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Paulo Batista: a missão de levar educação exclusivamente para a periferia no Brasil

Hoje trago a conversa que tive com um verdadeiro Tubarão Voador sobre Educação, um assunto que, para mim, é a única solução que temos para o Brasil

Paulo Batista: A missão de levar os melhores e mais modernos conceitos de educação no mundo exclusivamente para a periferia no Brasil (Paulo Batista/Divulgação)
Cris Arcangeli

CEO da beuty'in

Publicado em 3 de agosto de 2023 às 19h45.

Hoje trago a conversa que tive com um verdadeiro Tubarão Voador sobre Educação, um assunto importantíssimo e, para mim, a única solução que temos para o Brasil. Ele é Paulo Batista, CEO da startup de impacto social Alicerce Educação, uma empresa comprometida em fazer a diferença nesse setor, porque oferece recursos e soluções que impulsionam a aprendizagem de mais de 30 mil alunos, até agora, em escolas montadas em bairros periféricos de várias cidades do Brasil.

Quem é o Paulo? Conte um pouquinho sobre você.

O Paulo é um cara muito sortudo e meio maluco. Gosto muito de um livro chamado Good to Great, sobre um estudo feito em Harvard, que mostra o fator comum entre empresários e empresas que têm sucesso: sorte. Eu sou isso. Tive muita sorte em diferentes episódios da vida e a maior delas foi ter praticamente tropeçado num e-commerce que criei em 2011, chamado Dental Cremer, que impulsionou a evolução digital do mercado odontológico e basicamente transformou o mercado de produtos e serviços. A sorte foi ter sido chamado para fazer um freela no momento em que a empresa catarinense Cremer iria fechar sua divisão odontológica. Enxerguei potencial, entendi que essa divisão não merecia ser fechada e propus aos donos fazermos um spin-off.

Criamos um novo CNPJ com quase nenhum capital e acabou que essa divisão cresceu em três vezes o tamanho da original. Esse foi um grande case que me projetou  no momento certo, na hora certa, pois em 2011 a revolução do e-commerce no Brasil estava começando a pegar mais tração e, em seis anos, fomos de zero a 50% de market share. Essa foi a primeira vez no mundo que alguém conseguiu fazer um modelo de e-commerce para dentistas, com escala e sucesso. A própria Amazon tinha tentado isso duas vezes e não conseguiu. E nós conseguimos. Hoje essa empresa é líder no ramo odontológico nacional e foi comprada pelo maior player do setor, que pretendia replicar esse projeto em  outras geografias.

Depois disso, meu plano era continuar como executivo deles, mas comecei a olhar para a Educação com um olhar filantrópico e fui puxando um fiozinho que se transformou numa ideia gigantesca, pois percebi que, infelizmente, a filantropia tem muitas limitações estruturais para  atrair talentos, investimentos, crescimento. Daí criamos o conceito do Alicerce Educação, que vai formar os novos tubarões do mundo de negócios de impacto, que vão resolver problemas de humanidade, seja na dimensão ambiental, seja na social.

Como o Estado funciona cada vez pior e a filantropia tem limites, criei essa empresa de fins lucrativos, pois é esse tipo de empresa que nasce para resolver um problema grande, os melhores negócios são os que resolvem problemas e a melhor forma de resolver um grande problema é através de um negócio. A filantropia é para projetos-piloto, para ações de give back, ações pontuais e emergenciais.

Emergencial é a palavra correta, porque a empresa que não tiver lucro não tem como existir, fica dependente de doações, não consegue planejar, não consegue escalar, não consegue nada.  Acredito que todas as empresas do futuro deveriam ser empresas de impacto.

E de talentos. Porque hoje, no Alicerce, conseguimos oferecer algo de muito especial para os colaboradores, que é poder se dedicar a um propósito tão profundamente como se estivesse trabalhando numa ONG, até mais às vezes, sem abrir mão de nada de sua carreira profissional. O colaborador não só ganha bem, como tem  perspectiva de avançar no projeto se tiver performance. As ONGs não conseguem isso, são quase um sacerdócio, a pessoa abre mão ou até desiste da própria carreira, de ganhar dinheiro, para se dedicar a um propósito.  Isso é maravilhoso, mas é não-sustentável, ninguém aguenta fazer isso por mais de dois, três anos e por isso as ONGS não conseguem estruturar equipes e têm limite de pessoal.

Acho que você tem toda razão. Muitos dos que vão para ONGs são aposentados, estão em momento degive-back, de devolver o que receberam do mundo e dos negócios, de ajudar outras pessoas por terem mais tempo e disponibilidade. Mas já não têm mais aquele sangue nos olhos dos vinte e poucos anos.

Vamos deixar um recado para essas pessoas: vocês podem usar a energia que investem numa ONG para ajudar um empreendedor a começar um negócio de impacto, como investidor-anjo, conselheiro, advisor estratégico, o que seja. As pessoas, quando chegam numa certa idade, querem perenizar, deixar um legado e o mais confiável é uma empresa, que é um modelo feito para perenidade, para longo prazo. Conheci muitas ONGs maravilhosas que desmoronaram ou perderam a alma depois que a pessoa fundadora se foi ou deixou de atuar.

E por falar em sorte, tenho uma frase que já ficou conhecida, que a sorte sempre me encontrou trabalhando. Você teve sorte, mas com certeza trabalha 24 horas por dia.

