Sobre olhar para cima e para frente
Precisamos da ameaça de um cataclisma para renovar o compromisso com a vida hoje?
Da Redação
Publicado em 12 de janeiro de 2022 às 19h33.
Por: Daniela Grelin
Uma constelação de astros e estrelas de primeira grandeza atraiu a atenção global para uma produção da Netflix lançada próxima ao Natal de 2021. ‘Não Olhe para Cima’ ( Don’t look up!) tornou-se tema onipresente nas festas e encontros de fim de ano, não apenas por unir nomes como Leonardo Di Caprio, Jennifer Lawrence, Meryl Streep e Kate Blanchet, mas também por nos colocar diante de um espelho. Tão perspicaz e recorrente quanto o artifício de levar as pessoas a fazerem algo por meio da exortação contrária, a temática central do filme - a questão da nossa extinção como espécie – ganha concretude e urgência por meio de uma sátira em que todos nós podemos nos reconhecer.
A própria tecitura do enredo -, composta por fios tais como a ascensão do pensamento negacionismo, a polarização nas interações sociais, o apelo do escapismo, a fragilidade da vida, a subordinação de tudo aos interesses econômicos e políticos, os efeitos potencialmente fatais da cegueira voluntária - nos permite reconhecer, se não nas personagens, pelo menos na trama em si, a nossa incapacidade de construir acordos mínimos sobre o que quer que seja, ainda que o tema em questão seja nada menos do que a preservação da nossa existência enquanto espécie.
Não é a primeira vez que a ficção e as notícias exploram a questão da exterminação da espécie pela aproximação iminente de um asteroide. Um leitor do jornal parisiense ‘L’Intransigeant’ em 1922, publicação conhecida por levantar grandes questões e convidar celebridades a enviarem suas perspectivas, teria se deparado com uma questão particularmente inquietante: “Um cientista americano anunciou que o mundo irá acabar ou, ao menos, uma parte tão grande do continente será destruída, de forma tão repentina, que a morte será o destino de centenas de milhões de pessoas. Se esta previsão for confirmada, qual será, na sua opinião, o efeito da notícia sobre as pessoas, do momento em que elas obtiverem a certeza da previsão até o momento do cataclisma? Finalmente, no que te diz respeito, o que você faria nessa última hora? ” A pergunta suscitou as mais diversas reações de intelectuais, escritores, atrizes e até uma famosa quiromante Parisiense.
Entre tais celebridades, uma resposta veio de um homem recluso que havia passado os últimos 14 anos em uma cama estreita, entre manuscritos e travesseiros de linho, trabalhando em uma obra que veio a tonar-se um clássico da literatura mundial. Marcel Proust, autor de “Em Busca do Tempo Perdido”, enviou a seguinte resposta ao ‘L’Intransigeant’: “Eu acho que a vida repentinamente nos pareceria maravilhosa, se estivéssemos ameaçados a morrer como dizem. Apenas pense em quantos projetos, viagens, casos de amor e estudos a nossa vida oculta de nós, tornados invisíveis pela nossa preguiça que, na certeza de um futuro, adia-os incessantemente. Mas deixe que isto tudo seja ameaçado de tornar-se impossível, para sempre e, de repente, que lindo tudo se tornaria novamente! Se apenas o cataclisma não acontecer dessa vez, nós não sentiremos falta de visitar uma nova galeria no Louvre, de nos jogarmos aos pés da senhorita X, de fazer uma viagem à Índia. O cataclisma não ocorrendo, não faremos nada disso. Porque nos encontraremos de volta ao coração da vida normal, em que a negligência mata o desejo. ”
Será que precisamos de um cataclisma - seja ele a ameaça ficcional de um asteroide ou a experiência muito real de uma crise climática ou o colapso social - para amar a vida hoje? Não basta sabermos que somos humanos e que a morte pode nos surpreender hoje mesmo? Este interesse e apreciação renovados pela vida quando percebemos a iminência da morte, sugere, segundo o filósofo Alain de Botton [1], que “talvez não tenha sido exatamente pela vida em si que tenhamos perdido o gosto enquanto não tínhamos a perspectiva de um fim à vista, mas pela nossa versão cotidiana da vida.”
