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A diplomacia do incompreensível

De Jacques Lacan a Ernesto Laclau, palestra de Araújo nos EUA costurou uma enorme teoria da conspiração e passou ao largo de todas as questões que importam

Ernesto Araújo: O lugar em que o Brasil “nunca esteve” é o centro da disputa, o palco principal de uma suposta guerra ideológica (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Ernesto Araújo: O lugar em que o Brasil “nunca esteve” é o centro da disputa, o palco principal de uma suposta guerra ideológica (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
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David Cohen

Publicado em 14 de setembro de 2019 às, 16h45.

A volta dos que não foram. Esta expressão é comum há décadas como um chiste cuja graça está no contraste entre um formato de título de filme e um conteúdo desprovido de sentido. Pois foi exatamente assim que o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, abriu o seu discurso na Fundação Heritage, a mais influente organização de estudos do conservadorismo americano, no dia 11 de setembro, logo depois de expressar seus sentimentos pela tragédia dos ataques terroristas de 18 anos atrás.

O título da palestra até que prometia: Brazil is back, o Brasil está de volta. Poderia significar que, depois de um governo desastroso seguido de uma gestão interina, o país começa a se aprumar. Ou, como gosta de pontuar o ministro da Economia, Paulo Guedes, que depois de quase três décadas de administrações social-democratas, estamos dando os primeiros passos de um governo liberal. Em qualquer caso, seria uma excelente oportunidade para responder aos temores internacionais de que o Brasil não esteja cuidando como deveria da maior reserva de biodiversidade do planeta, e de propagar as mudanças profundas que estamos em vias de implementar para tornar o país mais amigável a investimentos.

Mas Araújo quis ir além: “o Brasil está de volta para onde nunca esteve”, uma frase que, se tivesse sido proferida pela ex-presidente Dilma Rousseff, já estaria sendo acrescentada à coletânea de seus despropósitos verbais.

No caso de Araújo, porém, o despropósito é de propósito. O lugar em que o Brasil “nunca esteve” é o centro da disputa, o palco principal de uma suposta guerra ideológica. É para aí que, segundo o nosso chanceler, o país voltou. É onde se encontra agora, ao lado dos Estados Unidos e dos defensores do Brexit (a proposta de divórcio da União Europeia aprovada pelos cidadãos britânicos, mas ainda não concretizada). No campo oposto estão os globalistas – uma categoria de definição tão difusa quanto o movimento dos tribalistas, lançado pelos músicos Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown em 2002, com a dupla desvantagem de ser uma associação sem nenhum membro e nenhuma música nas paradas de sucesso.

A cor do uniforme

Já não é novidade nenhuma que Araújo, embora um diplomata competente, ganhou o cargo de ministro mais por suas excentricidades do que por méritos demonstrados no desempenho de suas funções no Itamaraty. É um outsider que vem de dentro. Ganhou o apoio dos filhos do presidente Jair Bolsonaro por um extenso e fantasioso elogio ao presidente americano, Donald Trump, em um blog que criou pouco antes das eleições. No artigo, considerava Trump um baluarte dos valores ocidentais, numa cruzada contra um supostamente onipresente marxismo, definida de acordo com os termos do escritor Olavo de Carvalho, que o presidente considera um visionário.

O problema é que, perto de terminar o nono mês da administração Bolsonaro, está claro que as excentricidades de Araújo não caminham ao lado de suas funções como chanceler. Elas as substituem. Em política externa, estamos parecendo um time de futebol que até tem bons jogadores, mas cujo técnico está mais preocupado com a cor do uniforme, com a altura da meia, com a letra do hino do clube. Dá para ganhar o jogo? Dá. Mas fica mais difícil.

Isso ficou claro no discurso proferido na Fundação Heritage. Ante uma plateia conservadora, predisposta à simpatia com um governo alinhado ao do presidente Trump, Araújo teceu, em uma hora de conversa, apenas dois argumentos que têm a ver com a atual crise de imagem: afirmou, corretamente, que a opinião pública mundial condenou o Brasil sem julgamento; e questionou, de forma pouco convincente, o consenso científico de que o desmatamento na Amazônia seja um agravante sério para as mudanças climáticas. Neste último ponto, sua cadeia de raciocínio é que os modelos matemáticos para estimar o aquecimento estão praticamente todos errados; que, mesmo se estiverem corretos, a queima das florestas representa menos de um quinto da emissão de carbono na atmosfera e a parcela especificamente brasileira é de menos de 2%; e que o desmatamento amazônico está no mesmo nível de alguns anos atrás.

Mesmo considerando que a Fundação Heritage rejeita o consenso científico sobre o aquecimento global, o discurso do chanceler não atinge apenas aquele ambiente. Perdeu-se, ali, uma oportunidade de tranquilizar e atrair investidores não só dos Estados Unidos, mas do mundo inteiro. Quem assiste a essas palestras normalmente são investidores, gestores ou conselheiros de fundos. Um deles resumiu o que considera ser uma reação generalizada: o Brasil pratica uma diplomacia do incompreensível.