A sorte só aparece  para quem trabalha, talvez seja  um impulso, um caminho para seguir. A diferença entre quem vai e quem fica é ser quem pega a oportunidade, ou ser aquele que deixa a sorte passar por medo, por não se sentir capaz, por  síndrome de impostor, por ter crenças limitantes ou baixa autoestima. É aí, nesses micro momentos, que a coisa vai se decidindo. A sorte passa várias vezes para todo mundo. É só começar a ouvir e a se entregar para ela, que ela vem.

Conte sobre seu começo no Alicerce: como você teve essa ideia, como isso aconteceu?

O começo mesmo foi quando tive a oportunidade de ser professor de um cursinho quando cursava a Faculdade de Direito São Francisco. Esse é um projeto maravilhoso da escola, que dá aulas gratuitas ou a preço social, para alunos de escolas públicas com diploma de ensino médio. Foi lá que, aos 18 anos, conheci a tragédia e a oportunidade da educação brasileira em primeira pessoa - e foi como levar um soco na cara. O único critério seletivo desse cursinho é o aluno ter diploma de ensino médio para passar por um sorteio, diferente do cursinho da Poli, que faz uma prova meritocrática de acesso. Eu não estava preparado para o que vi: alunos  que não sabiam ler e nem entender o enunciado das questões. Então, pensei: em 12 anos de sistema escolar o aluno recebe um diploma, que em qualquer país decente do mundo significa que é razoavelmente informado, e aqui não consegue nem interpretar o significado de uma prova, muito menos da pergunta. Foi ali também que tive a primeira evidência de que é possível mudar essa realidade. Nós, um grupo de seis ou sete jovens voluntários, sem formação  em pedagogia, sem supervisão pedagógica e nem material estruturado, que só tinham como base ter sido bons alunos e passado  no vestibular da USP, conseguimos em nove meses virar o jogo de 40 a 50%  dos alunos e fizemos em pouco tempo o que 12 anos de escola pública não fizeram por esses jovens.

Esse momento me motivou a pensar que alguém precisava resolver esse problema. Mais tarde, como empresário, vivi esse drama, encontrei mão de obra que não sabia nem ao menos contar direito.  Depois que vendi a Dental Cremer mudei de mindset e entendi que subdesenvolvimento não se improvisa, é uma obra de séculos,  como dizia Nelson Rodrigues. O debate educacional brasileiro não tem rumo, o tamanho da miopia que se tem é enorme. Imagine que  70% dos brasileiros não conseguem fazer as quatro operações da matemática.

Esse sistema de ensino já está muito arcaico mundialmente, ensinam as mesmas coisas num mundo que se modifica tanto. Agora temos Inteligência Artificial e o modelo de escola continua praticamente o mesmo.

Esse é um problema da escola particular brasileira. Nas escolas públicas, 30% das aulas não acontecem, a criança fica no pátio, sozinha. Das aulas que acontecem, 60% são dadas  por professores que não sabem, eles mesmos, português e matemática. Existe uma política para conter a evasão, baseada num fundamento técnico de aprovação automática. Ninguém reprova na escola pública, todo mundo é aprovado. Uma criança não é alfabetizada e vai avançando, acaba chegando no ensino médio sem estar alfabetizada. É assim que eles controlam a pressão popular, porque se fosse avaliar todo mundo e reprovar, seria uma revolução, porque 70% dos alunos iriam ficar parados no segundo, terceiro ano do fundamental. Só 9% dos brasileiros, só um em cada 10 conseguem ler um livro! Isso é a a ignorância estrutural deste país. As pessoas não conseguem consumir conteúdo, não conseguem se auto educar, não conseguem aprender.

Esse problema estrutural do sistema também é grave na educação particular, que  não é competitiva com a educação pública em outros países, por exemplo. A média das escolas particulares brasileira, frequentadas pelas classes média  alta e alta, têm uma performance média  de 30 a 40% pior do que a média de uma escola pública na França ou na Alemanha. Lá existem sistemas que estão mudando muita coisa. Nossa missão no Alicerce é trazer os melhores e mais modernos conceitos de educação no mundo exclusivamente para a periferia no Brasil. Não atendemos ricos, só periferia, para tentar empatar o jogo.

Não tem como democratizar esse conhecimento para todo mundo? Porque as escolas privadas também precisam se atualizar.

Aí entramos numa discussão sobre foco de negócio.  Todo negócio precisa ter um  foco. Uma coisa é atender um público periférico e outra é atender público de alta renda. As expectativas de  experiência são diferentes. Uma coisa perigosa de atender a elite é que a margem seria muito mais alta, o custo seria um pouquinho mais alto para ter imóveis mais bem localizados e mais bem decorados, mas a base seria a mesma. Só que aí o foco começa a virar para a riqueza. O professor vai preferir dar aula para  a criança rica em vez da criança periferia, é complexo. Numa visão negócios, sabemos que tem muita gente já focada na elite, o business da educação já acontece para a elite. O oceano azul está na periferia, ninguém olha para lá.

Quantas pessoas estão nesse oceano azul da periferia?

180 milhões de pessoas, o  mercado é literalmente 90% da população brasileira, porque também damos aulas para adultos. Minha meta, minha visão  é chegar a 10 milhões de alunos e assim mover o ponteiro da educação brasileira. Hoje temos 30 mil alunos, em 24 estados e o Alicerce já é um dos maiores grupos educacionais do Brasil. Nosso plano é crescer cada vez mais rápido, já chegamos no break even financeiro, aprovamos o modelo, que já se paga, e é super escalável.

O Alicerce é presencial ou digital?