Será que de fato não sucumbimos à tendência de nos deixar anestesiar, por escolha ou negligência, de forma a amenizar a ansiedade e o medo, mas também, inevitavelmente, a surpresa, a curiosidade e a paixão pela vida? Abandonar nossa não deliberada crença em nossa própria imortalidade cobra seu preço, certamente, sentido na forma da vertigem que acompanha inevitavelmente a vida refletida. Mas também nos desperta para todo um leque de possibilidades não exploradas, sequer percebidas, que nos aguardam, logo abaixo da superfície da consciência, à espera do nosso olhar realizador. Se o reconhecimento da nossa mortalidade nos convida a contemplá-las à luz de nossas prioridades, poderíamos nos perguntar quais deveriam ser tais prioridades. Afinal, há escolhas a serem feitas.
As questões propostas por Marcel Proust aos leitores do L’Intransigeant em 1922 são as mesmas que interpelam a audiência da Netflix 100 anos depois. Aliás, são as mesmas que pautaram Liev Tolstói em “Uma Confissão” [2] e todas as tradições espirituais e filosóficas que lidam com a questão do sentido. São as questões que costumam perturbar nossas consciências nas passagens de ano, quando renovamos os nossos estoques de esperança. Elas suscitam as mais diversas respostas, que talvez possam ser categorizadas em caminhos alternativos como negação, resignação, escapismo, ativismo e contemplação.
Cada uma traz consigo seus próprios riscos e recompensas. Mas creio que o caminho mais capaz de nos reconciliar com a beleza da vida e suas múltiplas possibilidades seja composto por uma combinação de lucidez, para aceitarmos o inevitável; coragem, para transformar o que pode ser melhorado; e esperança, para não deixarmos de acreditar que vale a pena. Aliás, esta é uma definição possível de esperança (do verbo esperançar, não do verbo esperar): acreditar que o caminhar vale a pena.
Quão valioso é no início de um novo ano, época definida pela renovação de nossas esperanças, atentarmos à possibilidade da ameaça do asteroide exterminador de planetas que, importante explicitar, tem papel metafórico para questões com as quais já convivemos como a crise climática, pandemia de Covid-19, ou ainda, pandemias silenciosas como a da violência contra as mulheres e do câncer de mama, para redescobrirmos com lucidez, coragem e esperança razões para viver a vida com amor e disposição renovadas. Este é meu desejo para 2022!
[1]Alain de Botton, “How Proust Can Change Your Life”.
[1]Liev Tolstói, “Uma Confissão”.
Por: Daniela Grelin
Uma constelação de astros e estrelas de primeira grandeza atraiu a atenção global para uma produção da Netflix lançada próxima ao Natal de 2021. ‘Não Olhe para Cima’ ( Don’t look up!) tornou-se tema onipresente nas festas e encontros de fim de ano, não apenas por unir nomes como Leonardo Di Caprio, Jennifer Lawrence, Meryl Streep e Kate Blanchet, mas também por nos colocar diante de um espelho. Tão perspicaz e recorrente quanto o artifício de levar as pessoas a fazerem algo por meio da exortação contrária, a temática central do filme - a questão da nossa extinção como espécie – ganha concretude e urgência por meio de uma sátira em que todos nós podemos nos reconhecer.
A própria tecitura do enredo -, composta por fios tais como a ascensão do pensamento negacionismo, a polarização nas interações sociais, o apelo do escapismo, a fragilidade da vida, a subordinação de tudo aos interesses econômicos e políticos, os efeitos potencialmente fatais da cegueira voluntária - nos permite reconhecer, se não nas personagens, pelo menos na trama em si, a nossa incapacidade de construir acordos mínimos sobre o que quer que seja, ainda que o tema em questão seja nada menos do que a preservação da nossa existência enquanto espécie.
Não é a primeira vez que a ficção e as notícias exploram a questão da exterminação da espécie pela aproximação iminente de um asteroide. Um leitor do jornal parisiense ‘L’Intransigeant’ em 1922, publicação conhecida por levantar grandes questões e convidar celebridades a enviarem suas perspectivas, teria se deparado com uma questão particularmente inquietante: “Um cientista americano anunciou que o mundo irá acabar ou, ao menos, uma parte tão grande do continente será destruída, de forma tão repentina, que a morte será o destino de centenas de milhões de pessoas. Se esta previsão for confirmada, qual será, na sua opinião, o efeito da notícia sobre as pessoas, do momento em que elas obtiverem a certeza da previsão até o momento do cataclisma? Finalmente, no que te diz respeito, o que você faria nessa última hora? ” A pergunta suscitou as mais diversas reações de intelectuais, escritores, atrizes e até uma famosa quiromante Parisiense.
