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Doping Corporativo e a Nova NR 1: quando a busca pela alta performance vira risco ocupacional

Fenômeno expõe pressão organizacional e será tratado como risco psicossocial pela nova NR 1 a partir de dois mil e vinte e seis

Publicado em 21 de novembro de 2025 às 11h51.

A cultura da busca pela alta performance impõe às organizações um ritmo que, há alguns anos, seria classificado como insensato. Hoje, porém, tornou-se paisagem corporativa. A engrenagem exige velocidade, resiliência infinita e presença constante, e, para alguns profissionais, isso só é possível graças a um empurrão químico.

O fenômeno do doping corporativo, tratado pela autora Daniela Bauab em seu livro de mesmo nome, deixou de ser exceção e tornou-se um sintoma preocupante da forma como as empresas têm exigido desempenho.
Dentro desse cenário, estimulantes como Venvanse e Ritalina começam a circular com naturalidade. Não necessariamente por prescrição médica, mas pela pressão explícita ou silenciosa de acompanhar um padrão de entrega impossível de sustentar a longo prazo. E quem não entra no ciclo passa a se sentir lento, inadequado ou, pior, dispensável.

Do ponto de vista jurídico, por mais que o ambiente de trabalho imponha regras e discipline condutas, existe uma fronteira que a empresa não pode ultrapassar: a saúde íntima do empregado. Incentivar medicamentos para melhorar a “performance” é atravessar essa fronteira.

E o Judiciário já deixou claro que isso tem consequências. Um caso recente julgado pelo Tribunal Regional do Trabalho da dezoitoª Região, em Goiás, é exemplar: a empresa fornecia aos funcionários um medicamento tarja preta com a justificativa de aumentar foco e concentração. A oferta não era obrigatória, mas era contínua e personalizada, a ponto de alguns comprimidos virem identificados com o nome do colaborador.
O tribunal reconheceu a prática como violação à dignidade e à saúde, condenando a empresa por dano moral. Esse episódio ilustra um fenômeno mais amplo: quando a gestão substitui soluções organizacionais por soluções farmacológicas, o risco deixa de ser abstrato e passa a ser juridicamente mensurável.

Esse ponto de inflexão cultural também aparece na pesquisa “Felicidade Artificial” da Consultoria Brasileira Bossa.etc, direcionada a executivos do C-level. Nada menos que vinte e nove% dos respondentes afirmaram acreditar que o uso de fármacos para melhorar o desempenho pode ser uma alternativa às medidas preventivas de problemas organizacionais, como reorganização de horários, pausas adequadas ou gestão mais humana das jornadas.
Essa visão é delicadíssima: enxergar a medicalização desnecessária como “solução” revela que a cultura organizacional está equivocada em sua origem. No fundo, trata-se da normalização de uma lógica perversa: a empresa depende da medicalização forçada de pessoas saudáveis para funcionar como pretende. Quando o medicamento vira ferramenta de gestão, algo está profundamente errado.

Nova NR 1 transforma risco psicossocial em obrigação legal

E é justamente nesse ponto que surge a virada normativa. A partir de maio de dois mil e vinte e seis, a atualização da NR 1 transforma esse tema em obrigação legal. A norma passa a exigir que todas as empresas identifiquem, avaliem e controlem os riscos psicossociais com a mesma seriedade dedicada aos riscos físicos, químicos ou ambientais.

Em linguagem direta: não basta mais proteger o trabalhador do ruído ou da eletricidade; é preciso protegê-lo também da cultura interna que o adoece. A NR 1 menciona expressamente fatores como assédio moral, metas abusivas, sobrecarga crônica e ausência de apoio das lideranças, elementos que compõem o mesmo ambiente que, historicamente, impulsiona a medicalização.

É nesse contexto que o doping corporativo se encaixa: pressão insustentável somada à medicalização cria um risco psicossocial perfeitamente identificável e, agora, regulado. Ignorar essa equação deixa de ser apenas falta de sensibilidade, passa a ser descumprimento normativo.

Ambientes em que trabalhadores precisam recorrer a estimulantes para atender às demandas revelam falhas organizacionais profundas. O uso recorrente desses medicamentos como suporte para produtividade gera dependência progressiva de estímulos externos, fadiga intensa, redução da capacidade natural de autorregulação e vulnerabilidade emocional e cognitiva. Em outras palavras, o colaborador perde a capacidade de dizer “não” e a empresa perde a capacidade de diagnosticar problemas reais.

Os impactos dessa prática são duros para ambos os lados. Para o trabalhador, os riscos físicos e mentais incluem ansiedade, insônia, irritabilidade, taquicardia, desregulação do apetite e potencial dependência química.
Para a empresa, os efeitos são igualmente desastrosos: absenteísmo, rotatividade elevada, queda de produtividade sustentável, adoecimento coletivo, aumento do passivo trabalhista e risco reputacional.

Diante desse cenário, a adequação à nova NR 1 torna-se não apenas urgente, mas estratégica. As empresas precisam revisar seus Programas de Gerenciamento de Riscos com foco real e não meramente declaratório nos riscos psicossociais; mapear práticas invisíveis que estimulam produtividade a qualquer custo; monitorar indicadores menos óbvios, como fadiga crônica, isolamento ou automedicação; treinar lideranças para substituir pressão por acompanhamento e limites saudáveis; e criar canais de acolhimento capazes de dar respostas mais humanas às dificuldades dos trabalhadores.

São mudanças que exigem maturidade, mas que evitam problemas sérios e, principalmente, evitam que o ambiente organizacional continue operando à base de atalhos farmacológicos.
A atualização da NR 1 inaugura um novo capítulo na gestão de saúde ocupacional: aquele que reconhece formalmente que ambientes que adoecem emocionalmente são tão perigosos quanto máquinas sem proteção. E, nesse cenário, o doping corporativo deixa de ser tabu e passa a ser evidência de cultura inadequada, de risco não gerenciado e de potencial responsabilização.

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