Essencialmente presencial. O digital é muito popular para os adultos da periferia, que têm uma jornada muito cruel e não conseguem encaixar na rotina a ida a um centro educacional. Nós adaptamos a metodologia on line para fazermos aulas ao vivo, sincronizadas, que criam o vínculo necessário. O segredo é que nada é gravado, porque as pessoas com defasagens crônicas de base educacional têm muita dificuldade de aprender por EAD, não têm confiança de serem capazes de aprender. Tem que estar ao vivo para perceber e quebrar isso. Acho que a Inteligência Artificial vai chegar lá. Muito do que fazemos é inspirado na China, onde a revolução da educação se deu por modelos muito semelhantes ao Alicerce e oferece um serviço de nivelamento de base educacional para quem tem atrasos crônicos.   Lá existem três decacórnios, empresas que valem mais de 10 bilhões de dólares, que fazem o que o Alicerce faz. Só explicando: o unicórnio corresponde a um bi, o decacórnio a 10 bi.

No final da década de 80, depois da Revolução Cultural, a China era o Brasil hoje em termos de educação. Em 30 anos deram esse salto totalmente por causa de educação, não por meio de um Estado empreendedor, que é só um modelo. O que muda tudo é o capital humano. Está comprovado que o futuro de uma nação  é totalmente correlacionado com o nível de capital humano daquela sociedade. Qualquer país que enriqueceu nos últimos cem anos teve um salto quântico em capital humano.

Onde você busca os professores? Acredito que seja um desafio.

Esse é “O” desafio. Temos dois produtos: um de contraturno escolar, para crianças a partir de cinco anos até jovens de 18 anos, cujo segredo do sucesso é contar com professores universitários das melhores faculdades do Brasil, como eu fui no cursinho. Eles representam uma abundância de talentos, são conectados com um propósito, precisando desesperadamente de um primeiro emprego, que ninguém dá, e muitas vezes de dinheiro. Com a lei de quotas nas universidades, muita gente de origem mais humilde tem acesso à faculdade, mas precisa de dinheiro para permanecer nela, não consegue emprego e vai  trabalhar num call center, por exemplo, tirando a oportunidade de um trabalhador que só teria condições de fazer aquilo. Nós trazemos esses jovens, pagamos bem e isso faz toda a diferença. É uma juventude talentosa, que tem uma  proximidade geracional com o jovem de periferia, entende o que é YouTube, redes sociais. Um dos problemas da escola é que os professores acham essa juventude um horror e  têm uma desconexão geracional. Esses jovens conseguem trazer o aluno para um outro lugar, de aprendizado de pares, de juventude,  encontram um contexto de interesse comum.

São várias escolas em vários lugares da cidade?

Hoje temos 330 centros educacionais. Temos feito muitas parcerias com ONGs das periferias, que muitas vezes têm espaço sobrando e precisam de dinheiro até para pagar conta de luz. Por isso digo que entramos com cabeça de negócio, encontramos as deficiências e otimizamos o uso dos recursos para fazer o que fazemos por um custo mínimo por aluno/mês, dando um contraturno 5 vezes por semana que, além de  dar educação, resolve o problema de mães de periferia que trabalham ou querem trabalhar e não têm com quem deixar o filho.

Esse Alicerce de contraturno também é necessário porque as creches atendem crianças dos três aos seis anos. E dos seis aos doze? Não se pode deixar uma criança sozinha com oito, 12, 14 anos, principalmente meninas, que correm inclusive risco de violência sexual. Por falar nisso, nós temos um núcleo de proteção da criança e do adolescente, com uma pessoa especializada que cobra das autoridades que façam seu dever de proteção e que continua acompanhando cada denúncia feita a nós. Por um lado, é triste você se confrontar com essa realidade, mas por outro, vê que é um grande deserto e qualquer copinho de água que você leva está salvando a vida de uma pessoa.  E isso se multiplica.

Voltando ao negócio, como ele escala? O que você precisa dos nossos tubarões para escalar?

Eu preciso de aliados.  Preciso de crescimento e vendas. O Alicerce não é franquia, porque ainda não é  o momento, mas vamos começar a testar esse modelo em um, dois anos. Hoje tudo é próprio, com quatro canais de vendas principais: um dele são projetos com empresas, montando estratégias de ESG, por exemplo. Também desenvolvemos projetos de educação voltados  para benefício de filhos de colaboradores, comunidades de impacto da empresa,  ou formação de mão de obra. Entramos nivelando a base educacional de adultos para que sejam colaboradores melhores e tenham mais produtividade no trabalho. Todos os alunos são bolsistas, o que é uma grande oportunidade na melhor definição  de ESG: fazer o bem para o mundo, fazendo bem para seu negócio também, investindo em educação associada à formação de mão de obra.

Estamos retomando o que chamamos de B2C, para as famílias poderem pagar para seus filhos terem o Alicerce.  Investimos muito nisso antes da pandemia e  no ano passado reabrimos um projeto em Curitiba, que deve escalar dentro de uma visão de expansão por territórios, com a abertura de 44 escolas  do Alicerce em toda a região metropolitana de Curitiba. Dessa forma, não vai existir  um morador da periferia  que não more a mais que dois quilômetros de uma unidade do Alicerce. Esse é um modelo franqueável, mas precisamos ter boas métricas nessas unidades próprias  para depois poder franquear. Ano que vem vamos estar em mais três territórios que ainda estamos definindo, para depois podermos decidir se continuamos com escolas próprias ou se fazemos franquia.

