Fake news: a bússola quebrada nas mãos do hipócrita interior
Transcender a dinâmica das fake news não é tarefa simples, nem definitiva e exige um avanço conjunto na prática do que chamo de comunicação emancipadora
Marina Filippe
Publicado em 22 de maio de 2021 às 11h13.
“É no cosmos paralelo da intersubjetividade humana mediada pela linguagem que a arte do engano encontra o seu elemento e alcança a plenitude.” Essa frase, do magistral livro de Eduardo Gianetti da Fonseca, aponta para a reflexão de que a linguagem, essa faculdade indispensável que nos permite articular o conhecimento, sonhar juntos, construir consensos e trabalhar em colaboração é também, frequentemente, agente de enganos e vetor de divisão. O livro, publicado bem antes da época da infodemia - momento que vivemos, marcado pelo colapso da confiança nas instituições, na mídia e até nos fatos - faz uma análise profunda sobre esta prática que nos une: a criação de realidades paralelas permeadas por vieses de percepção, necessidade de sobrevivência, desinformação, ou distorções cognitivas.
Se a arte do engano encontra o seu elemento na linguagem, analogamente encontra no alcance ilimitado das interações digitais mediadas por algoritmos, a sua plataforma máxima de expressão. Soma-se a isto o efeito cumulativo do autoengano na habilidade de enganar. Quanto mais genuinamente equivocados, mais sinceramente ignorantes somos, mais capazes de acreditar em nossas próprias mentiras e disseminá-las com máxima convicção e eficácia. Está montado o palco da era da infodemia, em que todos nós nos reconhecemos enredados e nenhum de nós pessoalmente implicado.
Existe um caminho de volta? Se há um caminho de volta, ele perpassa a consciência de cada um de nós, assim como a experiência do autoengano em si. Se não nos damos conta disso é por que esta é, precisamente, a natureza do problema: somos incapazes de enxergar os nossos pontos cegos. Também não é o caso de nos entregarmos ao ceticismo, ou ao relativismo radical como se não houvesse a verdade dos fatos, ou como se ela não fosse inteligível. Os fatos existem e não costumam se importar com nossos sentimentos. Para nos aproximarmos de uma visão mais íntegra da verdade, é preciso tentar distinguir os fatos das interpretações. Neste sentido, vale olhar para as iniciativas inovadoras concebidas como um dos antídotos ao consumo e disseminação das fake news. No Brasil a ABERJE – Associação Brasileira de Comunicação Empresarial – lançou uma iniciativa chamada ‘Aliança ABERJE de Combate às Fake News’.
Nascida entre os líderes de comunicação corporativa das empresas associadas, o movimento reconhece os prejuízos concretos das fake news e propõe a adoção de alguns princípios norteadores fundamentais para a proteção da credibilidade da informação, da integridade da linguagem e da confiança nas instituições. Eis aqui os princípios, que podem ser adotados tanto por empresas quanto por indivíduos para juntos avançarmos na prática do que chamo de comunicação emancipadora: aquela que nos permite a ampliação na percepção daquilo que nos acontece.
Calcados nos princípios da International Fact Checking Network, a ABERJE propõe os seguintes compromissos:
- Compromisso com o não partidarismo . Sabemos o quanto a paixão por uma boa causa pode ter um efeito hipnótico sobre nossas crenças, percepções e comportamentos. Por isso mesmo, a prática da boa comunicação não deve conviver com a dura disputa por votos, hegemonia ideológica ou interesses políticos. Este princípio pressupõe que os mesmos parâmetros de verificação sejam empregados, com igual ênfase, à todas as notícias e fontes, com base na busca de evidências.
- Compromisso com as fontes . A credibilidade da informação deve ser corroborada por evidências. Neste sentido, cabe à fonte dar o máximo de transparência possível ao seu público em relação às fontes, fatos e dados utilizados, de forma que ele possa, se assim desejar, percorrer a mesma trilha de evidências do veículo. Um excelente antídoto para as convicções infundadas.
- Compromisso com a prestação de contas . Este compromisso consiste em informar, com transparência, as fontes de financiamento da organização produtora de conteúdo. Este princípio é algo como uma porta aberta para a revisão crítica, informando de antemão as afiliações ou associações que possam introduzir vieses que comprometam a racionalidade, a honestidade ou a imparcialidade.
- Compromisso com os padrões e transparência da metodologia. Implica tornar explícita a metodologia empregada para a seleção, pesquisa, edição e publicação de notícias, bem como encorajar e criar canais de interação com o público em resposta a pedidos de verificação ou questionamentos.
- Compromisso com política de verificação/correção. Este compromisso reconhece que enganos acontecem e devem ser tratados com honestidade e transparência, indicando os mecanismos para revisão e publicação de correções.
Embora possamos nos amparar em princípios como os acima citados, sabemos que transcender a dinâmica das fake news não é tarefa simples, nem definitiva. A prática aperfeiçoa a habilidade e, neste caso, a prática em questão é colocar em dúvida as próprias convicções, em busca da verdade. Envolve uma boa dose de humildade, esta virtude tão menosprezada e tão libertadora, pois nos convida a pensar “contra nós mesmos”, remando no sentido contrário da nossa atenção seletiva e nossos vieses de confirmação. Se a prática da comunicação limpa tem um efeito libertador para o indivíduo, tem um efeito composto emancipador para a sociedade, destravando a nossa capacidade de sonhar e construir juntos.
