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Não se governa um país como uma empresa

Uma mentira repetida mil vezes toma status de verdade. Uma verdade meio torta, vá lá, mas toma. Até aí tudo bem, pouca novidade para o leitor. O perigo, porém, é o passo seguinte. Aquele em que as pessoas passam a basear suas decisões em cima destas verdades tortas. Decisões cheias de atitude e certeza mas […]

GOVERNO: cada líder partidário se acha no direito de indicar nomes para vários postos / Ueslei Marcelino / Reuters
GOVERNO: cada líder partidário se acha no direito de indicar nomes para vários postos / Ueslei Marcelino / Reuters
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Eduardo Moreira

Publicado em 2 de junho de 2016 às, 12h24.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h45.

Uma mentira repetida mil vezes toma status de verdade. Uma verdade meio torta, vá lá, mas toma. Até aí tudo bem, pouca novidade para o leitor. O perigo, porém, é o passo seguinte. Aquele em que as pessoas passam a basear suas decisões em cima destas verdades tortas. Decisões cheias de atitude e certeza mas com frágeis raízes em seus fundamentos e, portanto, com poucas chances de sucesso. Um bom exemplo é o conceito da moda de que um país deve ser gerido com uma empresa, repetido a torto e a direito pelos “neoliberais” de plantão. A fórmula é simples: privatizar o que for possível, aplicar a meritocracia ao funcionalismo público, encerrar os programas de transferência de renda, criar um ambiente competitivo entre as empresas e afrouxar as regras trabalhistas entre empregados e empregadores. O resultado: lucros recordes para o país e uma sociedade mais justa e próspera. Ao menos na visão dessa turma.

Realmente as medidas acima tenderiam, no curto prazo, a aumentar os resultados fiscais do país e, provavelmente, dariam alguma injeção de ânimo na atividade econômica. Muitos deles me parecem sim, em algum grau, fazer sentido. Mas e o resto? Todo o resto que o país precisa. Viria a reboque? Afinal um país mais rico significa um país melhor para todos, certo? A resposta é: depende. Depende de como esse processo de enriquecimento acontece. Se acontece simplesmente mirando o aumento do PIB e a eficiência da máquina pública, e ignorando as outras variáveis, pode até melhorar a vida do pessoal que curte passar as férias em Miami, mas corre o risco de ampliar o abismo que separa os mais ricos dos mais pobres do país.

Em cálculo numérico aprendemos que, ao analisar uma equação com muitas variáveis, devemos escolher aquela que desejamos maximizar para derivarmos todas as outras em função dela. Podemos até criar limites onde as outras podem oscilar, mas aquela que desejamos maximizar é apenas uma. No caso de um país é um erro escolher a variável “lucro” como aquela a ser maximizada. O alvo certo é a “qualidade de vida” da população. É ela que deve ser máxima como resultado da equação que pondera todas as outras variáveis sob controle de um governo. O que, vejam bem, não significa que devemos deixar a variável “lucro” oscilar livremente. Esta deve ser constrita a um intervalo em que jamais crie um descontrole das contas públicas impedindo o crescimento sustentável e de longo prazo do país.

Empresas podem escolher os produtos ou serviços que desejam oferecer a seus clientes. Podem tira-los de suas prateleiras também quando bem entenderem. Podem focar no público que quiserem: homens, crianças, mulheres com mais de 40, baixa ou alta renda. Podem fechar as portas nos feriados e funcionar apenas nas altas temporadas. Vale tudo para remunerar da melhor maneira o dinheiro dos sócios. E tudo isso é legítimo, afinal o objetivo fim de uma empresa é o lucro.

Um governo por sua vez deve governar para todos. Não pode escolher gênero ou classe social. Nem atender apenas os que fazem a conta fechar. Se uma nova doença atinge apenas alguns milhares de cidadãos, provavelmente sua prevenção dará prejuízo aos cofres públicos. Deve ser feita mesmo assim. E o mesmo vale para outras atividades que não necessariamente dão lucro, mas se refletem em qualidade de vida para a população. Como por exemplo investimentos em esporte, cultura e pesquisa científica.

Para governar para todos um país deve ser representado por todos. Ter em seus quadros homens, mulheres, brancos, negros, representantes dos empresários, do meio cultural e da classe trabalhadora. E, claro, cada um deles deve ser impecável no seu assunto. Técnico, com bom senso, que saiba dialogar, honesto e realizador. Entenda a necessidade da máquina pública ser eficiente, não acumular prejuízos, desenhar orçamentos factíveis e ter bom planejamento. Parece difícil achar alguém assim para cada pasta? Não me parece. Em meio a duzentos milhões de pessoas, tenho certeza que elas existem.

O país precisa dar lucro, é verdade. A política econômica do país é certamente um dos principais pilares para o desenvolvimento sustentável de longo prazo. O equilíbrio fiscal definitivamente acelera o crescimento e contribui para um ambiente mais propicio para se buscar justiça social e oportunidades para todos. Mas há muito mais do que isso. E, infelizmente, a turma que só esta preocupada com a próxima viagem pra Miami, tem dificuldade em ver isso. Só esquece que antes de fugir para ter qualidade de vida lá, deveria cobrar qualidade de vida aqui, onde mora.

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