A franquia, para nós, pode ser o estímulo correto para a pessoa que vai estar na ponta, mas meu medo é a experiência capitalista da educação, que é ruim, porque é muito tentador a curto prazo a empresa educacional fazer duas coisas que serão ruins a longo prazo: cortar custos e abrir mão de qualidade ou agradar demais os pais, os clientes. Isso é  muito tentador no curto prazo porque as escolas particulares deixam a criança passar de ano sem ter aprendido, por medo de perder  o boleto do pai. Isso para a criança é péssimo porque ela passa de ano, mas não aprendeu e vai aprender cada vez menos, achando que o problema é ela, vai sendo rotulada, ficando no fundão da sala. Esse é  um problema do  capitalismo na educação, que me dá medo: como você empodera o franqueado o suficiente para ele fazer o que tem que fazer, sem empoderar demais para que ele possa fazer trade off de qualidade?

Sou zero feminista, mas acho que você poderia colocar mulheres, porque a mulher é mais detalhista, mais emotiva, se envolta mais na situação. O homem é mais prático, mais estratégico. Eles se complementam, mas nesse caso específico, tratando de crianças em comunidades,  ou famílias de baixa renda, você precisa de quem tem mais propósito, mais coração, mais generosidade do que praticidade estratégica.

Você tem toda razão! Temos uma série de projetos que acontecem dentro de ONGs e, apesar de haver boas exceções, existe uma tendência: lideranças comunitárias masculinas são difíceis. As femininas se engajam com  o propósito, são gratas, cuidam, ajudam, veem a transformação nas crianças, sabem reconhecer, valorizam e defendem quando precisam na comunidade. Você acaba de me dar uma mentoria!

Como você vê o pós-pandemia na educação? Esses dois anos on line, sem preparo, sem estrutura, foram muito impactantes para as crianças.

Temos dois mundos na educação brasileira: o particular e o público. Na particular foi muito complicado, porque revelou as dificuldades estruturais da pedagogia brasileira. Em outros países do mundo os sistemas de adaptaram muito rápido, com muita agilidade e conseguiram lidar  relativamente bem com o tema.  No Brasil infelizmente não. As escolas tiveram um gap em todos os níveis e, como não reprovam alunos, estão seguindo adiante sem um programa de recuperação estruturado e isso vai estourar no vestibular e nos cursinhos. Minha recomendação é dar um reforço educacional o quanto antes para essas crianças que não conseguiram ser alfabetizadas, porque é uma bola de neve: quanto  mais rápido corrigir, mais rápido a criança fica a par com o sistema educacional e  pode progredir.

Na escola pública a dura realidade é que a pandemia teve um impacto de desconexão com a escola e muitos jovens estão com dificuldade para voltar. Mas que impacto educacional teve, se 90 % dos brasileiros já eram incapazes de ler um livro? A escola pública já funcionava muito mal, já era muito limitada. O problema não é de agora, sempre houve um problema e a pandemia talvez tenha aberto uma oportunidade de se fazer um debate um pouco mais robusto, em recuperar defasagens, preencher lacunas, em rever o modelo da escola pública.  Qual a lógica de dar aula de Física, no ensino médio, para um jovem que não sabe ler, que não consegue multiplicar e que para entender a Lei da Resistência teria que entender o que é uma equação  de primeiro grau?

No debate sobre Educação no Brasil, só se fala sobre o novo ensino médio, como se ele fosse o problema, que diz respeito à  escola particular. Nenhum filho de autoridade educacional brasileira estuda em escola pública e por isso esses governantes não entendem que o problema é outro: as escolas públicas não têm professor, o professor não vai, ele mesmo é uma vítima da sociedade e não teve uma boa educação. Imagine que hoje em dia não tem mais vestibular de Pedagogia, as faculdades estão formando  pedagogos sem vestibular!

O diferencial do Alicerce é que não ensinamos só Português e Matemática, que são um terço do que fazemos.  O outro terço é Desenvolvimento Sócio Emocional, uma metodologia norte-americana muito eficaz para diagnosticar problemas sócio emocionais das crianças  e de jovens para resgatar a mentalidade de crescimento, que é fundamental.  O outro é a Descoberta, que trabalha 10 temas trabalhados, um dos quais é empreendedorismo e tem uma olimpíada anual. Nessa olimpíada plantamos a semente do empreendedorismo, que é o maior atalho para a ascensão social, porque o empreendedor não tem que enfrentar os tetos de vida de preconceitos de gênero, raça e outros. Cria o negócio e vai. O empreendedor da periferia consegue enxergar seus problemas de uma forma que o empreendedor do asfalto não consegue, ele tem reason to win naquele empreendimento

Fazemos seis olimpíadas por ano, incluindo Português, Matemática e Sustentabilidade. Como estamos em 24 estados, fazemos uma competição nacional em etapas e cada uma das 330 unidades tem um vencedor. Depois vem o nível regional, um super regional e, para finalizar, tem um campeão nacional. É sensacional ter crianças de periferias de diferentes estados se relacionando e conhecendo o valor da competição saudável, que normalmente é o esporte que traz, dentro de um contexto competitivo que permite trabalhar todas as emoções e frustrações fundamentais para a competição, além do bem estar físico, mentalidade de crescimento sem crenças limitantes.

E qual é a mensagem que você deixa para nossos tubarões?

O Brasil tem mais de 180 milhões de pessoas que vivem numa prisão educacional. Quero compartilhar minha missão e, quem sabe, conseguir alguns aliados, porque a única forma de mudar a educação brasileira é todo mundo se envolver, parar de achar que não tem solução e começar a ser parte da solução e não do problema. E os tubarões são os que mais têm que fazer algo a respeito, são os que mais se beneficiam. Quem paga o custo da ineficiência geral do Brasil são os tubarões, que têm que carregar um peso grande, sem contar o sofrimento que essa ineficiência gera em todo mundo que precisa de uma oportunidade e não consegue ter.