Parece estar razoavelmente assentada a percepção de que o chanceler brasileiro não prima pela racionalidade, e que o presidente fala sem pensar. O investidor, que prefere não se identificar para não prejudicar relações de negócios, diz não entender por que o governo adotou o padrão de criar tumultos a toda hora, de se afirmar pela sucessão de polêmicas.

A comunidade de negócios pode até se inclinar mais para o lado conservador, mas é acima de tudo pragmática. E, nos dias de hoje, obcecada pela questão de compliance (a aderência às normas) e governança. Isso inclui o respeito ao meio ambiente, a civilidade, a preocupação social e o debate racional.

Como disse a gestora no Brasil da casa de investimentos holandesa Robeco, Daniela da Costa-Bulthuis, ao jornal O Estado de S. Paulo: “As questões diplomáticas estão ficando sérias. O ponto central é que o governo precisa se comunicar melhor com a comunidade internacional. Tem de entender que o investidor institucional não decide suas aplicações olhando o Twitter.”

Para sorte do país, a crítica mais contundente ao discurso de Araújo foi feita justamente pelo Twitter, e se restringiu a ele. Ishaan Tharoor, colunista de assuntos externos do jornal The Washington Post, não transferiu para o site do jornal a análise que fez nas redes sociais, em tempo real. Um de seus posts: “Este é um discurso fascinantemente ideológico para um ministro do exterior em terra estrangeira (e mais ou menos incoerente). ‘Nossa civilização está perdendo seus símbolos’, ele diz. Agora está falando sobre teorias de ‘hegemonia’, dando aula sobre Rosa de Luxemburgo e ‘confisco simbólico’.”

Nos jornais, correu quase que somente a declaração de que “o mundo não está à beira de uma catástrofe ambiental”. Mas não é que Araújo tenha simplesmente avaliado que a situação é menos dramática do que fazem crer as reações emotivas, nem apenas que ele tenha se declarado agnóstico em relação aos efeitos da ação humana sobre o aquecimento global. Ele foi além. Denunciou o “climatismo”, que define como a defesa do meio ambiente transformada em ideologia, como um meio para atingir um fim. Este fim seria o fim da liberdade de expressão e, em última análise, da democracia.

A obsessão com Gramsci

“É impressionante”, tuitou Tharoor. “Não está claro se ele alguma vez leu sobre as teorias críticas neo-marxistas para além dos verbetes da Wikipédia, mas ele está exigindo demais de uma plateia da Fundação Heritage para entender do que está falando.”

De fato, Araújo não falou nada sobre os avanços do agronegócio brasileiro com mínimo impacto ambiental, sobre a lei de proteção a florestas nativas mesmo em áreas produtivas, sobre o fato de que o atual fenômeno de queimadas está sendo verificado em várias regiões do mundo e não apenas na Amazônia, sobre as medidas recentes para avaliar a extensão dos crimes ambientais, e nem sobre as diversas iniciativas para melhorar o ambiente de negócios no Brasil, como as reformas da Previdência e tributária e as privatizações.

Em vez disso, citou o pensador marxista italiano Antonio Gramsci, Herbert Marcuse e os críticos esquerdistas da Escola de Frankfurt, o filósofo francês Michel Foucault e sua teoria do panóptico, o escritor britânico George Orwell, o psicanalista francês Jacques Lacan, a dupla de pós-marxistas Ernesto Laclau e Chantal Mouffe… Nada que interessasse a plateia da Fundação Heritage.

Basta assistir ao vídeo de sua apresentação para observar que Araújo falava com a voz voltada para dentro, titubeando a cada frase, pontuando a fala com a palavra “é”. A impressão é de que ele falava para si mesmo, não para a plateia. Para si e, talvez, para seu pequeno núcleo de semelhantes, entre eles supostamente a família Bolsonaro e Olavo de Carvalho, cuja mais recente contribuição filosófica foi a afirmação de que as músicas dos Beatles não foram compostas pelos Beatles, mas sim pelo filósofo alemão Theodor Adorno, uma das eminências da Escola de Frankfurt, com o intuito de esvaziar e destruir por dentro a civilização ocidental e abrir caminho para, é claro, o marxismo.

Araújo não chega a esse extremo do delírio. Restringe-se aos níveis mais básicos da teoria da conspiração que enxerga a sombra do marxismo por todo lado. Mas, como toda teoria da conspiração, esta se baseia em elementos da realidade. Paradoxalmente, Araújo parece ser uma das pessoas que mais levam a sério as teses dos teóricos que tentaram reformar o marxismo.

A base do pensamento de Araújo é Gramsci, especialmente seu conceito de hegemonia. Em linhas gerais, Gramsci tratou de explicar um fato que os marxistas não conseguiam aceitar: que a revolução foi feita na Rússia, mas não nos países ocidentais. Sua explicação foi que, ao contrário do que diziam os intérpretes de Karl Marx (o próprio Marx não era tão esquemático), a ideologia não era meramente um resultado das condições materiais.

