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O cancelamento e a expiação

A cultura do cancelamento trouxe de volta um mecanismo de controle social que precede o estabelecimento dos sistemas de justiça: a vingança

A cultura do cancelamento trouxe de volta um mecanismo de controle social que precede o estabelecimento dos sistemas de justiça: a vingança (Paul Taylor/Getty Images)
AM

André Martins

Publicado em 2 de março de 2021 às 18h28.

Última atualização em 2 de março de 2021 às 18h30.

Se alguém me dissesse, antes da eliminação da Karol Conká no BBB 2021 , que 99,17% dos votos de milhões de brasileiros convergiria para um consenso sobre qualquer tema – seja o formato da terra, a necessidade da vacina ou qualquer outro tópico inconteste – eu não acreditaria. Há anos o adjetivo ‘polarizado’ tornou-se quase a definição do espírito dos nossos tempos.

Polarização de opiniões que tornou-se clivagem social, este fenômeno agravado pelas bolhas de (des)informação criadas pelos nossos vieses de confirmação. Vimos o aprofundamento de verdadeiros abismos entre famílias, amigos, colegas de trabalho, pessoas (únicas e assimétricas) que costumavam compor o mosaico do que chamávamos de comunidade. De repente, como num passe de mágica, conseguimos chegar a um consenso. O que nos uniu e o que isto diz sobre nós?

O historiador, antropólogo, filósofo e sociólogo francês René Girard descreve um fenômeno social observado ao longo dos séculos, em diferentes contextos geográficos e históricos, conhecido como o ‘bode expiatório’. Ele destaca, por meio de diversos exemplos históricos, que existe um esquema transcultural de violência coletiva que é possível de ser reconhecido e descrito. Vejam como os elementos deste esquema estão todos presentes na eleição de uma participante de um reality show como o objeto de “ódio de estimação” dos brasileiros no pior momento da crise pandêmica que vivemos.

Em primeiro lugar, o elemento da crise generalizada em si, seja de origem sanitária, humanitária ou econômica se faz presente na violência coletiva, ou em sua vertente virtual conhecida como linchamento ou cancelamento. A crise pandêmica inevitavelmente se desdobra em uma crise social, pois desagrega, desestrutura e antagoniza as relações humanas. Como a crise expõe as desigualdades e antagonismos sociais, há uma tendência natural de explicá-la pela perspectiva social e, ato contínuo, moral. Ao fazê-lo os indivíduos têm a tendência de adotar, mesmo que intuitivamente dois caminhos possíveis: reprovar a sociedade em geral pela crise, o que os exime de qualquer responsabilidade pessoal, ou responsabilizar os suspeitos usuais, por razões bastante características, que constituem o segundo elemento da perseguição coletiva.

Os perseguidores, ou seja, todos nós, no exemplo específico em questão, acabam se convencendo de que um pequeno grupo de indivíduos, ou até, surpreendentemente, um só indivíduo pode ser extremamente perigoso para toda a sociedade, apesar da óbvia assimetria de poder entre uma pessoa e uma sociedade inteira. Neste sentido, a acusação estereotipada facilita a formação desta crença ao direcionar para um indivíduo suspeito todo o medo de uma sociedade privada da perspectiva das nuances que diferenciam as pessoas. E quais são, tradicionalmente, os grupos mais suspeitos?

Lembremos que a multidão, em seu ímpeto perseguidor, busca purificar a comunidade dos elementos impuros que a corrompem ou subvertem. Este ímpeto, por sua vez gera o impulso agregador que possibilita a formação de um consenso absurdamente coeso tornando tantas e tão diferentes pessoas partes de uma mesma mobilização, ou multidão. Um exemplo deste tipo de mobilização se observou nas acusações aos judeus e outros bodes expiatórios durante o surto de peste bubônica que atingiu a Europa no Sec. XIV.

Mas ao longo da história, identificam-se muitas manobras acusatórias mirando personagens influentes ou famosos, ou as caças às bruxas. Em alguns casos, a escolha dos alvos é lastreada em comportamentos reais que contribuem, certamente, para sua exposição à perseguição, mas não conseguem sozinhos explicar a amplitude e intensidade da violência coletiva.

O que está em questão aqui, não é tanto o mérito da ação causadora da perseguição, mas o fato de ela conseguir mobilizar tantas pessoas que, de outra forma, não chegariam a um acordo sobre praticamente nada. É precisamente aí que está a distorção.