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Hoje trago a conversa que tive com um verdadeiro Tubarão Voador sobre Educação, um assunto importantíssimo e, para mim, a única solução que temos para o Brasil. Ele é Paulo Batista, CEO da startup de impacto social Alicerce Educação, uma empresa comprometida em fazer a diferença nesse setor, porque oferece recursos e soluções que impulsionam a aprendizagem de mais de 30 mil alunos, até agora, em escolas montadas em bairros periféricos de várias cidades do Brasil.

Quem é o Paulo? Conte um pouquinho sobre você.

O Paulo é um cara muito sortudo e meio maluco. Gosto muito de um livro chamado Good to Great, sobre um estudo feito em Harvard, que mostra o fator comum entre empresários e empresas que têm sucesso: sorte. Eu sou isso. Tive muita sorte em diferentes episódios da vida e a maior delas foi ter praticamente tropeçado num e-commerce que criei em 2011, chamado Dental Cremer, que impulsionou a evolução digital do mercado odontológico e basicamente transformou o mercado de produtos e serviços. A sorte foi ter sido chamado para fazer um freela no momento em que a empresa catarinense Cremer iria fechar sua divisão odontológica. Enxerguei potencial, entendi que essa divisão não merecia ser fechada e propus aos donos fazermos um spin-off.

Criamos um novo CNPJ com quase nenhum capital e acabou que essa divisão cresceu em três vezes o tamanho da original. Esse foi um grande case que me projetou  no momento certo, na hora certa, pois em 2011 a revolução do e-commerce no Brasil estava começando a pegar mais tração e, em seis anos, fomos de zero a 50% de market share. Essa foi a primeira vez no mundo que alguém conseguiu fazer um modelo de e-commerce para dentistas, com escala e sucesso. A própria Amazon tinha tentado isso duas vezes e não conseguiu. E nós conseguimos. Hoje essa empresa é líder no ramo odontológico nacional e foi comprada pelo maior player do setor, que pretendia replicar esse projeto em  outras geografias.

Depois disso, meu plano era continuar como executivo deles, mas comecei a olhar para a Educação com um olhar filantrópico e fui puxando um fiozinho que se transformou numa ideia gigantesca, pois percebi que, infelizmente, a filantropia tem muitas limitações estruturais para  atrair talentos, investimentos, crescimento. Daí criamos o conceito do Alicerce Educação, que vai formar os novos tubarões do mundo de negócios de impacto, que vão resolver problemas de humanidade, seja na dimensão ambiental, seja na social.

Como o Estado funciona cada vez pior e a filantropia tem limites, criei essa empresa de fins lucrativos, pois é esse tipo de empresa que nasce para resolver um problema grande, os melhores negócios são os que resolvem problemas e a melhor forma de resolver um grande problema é através de um negócio. A filantropia é para projetos-piloto, para ações de give back, ações pontuais e emergenciais.

Emergencial é a palavra correta, porque a empresa que não tiver lucro não tem como existir, fica dependente de doações, não consegue planejar, não consegue escalar, não consegue nada.  Acredito que todas as empresas do futuro deveriam ser empresas de impacto.

E de talentos. Porque hoje, no Alicerce, conseguimos oferecer algo de muito especial para os colaboradores, que é poder se dedicar a um propósito tão profundamente como se estivesse trabalhando numa ONG, até mais às vezes, sem abrir mão de nada de sua carreira profissional. O colaborador não só ganha bem, como tem  perspectiva de avançar no projeto se tiver performance. As ONGs não conseguem isso, são quase um sacerdócio, a pessoa abre mão ou até desiste da própria carreira, de ganhar dinheiro, para se dedicar a um propósito.  Isso é maravilhoso, mas é não-sustentável, ninguém aguenta fazer isso por mais de dois, três anos e por isso as ONGS não conseguem estruturar equipes e têm limite de pessoal.

Acho que você tem toda razão. Muitos dos que vão para ONGs são aposentados, estão em momento degive-back, de devolver o que receberam do mundo e dos negócios, de ajudar outras pessoas por terem mais tempo e disponibilidade. Mas já não têm mais aquele sangue nos olhos dos vinte e poucos anos.

Vamos deixar um recado para essas pessoas: vocês podem usar a energia que investem numa ONG para ajudar um empreendedor a começar um negócio de impacto, como investidor-anjo, conselheiro, advisor estratégico, o que seja. As pessoas, quando chegam numa certa idade, querem perenizar, deixar um legado e o mais confiável é uma empresa, que é um modelo feito para perenidade, para longo prazo. Conheci muitas ONGs maravilhosas que desmoronaram ou perderam a alma depois que a pessoa fundadora se foi ou deixou de atuar.

E por falar em sorte, tenho uma frase que já ficou conhecida, que a sorte sempre me encontrou trabalhando. Você teve sorte, mas com certeza trabalha 24 horas por dia.

A sorte só aparece  para quem trabalha, talvez seja  um impulso, um caminho para seguir. A diferença entre quem vai e quem fica é ser quem pega a oportunidade, ou ser aquele que deixa a sorte passar por medo, por não se sentir capaz, por  síndrome de impostor, por ter crenças limitantes ou baixa autoestima. É aí, nesses micro momentos, que a coisa vai se decidindo. A sorte passa várias vezes para todo mundo. É só começar a ouvir e a se entregar para ela, que ela vem.

