergar as oportunidades presentes nesses territórios reconhecer a luta dos moradores para fazer a palavra favela ser respeitada

Distribuição de alimentos  pela CUFA no Projeto Mães da Favela (Igor Oliveira/Divulgação)
Distribuição de alimentos pela CUFA no Projeto Mães da Favela (Igor Oliveira/Divulgação)
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Favela S/A

Publicado em 29 de novembro de 2021 às, 18h15.

Favela é potência, não é carência. Quando criei essa frase conceito, a ideia era dizer para as empresas que elas precisam enxergar as oportunidades presentes nesses territórios e reconhecer a luta dos moradores para fazer a palavra favela ser respeitada.

Desde o seu surgimento, a favela foi vista como um lugar de carência, criminalidade e miséria. Essa visão, reforçada por políticas de Estado, é a expressão do racismo estrutural enraizado na sociedade brasileira. Minha trajetória é toda pautada nesse embate entre a parte “civilizada” do país e a parte excluída. Ver que a favela, antes objeto de projetos de erradicação, atualmente é motivo de celebração, traz um alento.

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Na última década, o termo favela ganhou um novo significado, ao menos para seus habitantes. Ser morador de favela virou motivo de orgulho. Isso aconteceu graças a uma revolução cultural protagonizada pelas pessoas da periferia, que passaram a enxergar o valor da tradição comunitária desses territórios. Valores e conhecimentos que antes eram vistos com desdém ou como expressões materiais da falta de estado e infraestrutura nesses territórios, hoje são reconhecidos como qualidades essenciais para a vida em sociedade e para o sucesso no mercado de trabalho. Me refiro à criatividade, à resiliência e às competências empreendedoras tão comuns nas favelas.

Foram essas qualidades que deram ao povo das favelas as condições para resistir às inúmeras tentativas de erradicação desses territórios. A partir dos anos 60, o governo do Rio de Janeiro, por exemplo, iniciou um processo de extinção das favelas que, segundo editorial do Jornal do Brasil publicado em 1966, justificava “a paralisação de todos os programas de embelezamento urbanístico da cidade”. “Não há melhor forma de ressaltar o esforço de melhoria da Guanabara do que a eliminação do contraste brutal e injusto das favelas com o perfil dos edifícios e a linha da paisagem favorecida”, escreveu o jornal.

Foi por causa disso que fui parar, com minha mãe e meu irmão, no Cesarão, o Conjunto Habitacional Doutor Otacílio Câmara, na Av. Cesário de Melo, em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Morávamos de favor no barraco de Dona Tereza, em São Cristóvão, quando fomos recolhidos pelo caminhão da Comlurb, a Companhia Municipal de Limpeza Urbana. Fomos encaminhados, primeiro, para o Pavilhão de São Cristóvão, depois, para o Cesarão e, por fim, trocamos nosso pedaço por outro na favela do sapo em Senador Câmara , onde efetivamente fui criado.

Éramos os primeiros habitantes do conjunto habitacional de casas novinhas e branquinhas. O problema é que o emprego mais próximo estava a pelo menos duas horas de distância. O lugar era longe e isolado, sem infraestrutura de transporte. A verdade é que fomos abandonados à própria sorte. Pretos e pobres, não éramos bem-vindos na paisagem de cartão postal da cidade maravilhosa. O que não contavam era com a nossa resiliência.

Poucos percebem, mas a verdade é que as comunidades são grandes centros urbanos, habitados, em sua maioria, por trabalhadores qualificados – não necessariamente doutores, mas profissionais de diversas áreas, que produzem e geram valor para a sociedade. Aos poucos, transformamos esses lugares carentes em uma potência econômica, que hoje movimenta mais de 120 bilhões de reais por ano, cifra superior ao consumo total da Bolívia. O que o IBGE considera como “aglomerados subnormais”, para nós, é um espaço de convivência comunitária, de trocas e solidariedade. Foi por causa dessa união e sentido coletivo que sobrevivemos e conseguimos construir uma história de superação, que hoje é celebrada.

A criação da Favela Holding, conglomerado de empresas que lidero, é a síntese desse processo. Ela nasce da demanda por acesso a bens de consumo. Seu desenvolvimento se dá a partir da exploração construtiva dos laços comunitários, o que permite a criação de uma distribuidora, a favela log, que surgiu há 8 anos para atender grandes marcas, como P&G, Natura, entre outras, que não tinham acesso aos territórios pela falta de convivência com a comunidade. A logística é toda operada por entregadores vindo do sistema penitenciário.

Hoje, o setor empresarial parece começar a compreender o potencial das favelas. Prova disso são os prêmios concedidos a projetos de empreendedorismo social como o Mães da Favela, um fundo solidário de auxílio às famílias prejudicadas pelos efeitos da pandemia que, em dois anos, movimentou mais de 600 milhões de reais. Em janeiro, estarei em Davos, durante o Fórum Econômico Mundial, para receber o meu 39o prêmio de empreendedorismo ou social de impacto.

O ideal é que tivéssemos um projeto de habitação, transporte e segurança capaz de mudar o quadro de falta de infraestrutura nas favelas. Enquanto isso não acontece precisamos levar alternativas para essas pessoas que já contribuem e muito com sua mão de obra e agora poderão se qualificar para contribuir muito mais com sua vocação empreendedora.

Eu sempre digo que a próxima revolução virá das favelas, e não será uma revolução política, mas econômica. Ela será mais rápida se contar com a associação do setor empresarial. É preciso que as empresas enxerguem o potencial de geração de valor do empreendedorismo na base da pirâmide, agregando um olhar capitalista a esse fenômeno social, para elevar a favela a uma condição de motor do crescimento econômico. O Brasil só tem a ganhar com isso.

A partir de hoje nos vemos aqui a cada 15 dias.  Obrigado pela paciência!

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