No fato de os desvios de um indivíduo serem vistos menos como um reflexo, ou simplesmente mais uma instância das falhas humanas ou das distorções sociais, mas a causa destas mesmas falhas em escala nacional. Nesta lógica distorcida, a redenção acontece não a partir de um processo de mudança de dentro para fora, ou seja, do indivíduo para a sociedade, mas da expiação da culpa de toda uma comunidade pela exclusão de um de seus membros.

Neste sentido, o bode expiatório consegue apaziguar tensões de uma sociedade inteira, canalizando para si o ímpeto vingativo de uma multidão outrora fragmentada. Mas voltemos à escolha do bode expiatório.

Gerard nos indica que “quanto mais a pessoa se distancia do status social mais comum, em um ou outro meio, mais crescem os riscos de perseguição”¹. O que se esperaria de uma mulher que construiu boa parte de sua reputação como ativista do feminismo negro em um espaço de altíssima exposição como a casa mais vigiada do Brasil? Que fosse o exemplo de consciência racial, o paradigma da sororidade, sendo capaz de exemplificar, em falas e gestos, o respeito à diversidade e à dignidade comum. Quando ela contraria esta expectativa estereotipada, torna-se uma traidora para os observadores de todos os pontos do espectro ideológico.

Para os ativistas da justiça social, presta um desserviço à causa. Para os conservadores, torna-se um exemplo visível das contradições que minam a credibilidade do ativismo identitário. Em suma, um alvo perfeito para todos.

A cultura do cancelamento trouxe de volta um mecanismo de controle social que precede o estabelecimento dos sistemas de justiça: a vingança. Esta resposta punitiva se consolidou em um contexto histórico de rivalidades tribais.  De certa forma, o retorno deste mecanismo, habilitado e potencializado pelas mídias sociais representa um retrocesso, pois abandona recursos como a noção de proporcionalidade, o direito à defesa e a possibilidade de perdão.

Ela causa danos tanto ao alvo da perseguição quanto ao perseguidor. Priva o primeiro da possibilidade de aprendizado, do acolhimento e do feedback construtivo enquanto torna o segundo refém de seus piores instintos. Existem maneiras bem melhores de buscarmos a justiça, o respeito e a valorização da diversidade. Pois o ‘cancelamento’ nada mais é do que o efeito manada que reproduz a desvios que pretende punir.

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Se alguém me dissesse, antes da eliminação da Karol Conká no BBB 2021 , que 99,17% dos votos de milhões de brasileiros convergiria para um consenso sobre qualquer tema – seja o formato da terra, a necessidade da vacina ou qualquer outro tópico inconteste – eu não acreditaria. Há anos o adjetivo ‘polarizado’ tornou-se quase a definição do espírito dos nossos tempos.

Polarização de opiniões que tornou-se clivagem social, este fenômeno agravado pelas bolhas de (des)informação criadas pelos nossos vieses de confirmação. Vimos o aprofundamento de verdadeiros abismos entre famílias, amigos, colegas de trabalho, pessoas (únicas e assimétricas) que costumavam compor o mosaico do que chamávamos de comunidade. De repente, como num passe de mágica, conseguimos chegar a um consenso. O que nos uniu e o que isto diz sobre nós?

O historiador, antropólogo, filósofo e sociólogo francês René Girard descreve um fenômeno social observado ao longo dos séculos, em diferentes contextos geográficos e históricos, conhecido como o ‘bode expiatório’. Ele destaca, por meio de diversos exemplos históricos, que existe um esquema transcultural de violência coletiva que é possível de ser reconhecido e descrito. Vejam como os elementos deste esquema estão todos presentes na eleição de uma participante de um reality show como o objeto de “ódio de estimação” dos brasileiros no pior momento da crise pandêmica que vivemos.

Em primeiro lugar, o elemento da crise generalizada em si, seja de origem sanitária, humanitária ou econômica se faz presente na violência coletiva, ou em sua vertente virtual conhecida como linchamento ou cancelamento. A crise pandêmica inevitavelmente se desdobra em uma crise social, pois desagrega, desestrutura e antagoniza as relações humanas. Como a crise expõe as desigualdades e antagonismos sociais, há uma tendência natural de explicá-la pela perspectiva social e, ato contínuo, moral. Ao fazê-lo os indivíduos têm a tendência de adotar, mesmo que intuitivamente dois caminhos possíveis: reprovar a sociedade em geral pela crise, o que os exime de qualquer responsabilidade pessoal, ou responsabilizar os suspeitos usuais, por razões bastante características, que constituem o segundo elemento da perseguição coletiva.