Conte sobre seu começo no Alicerce: como você teve essa ideia, como isso aconteceu?

O começo mesmo foi quando tive a oportunidade de ser professor de um cursinho quando cursava a Faculdade de Direito São Francisco. Esse é um projeto maravilhoso da escola, que dá aulas gratuitas ou a preço social, para alunos de escolas públicas com diploma de ensino médio. Foi lá que, aos 18 anos, conheci a tragédia e a oportunidade da educação brasileira em primeira pessoa - e foi como levar um soco na cara. O único critério seletivo desse cursinho é o aluno ter diploma de ensino médio para passar por um sorteio, diferente do cursinho da Poli, que faz uma prova meritocrática de acesso. Eu não estava preparado para o que vi: alunos  que não sabiam ler e nem entender o enunciado das questões. Então, pensei: em 12 anos de sistema escolar o aluno recebe um diploma, que em qualquer país decente do mundo significa que é razoavelmente informado, e aqui não consegue nem interpretar o significado de uma prova, muito menos da pergunta. Foi ali também que tive a primeira evidência de que é possível mudar essa realidade. Nós, um grupo de seis ou sete jovens voluntários, sem formação  em pedagogia, sem supervisão pedagógica e nem material estruturado, que só tinham como base ter sido bons alunos e passado  no vestibular da USP, conseguimos em nove meses virar o jogo de 40 a 50%  dos alunos e fizemos em pouco tempo o que 12 anos de escola pública não fizeram por esses jovens.

Esse momento me motivou a pensar que alguém precisava resolver esse problema. Mais tarde, como empresário, vivi esse drama, encontrei mão de obra que não sabia nem ao menos contar direito.  Depois que vendi a Dental Cremer mudei de mindset e entendi que subdesenvolvimento não se improvisa, é uma obra de séculos,  como dizia Nelson Rodrigues. O debate educacional brasileiro não tem rumo, o tamanho da miopia que se tem é enorme. Imagine que  70% dos brasileiros não conseguem fazer as quatro operações da matemática.

Esse sistema de ensino já está muito arcaico mundialmente, ensinam as mesmas coisas num mundo que se modifica tanto. Agora temos Inteligência Artificial e o modelo de escola continua praticamente o mesmo.

Esse é um problema da escola particular brasileira. Nas escolas públicas, 30% das aulas não acontecem, a criança fica no pátio, sozinha. Das aulas que acontecem, 60% são dadas  por professores que não sabem, eles mesmos, português e matemática. Existe uma política para conter a evasão, baseada num fundamento técnico de aprovação automática. Ninguém reprova na escola pública, todo mundo é aprovado. Uma criança não é alfabetizada e vai avançando, acaba chegando no ensino médio sem estar alfabetizada. É assim que eles controlam a pressão popular, porque se fosse avaliar todo mundo e reprovar, seria uma revolução, porque 70% dos alunos iriam ficar parados no segundo, terceiro ano do fundamental. Só 9% dos brasileiros, só um em cada 10 conseguem ler um livro! Isso é a a ignorância estrutural deste país. As pessoas não conseguem consumir conteúdo, não conseguem se auto educar, não conseguem aprender.

Esse problema estrutural do sistema também é grave na educação particular, que  não é competitiva com a educação pública em outros países, por exemplo. A média das escolas particulares brasileira, frequentadas pelas classes média  alta e alta, têm uma performance média  de 30 a 40% pior do que a média de uma escola pública na França ou na Alemanha. Lá existem sistemas que estão mudando muita coisa. Nossa missão no Alicerce é trazer os melhores e mais modernos conceitos de educação no mundo exclusivamente para a periferia no Brasil. Não atendemos ricos, só periferia, para tentar empatar o jogo.

Não tem como democratizar esse conhecimento para todo mundo? Porque as escolas privadas também precisam se atualizar.

Aí entramos numa discussão sobre foco de negócio.  Todo negócio precisa ter um  foco. Uma coisa é atender um público periférico e outra é atender público de alta renda. As expectativas de  experiência são diferentes. Uma coisa perigosa de atender a elite é que a margem seria muito mais alta, o custo seria um pouquinho mais alto para ter imóveis mais bem localizados e mais bem decorados, mas a base seria a mesma. Só que aí o foco começa a virar para a riqueza. O professor vai preferir dar aula para  a criança rica em vez da criança periferia, é complexo. Numa visão negócios, sabemos que tem muita gente já focada na elite, o business da educação já acontece para a elite. O oceano azul está na periferia, ninguém olha para lá.

Quantas pessoas estão nesse oceano azul da periferia?

180 milhões de pessoas, o  mercado é literalmente 90% da população brasileira, porque também damos aulas para adultos. Minha meta, minha visão  é chegar a 10 milhões de alunos e assim mover o ponteiro da educação brasileira. Hoje temos 30 mil alunos, em 24 estados e o Alicerce já é um dos maiores grupos educacionais do Brasil. Nosso plano é crescer cada vez mais rápido, já chegamos no break even financeiro, aprovamos o modelo, que já se paga, e é super escalável.

O Alicerce é presencial ou digital?