Ou seja, Gramsci aproxima Marx dos idealistas: ideias importam, ideias ajudam a mover o mundo. Sua recomendação era: para tomar o poder, é preciso levar em conta o modo como ideologia e sociedade civil parametrizam as relações sociais. Por isso, defendia a formação de “intelectuais orgânicos”, que ajudassem a massa a se conscientizar. Trata-se de conquistar a “hegemonia”, que ocorre quando um grupo impõe a aliados e subalternos uma estrutura cultural, moral e ideológica.

É esse o conceito que está na base da reclamação de Araújo de que “a esquerda confiscou o simbólico”. É isso que sustenta as acusações de que as escolas estão tomadas, as universidades estão tomadas, os sindicatos estão tomados por uma ideologia marxista. Não é uma acusação totalmente descolada da realidade, mas confere a sentimentos difusos um maquiavelismo, uma ação premeditada e concertada.

Um populismo alimenta o outro

Ocorre, porém, que as ideias de Gramsci também foram ultrapassadas. Em seu discurso, Araújo afirmou que está lendo a obra do argentino Ernesto Laclau, já falecido, e de sua mulher, a belga Chantal Mouffe, o casal que revitalizou (e traiu) a noção de hegemonia de Gramsci.

Laclau e Mouffe avançaram sobre um terreno mais ou menos mapeado pelo pós-modernismo, dentro do conceito de que não existe uma identidade por si – é o discurso, a articulação das relações sociais, que cria identidades (ainda que mutáveis). Gramsci falava de uma fragmentação das classes sociais, que teria diluído a força da luta de classes propagada como inevitável por Marx. Para os pós-modernos, não existem classes, apenas a fragmentação. Laclau e Mouffe concluem, portanto, que a luta de classes é apenas um ponto a mais num mosaico de antagonismos.

E assim ganhava força o pós-marxismo, na busca de adaptação dos movimentos esquerdistas às demandas sociais surgidas na década de 1960 – feminismo, ambientalismo, respeito a gays e lésbicas, pacifismo, bandeiras que continuam a se proliferar conforme a sociedade avança (como o mais jovem veganismo, por exemplo). Laclau e Mouffe são importantes na redefinição do projeto socialista em termos de radicalização da democracia. Trata-se de estender as lutas sociais para todos os campos, sempre estimulando a dicotomia, o nós contra eles, o certo contra o errado, o bom contra o mau.

Como a realidade, para eles, é construída, em vez de meramente retratada, pelo discurso, os dois recorrem à linguística e à psicanálise, especialmente Lacan, e defendem que a hegemonia cultural resulta da elaboração de um discurso de unificação das classes e grupos sociais. Esse discurso, no entanto, não precisa revelar uma essência comum entre as diversas demandas: ele as cria. E quem tem o poder de criar essa hegemonia detém as chaves para a formação de um grupo coeso: o povo.

Não é de espantar que Laclau e Mouffe sejam uma espécie de patronos do populismo de esquerda, e tenham influenciado diversos movimentos europeus, como a Coalizão de Esquerda Radical, a Syriza, na Grécia; o partido de extrema esquerda espanhol Podemos; e o movimento de esquerda francês La France Insoumise (A França Insubmissa).

E aí está o que a turma ultra-conservadora considera a nova estratégia dos socialistas: provocar as guerras identitárias, para através delas estabelecer um amálgama de significados que sustente a noção de grupo, ou de povo (na melhor das hipóteses), que poderia então ser “guiado” rumo a uma ditadura do proletariado (sem necessidade de que exista um proletariado).

O erro de toda essa visão reside em confundir causa e consequência. Gramsci não criou a fragmentação da sociedade, apenas a enxergou. Da mesma forma, apesar de alguns grupos “emprestarem” significado a outros (é comum as pessoas acreditarem que veganos são mais tolerantes com a causa homossexual, por exemplo, ou que defensores do centralismo econômico são mais preocupados com justiça social), essa colagem é frágil: basta lembrar que as evidências de corrupção destroçaram a reivindicação do PT de que seu projeto socialista embutia a preocupação ética.

Se é verdade que o espírito da esquerda se moveu das lutas de classe para questões identitárias, não é provável que isso tenha ocorrido por decisão consciente. Cada época tem as suas questões, e as reivindicações evoluem junto com a sociedade.

Paradoxalmente, quem mais acredita no discurso laclauniano é justamente quem se diz seu inimigo. Combater as reivindicações identitárias não acaba com elas, apenas estabelece um inimigo visível. E assim, lamentavelmente, se reforçam as dicotomias que estão na base do que Laclau e Mouffe consideram o cerne da vida política moderna: a divisão entre nós e eles, o antagonismo multiplicado em várias frentes. Como eles próprios disseram, a conexão inerente entre os movimentos populistas de esquerda e direita é que ambos adotam a mesma verdade fundamental sobre a democracia: que ela é uma luta constante sobre como o “nós” e o “eles” da política é definido e redefinido, e depois redefinido outra vez, até o fim dos tempos.

Em certa medida, as divisões agudas na sociedade brasileira ocorrem porque as discussões estão centradas na cor do uniforme, na altura da meia, na letra do hino – e não no jogo que precisamos vencer.