Os perseguidores, ou seja, todos nós, no exemplo específico em questão, acabam se convencendo de que um pequeno grupo de indivíduos, ou até, surpreendentemente, um só indivíduo pode ser extremamente perigoso para toda a sociedade, apesar da óbvia assimetria de poder entre uma pessoa e uma sociedade inteira. Neste sentido, a acusação estereotipada facilita a formação desta crença ao direcionar para um indivíduo suspeito todo o medo de uma sociedade privada da perspectiva das nuances que diferenciam as pessoas. E quais são, tradicionalmente, os grupos mais suspeitos?

Lembremos que a multidão, em seu ímpeto perseguidor, busca purificar a comunidade dos elementos impuros que a corrompem ou subvertem. Este ímpeto, por sua vez gera o impulso agregador que possibilita a formação de um consenso absurdamente coeso tornando tantas e tão diferentes pessoas partes de uma mesma mobilização, ou multidão. Um exemplo deste tipo de mobilização se observou nas acusações aos judeus e outros bodes expiatórios durante o surto de peste bubônica que atingiu a Europa no Sec. XIV.

Mas ao longo da história, identificam-se muitas manobras acusatórias mirando personagens influentes ou famosos, ou as caças às bruxas. Em alguns casos, a escolha dos alvos é lastreada em comportamentos reais que contribuem, certamente, para sua exposição à perseguição, mas não conseguem sozinhos explicar a amplitude e intensidade da violência coletiva.

O que está em questão aqui, não é tanto o mérito da ação causadora da perseguição, mas o fato de ela conseguir mobilizar tantas pessoas que, de outra forma, não chegariam a um acordo sobre praticamente nada. É precisamente aí que está a distorção.

No fato de os desvios de um indivíduo serem vistos menos como um reflexo, ou simplesmente mais uma instância das falhas humanas ou das distorções sociais, mas a causa destas mesmas falhas em escala nacional. Nesta lógica distorcida, a redenção acontece não a partir de um processo de mudança de dentro para fora, ou seja, do indivíduo para a sociedade, mas da expiação da culpa de toda uma comunidade pela exclusão de um de seus membros.

Neste sentido, o bode expiatório consegue apaziguar tensões de uma sociedade inteira, canalizando para si o ímpeto vingativo de uma multidão outrora fragmentada. Mas voltemos à escolha do bode expiatório.

Gerard nos indica que “quanto mais a pessoa se distancia do status social mais comum, em um ou outro meio, mais crescem os riscos de perseguição”¹. O que se esperaria de uma mulher que construiu boa parte de sua reputação como ativista do feminismo negro em um espaço de altíssima exposição como a casa mais vigiada do Brasil? Que fosse o exemplo de consciência racial, o paradigma da sororidade, sendo capaz de exemplificar, em falas e gestos, o respeito à diversidade e à dignidade comum. Quando ela contraria esta expectativa estereotipada, torna-se uma traidora para os observadores de todos os pontos do espectro ideológico.

Para os ativistas da justiça social, presta um desserviço à causa. Para os conservadores, torna-se um exemplo visível das contradições que minam a credibilidade do ativismo identitário. Em suma, um alvo perfeito para todos.

A cultura do cancelamento trouxe de volta um mecanismo de controle social que precede o estabelecimento dos sistemas de justiça: a vingança. Esta resposta punitiva se consolidou em um contexto histórico de rivalidades tribais.  De certa forma, o retorno deste mecanismo, habilitado e potencializado pelas mídias sociais representa um retrocesso, pois abandona recursos como a noção de proporcionalidade, o direito à defesa e a possibilidade de perdão.

Ela causa danos tanto ao alvo da perseguição quanto ao perseguidor. Priva o primeiro da possibilidade de aprendizado, do acolhimento e do feedback construtivo enquanto torna o segundo refém de seus piores instintos. Existem maneiras bem melhores de buscarmos a justiça, o respeito e a valorização da diversidade. Pois o ‘cancelamento’ nada mais é do que o efeito manada que reproduz a desvios que pretende punir.

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