Essencialmente presencial. O digital é muito popular para os adultos da periferia, que têm uma jornada muito cruel e não conseguem encaixar na rotina a ida a um centro educacional. Nós adaptamos a metodologia on line para fazermos aulas ao vivo, sincronizadas, que criam o vínculo necessário. O segredo é que nada é gravado, porque as pessoas com defasagens crônicas de base educacional têm muita dificuldade de aprender por EAD, não têm confiança de serem capazes de aprender. Tem que estar ao vivo para perceber e quebrar isso. Acho que a Inteligência Artificial vai chegar lá. Muito do que fazemos é inspirado na China, onde a revolução da educação se deu por modelos muito semelhantes ao Alicerce e oferece um serviço de nivelamento de base educacional para quem tem atrasos crônicos.   Lá existem três decacórnios, empresas que valem mais de 10 bilhões de dólares, que fazem o que o Alicerce faz. Só explicando: o unicórnio corresponde a um bi, o decacórnio a 10 bi.

No final da década de 80, depois da Revolução Cultural, a China era o Brasil hoje em termos de educação. Em 30 anos deram esse salto totalmente por causa de educação, não por meio de um Estado empreendedor, que é só um modelo. O que muda tudo é o capital humano. Está comprovado que o futuro de uma nação  é totalmente correlacionado com o nível de capital humano daquela sociedade. Qualquer país que enriqueceu nos últimos cem anos teve um salto quântico em capital humano.

Onde você busca os professores? Acredito que seja um desafio.

Esse é “O” desafio. Temos dois produtos: um de contraturno escolar, para crianças a partir de cinco anos até jovens de 18 anos, cujo segredo do sucesso é contar com professores universitários das melhores faculdades do Brasil, como eu fui no cursinho. Eles representam uma abundância de talentos, são conectados com um propósito, precisando desesperadamente de um primeiro emprego, que ninguém dá, e muitas vezes de dinheiro. Com a lei de quotas nas universidades, muita gente de origem mais humilde tem acesso à faculdade, mas precisa de dinheiro para permanecer nela, não consegue emprego e vai  trabalhar num call center, por exemplo, tirando a oportunidade de um trabalhador que só teria condições de fazer aquilo. Nós trazemos esses jovens, pagamos bem e isso faz toda a diferença. É uma juventude talentosa, que tem uma  proximidade geracional com o jovem de periferia, entende o que é YouTube, redes sociais. Um dos problemas da escola é que os professores acham essa juventude um horror e  têm uma desconexão geracional. Esses jovens conseguem trazer o aluno para um outro lugar, de aprendizado de pares, de juventude,  encontram um contexto de interesse comum.

São várias escolas em vários lugares da cidade?

Hoje temos 330 centros educacionais. Temos feito muitas parcerias com ONGs das periferias, que muitas vezes têm espaço sobrando e precisam de dinheiro até para pagar conta de luz. Por isso digo que entramos com cabeça de negócio, encontramos as deficiências e otimizamos o uso dos recursos para fazer o que fazemos por um custo mínimo por aluno/mês, dando um contraturno 5 vezes por semana que, além de  dar educação, resolve o problema de mães de periferia que trabalham ou querem trabalhar e não têm com quem deixar o filho.

Esse Alicerce de contraturno também é necessário porque as creches atendem crianças dos três aos seis anos. E dos seis aos doze? Não se pode deixar uma criança sozinha com oito, 12, 14 anos, principalmente meninas, que correm inclusive risco de violência sexual. Por falar nisso, nós temos um núcleo de proteção da criança e do adolescente, com uma pessoa especializada que cobra das autoridades que façam seu dever de proteção e que continua acompanhando cada denúncia feita a nós. Por um lado, é triste você se confrontar com essa realidade, mas por outro, vê que é um grande deserto e qualquer copinho de água que você leva está salvando a vida de uma pessoa.  E isso se multiplica.

Voltando ao negócio, como ele escala? O que você precisa dos nossos tubarões para escalar?

Eu preciso de aliados.  Preciso de crescimento e vendas. O Alicerce não é franquia, porque ainda não é  o momento, mas vamos começar a testar esse modelo em um, dois anos. Hoje tudo é próprio, com quatro canais de vendas principais: um dele são projetos com empresas, montando estratégias de ESG, por exemplo. Também desenvolvemos projetos de educação voltados  para benefício de filhos de colaboradores, comunidades de impacto da empresa,  ou formação de mão de obra. Entramos nivelando a base educacional de adultos para que sejam colaboradores melhores e tenham mais produtividade no trabalho. Todos os alunos são bolsistas, o que é uma grande oportunidade na melhor definição  de ESG: fazer o bem para o mundo, fazendo bem para seu negócio também, investindo em educação associada à formação de mão de obra.

Estamos retomando o que chamamos de B2C, para as famílias poderem pagar para seus filhos terem o Alicerce.  Investimos muito nisso antes da pandemia e  no ano passado reabrimos um projeto em Curitiba, que deve escalar dentro de uma visão de expansão por territórios, com a abertura de 44 escolas  do Alicerce em toda a região metropolitana de Curitiba. Dessa forma, não vai existir  um morador da periferia  que não more a mais que dois quilômetros de uma unidade do Alicerce. Esse é um modelo franqueável, mas precisamos ter boas métricas nessas unidades próprias  para depois poder franquear. Ano que vem vamos estar em mais três territórios que ainda estamos definindo, para depois podermos decidir se continuamos com escolas próprias ou se fazemos franquia.