“É no cosmos paralelo da intersubjetividade humana mediada pela linguagem que a arte do engano encontra o seu elemento e alcança a plenitude.” Essa frase, do magistral livro de Eduardo Gianetti da Fonseca, aponta para a reflexão de que a linguagem, essa faculdade indispensável que nos permite articular o conhecimento, sonhar juntos, construir consensos e trabalhar em colaboração é também, frequentemente, agente de enganos e vetor de divisão. O livro, publicado bem antes da época da infodemia - momento que vivemos, marcado pelo colapso da confiança nas instituições, na mídia e até nos fatos - faz uma análise profunda sobre esta prática que nos une: a criação de realidades paralelas permeadas por vieses de percepção, necessidade de sobrevivência, desinformação, ou distorções cognitivas.
Se a arte do engano encontra o seu elemento na linguagem, analogamente encontra no alcance ilimitado das interações digitais mediadas por algoritmos, a sua plataforma máxima de expressão. Soma-se a isto o efeito cumulativo do autoengano na habilidade de enganar. Quanto mais genuinamente equivocados, mais sinceramente ignorantes somos, mais capazes de acreditar em nossas próprias mentiras e disseminá-las com máxima convicção e eficácia. Está montado o palco da era da infodemia, em que todos nós nos reconhecemos enredados e nenhum de nós pessoalmente implicado.
Existe um caminho de volta? Se há um caminho de volta, ele perpassa a consciência de cada um de nós, assim como a experiência do autoengano em si. Se não nos damos conta disso é por que esta é, precisamente, a natureza do problema: somos incapazes de enxergar os nossos pontos cegos. Também não é o caso de nos entregarmos ao ceticismo, ou ao relativismo radical como se não houvesse a verdade dos fatos, ou como se ela não fosse inteligível. Os fatos existem e não costumam se importar com nossos sentimentos. Para nos aproximarmos de uma visão mais íntegra da verdade, é preciso tentar distinguir os fatos das interpretações. Neste sentido, vale olhar para as iniciativas inovadoras concebidas como um dos antídotos ao consumo e disseminação das fake news. No Brasil a ABERJE – Associação Brasileira de Comunicação Empresarial – lançou uma iniciativa chamada ‘Aliança ABERJE de Combate às Fake News’.
Nascida entre os líderes de comunicação corporativa das empresas associadas, o movimento reconhece os prejuízos concretos das fake news e propõe a adoção de alguns princípios norteadores fundamentais para a proteção da credibilidade da informação, da integridade da linguagem e da confiança nas instituições. Eis aqui os princípios, que podem ser adotados tanto por empresas quanto por indivíduos para juntos avançarmos na prática do que chamo de comunicação emancipadora: aquela que nos permite a ampliação na percepção daquilo que nos acontece.
Calcados nos princípios da International Fact Checking Network, a ABERJE propõe os seguintes compromissos:
- Compromisso com o não partidarismo . Sabemos o quanto a paixão por uma boa causa pode ter um efeito hipnótico sobre nossas crenças, percepções e comportamentos. Por isso mesmo, a prática da boa comunicação não deve conviver com a dura disputa por votos, hegemonia ideológica ou interesses políticos. Este princípio pressupõe que os mesmos parâmetros de verificação sejam empregados, com igual ênfase, à todas as notícias e fontes, com base na busca de evidências.
- Compromisso com as fontes . A credibilidade da informação deve ser corroborada por evidências. Neste sentido, cabe à fonte dar o máximo de transparência possível ao seu público em relação às fontes, fatos e dados utilizados, de forma que ele possa, se assim desejar, percorrer a mesma trilha de evidências do veículo. Um excelente antídoto para as convicções infundadas.
- Compromisso com a prestação de contas . Este compromisso consiste em informar, com transparência, as fontes de financiamento da organização produtora de conteúdo. Este princípio é algo como uma porta aberta para a revisão crítica, informando de antemão as afiliações ou associações que possam introduzir vieses que comprometam a racionalidade, a honestidade ou a imparcialidade.
- Compromisso com os padrões e transparência da metodologia. Implica tornar explícita a metodologia empregada para a seleção, pesquisa, edição e publicação de notícias, bem como encorajar e criar canais de interação com o público em resposta a pedidos de verificação ou questionamentos.
- Compromisso com política de verificação/correção. Este compromisso reconhece que enganos acontecem e devem ser tratados com honestidade e transparência, indicando os mecanismos para revisão e publicação de correções.
Embora possamos nos amparar em princípios como os acima citados, sabemos que transcender a dinâmica das fake news não é tarefa simples, nem definitiva. A prática aperfeiçoa a habilidade e, neste caso, a prática em questão é colocar em dúvida as próprias convicções, em busca da verdade. Envolve uma boa dose de humildade, esta virtude tão menosprezada e tão libertadora, pois nos convida a pensar “contra nós mesmos”, remando no sentido contrário da nossa atenção seletiva e nossos vieses de confirmação. Se a prática da comunicação limpa tem um efeito libertador para o indivíduo, tem um efeito composto emancipador para a sociedade, destravando a nossa capacidade de sonhar e construir juntos.