Entre tais celebridades, uma resposta veio de um homem recluso que havia passado os últimos 14 anos em uma cama estreita, entre manuscritos e travesseiros de linho, trabalhando em uma obra que veio a tonar-se um clássico da literatura mundial. Marcel Proust, autor de “Em Busca do Tempo Perdido”, enviou a seguinte resposta ao ‘L’Intransigeant’: “Eu acho que a vida repentinamente nos pareceria maravilhosa, se estivéssemos ameaçados a morrer como dizem. Apenas pense em quantos projetos, viagens, casos de amor e estudos a nossa vida oculta de nós, tornados invisíveis pela nossa preguiça que, na certeza de um futuro, adia-os incessantemente. Mas deixe que isto tudo seja ameaçado de tornar-se impossível, para sempre e, de repente, que lindo tudo se tornaria novamente! Se apenas o cataclisma não acontecer dessa vez, nós não sentiremos falta de visitar uma nova galeria no Louvre, de nos jogarmos aos pés da senhorita X, de fazer uma viagem à Índia. O cataclisma não ocorrendo, não faremos nada disso. Porque nos encontraremos de volta ao coração da vida normal, em que a negligência mata o desejo. ”
Será que precisamos de um cataclisma - seja ele a ameaça ficcional de um asteroide ou a experiência muito real de uma crise climática ou o colapso social - para amar a vida hoje? Não basta sabermos que somos humanos e que a morte pode nos surpreender hoje mesmo? Este interesse e apreciação renovados pela vida quando percebemos a iminência da morte, sugere, segundo o filósofo Alain de Botton [1], que “talvez não tenha sido exatamente pela vida em si que tenhamos perdido o gosto enquanto não tínhamos a perspectiva de um fim à vista, mas pela nossa versão cotidiana da vida.”
Será que de fato não sucumbimos à tendência de nos deixar anestesiar, por escolha ou negligência, de forma a amenizar a ansiedade e o medo, mas também, inevitavelmente, a surpresa, a curiosidade e a paixão pela vida? Abandonar nossa não deliberada crença em nossa própria imortalidade cobra seu preço, certamente, sentido na forma da vertigem que acompanha inevitavelmente a vida refletida. Mas também nos desperta para todo um leque de possibilidades não exploradas, sequer percebidas, que nos aguardam, logo abaixo da superfície da consciência, à espera do nosso olhar realizador. Se o reconhecimento da nossa mortalidade nos convida a contemplá-las à luz de nossas prioridades, poderíamos nos perguntar quais deveriam ser tais prioridades. Afinal, há escolhas a serem feitas.
As questões propostas por Marcel Proust aos leitores do L’Intransigeant em 1922 são as mesmas que interpelam a audiência da Netflix 100 anos depois. Aliás, são as mesmas que pautaram Liev Tolstói em “Uma Confissão” [2] e todas as tradições espirituais e filosóficas que lidam com a questão do sentido. São as questões que costumam perturbar nossas consciências nas passagens de ano, quando renovamos os nossos estoques de esperança. Elas suscitam as mais diversas respostas, que talvez possam ser categorizadas em caminhos alternativos como negação, resignação, escapismo, ativismo e contemplação.
Cada uma traz consigo seus próprios riscos e recompensas. Mas creio que o caminho mais capaz de nos reconciliar com a beleza da vida e suas múltiplas possibilidades seja composto por uma combinação de lucidez, para aceitarmos o inevitável; coragem, para transformar o que pode ser melhorado; e esperança, para não deixarmos de acreditar que vale a pena. Aliás, esta é uma definição possível de esperança (do verbo esperançar, não do verbo esperar): acreditar que o caminhar vale a pena.
Quão valioso é no início de um novo ano, época definida pela renovação de nossas esperanças, atentarmos à possibilidade da ameaça do asteroide exterminador de planetas que, importante explicitar, tem papel metafórico para questões com as quais já convivemos como a crise climática, pandemia de Covid-19, ou ainda, pandemias silenciosas como a da violência contra as mulheres e do câncer de mama, para redescobrirmos com lucidez, coragem e esperança razões para viver a vida com amor e disposição renovadas. Este é meu desejo para 2022!
[1]Alain de Botton, “How Proust Can Change Your Life”.
[1]Liev Tolstói, “Uma Confissão”.