A franquia, para nós, pode ser o estímulo correto para a pessoa que vai estar na ponta, mas meu medo é a experiência capitalista da educação, que é ruim, porque é muito tentador a curto prazo a empresa educacional fazer duas coisas que serão ruins a longo prazo: cortar custos e abrir mão de qualidade ou agradar demais os pais, os clientes. Isso é  muito tentador no curto prazo porque as escolas particulares deixam a criança passar de ano sem ter aprendido, por medo de perder  o boleto do pai. Isso para a criança é péssimo porque ela passa de ano, mas não aprendeu e vai aprender cada vez menos, achando que o problema é ela, vai sendo rotulada, ficando no fundão da sala. Esse é  um problema do  capitalismo na educação, que me dá medo: como você empodera o franqueado o suficiente para ele fazer o que tem que fazer, sem empoderar demais para que ele possa fazer trade off de qualidade?

Sou zero feminista, mas acho que você poderia colocar mulheres, porque a mulher é mais detalhista, mais emotiva, se envolta mais na situação. O homem é mais prático, mais estratégico. Eles se complementam, mas nesse caso específico, tratando de crianças em comunidades,  ou famílias de baixa renda, você precisa de quem tem mais propósito, mais coração, mais generosidade do que praticidade estratégica.

Você tem toda razão! Temos uma série de projetos que acontecem dentro de ONGs e, apesar de haver boas exceções, existe uma tendência: lideranças comunitárias masculinas são difíceis. As femininas se engajam com  o propósito, são gratas, cuidam, ajudam, veem a transformação nas crianças, sabem reconhecer, valorizam e defendem quando precisam na comunidade. Você acaba de me dar uma mentoria!

Como você vê o pós-pandemia na educação? Esses dois anos on line, sem preparo, sem estrutura, foram muito impactantes para as crianças.

Temos dois mundos na educação brasileira: o particular e o público. Na particular foi muito complicado, porque revelou as dificuldades estruturais da pedagogia brasileira. Em outros países do mundo os sistemas de adaptaram muito rápido, com muita agilidade e conseguiram lidar  relativamente bem com o tema.  No Brasil infelizmente não. As escolas tiveram um gap em todos os níveis e, como não reprovam alunos, estão seguindo adiante sem um programa de recuperação estruturado e isso vai estourar no vestibular e nos cursinhos. Minha recomendação é dar um reforço educacional o quanto antes para essas crianças que não conseguiram ser alfabetizadas, porque é uma bola de neve: quanto  mais rápido corrigir, mais rápido a criança fica a par com o sistema educacional e  pode progredir.

Na escola pública a dura realidade é que a pandemia teve um impacto de desconexão com a escola e muitos jovens estão com dificuldade para voltar. Mas que impacto educacional teve, se 90 % dos brasileiros já eram incapazes de ler um livro? A escola pública já funcionava muito mal, já era muito limitada. O problema não é de agora, sempre houve um problema e a pandemia talvez tenha aberto uma oportunidade de se fazer um debate um pouco mais robusto, em recuperar defasagens, preencher lacunas, em rever o modelo da escola pública.  Qual a lógica de dar aula de Física, no ensino médio, para um jovem que não sabe ler, que não consegue multiplicar e que para entender a Lei da Resistência teria que entender o que é uma equação  de primeiro grau?

No debate sobre Educação no Brasil, só se fala sobre o novo ensino médio, como se ele fosse o problema, que diz respeito à  escola particular. Nenhum filho de autoridade educacional brasileira estuda em escola pública e por isso esses governantes não entendem que o problema é outro: as escolas públicas não têm professor, o professor não vai, ele mesmo é uma vítima da sociedade e não teve uma boa educação. Imagine que hoje em dia não tem mais vestibular de Pedagogia, as faculdades estão formando  pedagogos sem vestibular!

O diferencial do Alicerce é que não ensinamos só Português e Matemática, que são um terço do que fazemos.  O outro terço é Desenvolvimento Sócio Emocional, uma metodologia norte-americana muito eficaz para diagnosticar problemas sócio emocionais das crianças  e de jovens para resgatar a mentalidade de crescimento, que é fundamental.  O outro é a Descoberta, que trabalha 10 temas trabalhados, um dos quais é empreendedorismo e tem uma olimpíada anual. Nessa olimpíada plantamos a semente do empreendedorismo, que é o maior atalho para a ascensão social, porque o empreendedor não tem que enfrentar os tetos de vida de preconceitos de gênero, raça e outros. Cria o negócio e vai. O empreendedor da periferia consegue enxergar seus problemas de uma forma que o empreendedor do asfalto não consegue, ele tem reason to win naquele empreendimento

Fazemos seis olimpíadas por ano, incluindo Português, Matemática e Sustentabilidade. Como estamos em 24 estados, fazemos uma competição nacional em etapas e cada uma das 330 unidades tem um vencedor. Depois vem o nível regional, um super regional e, para finalizar, tem um campeão nacional. É sensacional ter crianças de periferias de diferentes estados se relacionando e conhecendo o valor da competição saudável, que normalmente é o esporte que traz, dentro de um contexto competitivo que permite trabalhar todas as emoções e frustrações fundamentais para a competição, além do bem estar físico, mentalidade de crescimento sem crenças limitantes.

E qual é a mensagem que você deixa para nossos tubarões?

O Brasil tem mais de 180 milhões de pessoas que vivem numa prisão educacional. Quero compartilhar minha missão e, quem sabe, conseguir alguns aliados, porque a única forma de mudar a educação brasileira é todo mundo se envolver, parar de achar que não tem solução e começar a ser parte da solução e não do problema. E os tubarões são os que mais têm que fazer algo a respeito, são os que mais se beneficiam. Quem paga o custo da ineficiência geral do Brasil são os tubarões, que têm que carregar um peso grande, sem contar o sofrimento que essa ineficiência gera em todo mundo que precisa de uma oportunidade e não consegue ter.

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