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Sem criar uma cultura cidadã, políticas de segurança são insuficientes

Evitar mortes como a de Moïse Kabagambe demanda uma visão de longo prazo que integre ações antirracistas, direitos humanos, cultura e comunicação pública

Violência no Brasil; Mortes; Homicídios (Mario Tama/Getty Images)
DR

Da Redação

Publicado em 4 de fevereiro de 2022 às 12h51.

Última atualização em 4 de fevereiro de 2022 às 13h24.

Brasil: partiu sem dizer adeus

A brutalidade do Brasil ultrapassa todos os limites civilizatórios, mata crianças e jovens e joga famílias na crueldade da desesperança

Porrete, taco, chutes, socos, tapa na cara, balas achadas em peles alvo

As histórias cotidianas do Brasil parecem uma saga da Idade Média tecidas na brutalidade consentida pelas instituições e por nós, ditos cidadãos.

Ano a ano, década a década, governos distintos, e os fatos e números falam por si. Somos um dos países recordistas emlinchamentos, femicídios, mortes violentas por causas indeterminadas [1] e armas de fogo, assassinatos de LGBTI+ [2]

A violência foi tão naturalizada entre nós que a selvageria age à luz do dia. Sem escrúpulos, sem limites e com requintes de ódio. O assassinato brutal do jovem refugiado congolês, Moïse Mugenyi Kabagambe, 24 anos, em um quiosque na praia da Barra, no Rio de Janeiro, seguiu este roteiro macabro que se normalizou no país, mobiliza as redes sociais e os veículos de imprensa por alguns dias e aguarda um próximo fato que supere o anterior em crueldade.

O ódio coletivo tem alvo certo. Crianças e jovens em sua maioria pretos moradores de áreas onde as pessoas são consideradas pelo Estado e pela cultura violenta que nos domina, matáveis. Só o Rio de Janeiro, em 2021, teve 59 chacinas, 1019 pessoas mortas por armas de fogo, 59 crianças e adolescentes baleadas, dessas 19 mortas [3]. O lugar onde a família de Moïse escolheu para fugir da violência armada do Congo.

É possível pensar em futuro para um país que mata suas crianças e jovens? Onde mães e pais carregam os corpos de seus filhos muitos mortos pela ação do Estado a qual deveriam confiar suas vidas e oportunidades?

Como reverter uma brutalidade quando ela se normaliza nas relações sociais e entre o Estado e seu povo? Salvo algumas exceções, e elas sempre existirão, o mundo da política e as ações do Estado expressam a cultura social, onde reside uma visão de país, ali onde moram os valores culturais enraizados pela brutalidade da nossa história que foram se consolidando por processos que combinam interesses, crenças e conformismo.

As forças policiais disparam rajadas de tiros que encontram corpos infantis, multidões enfurecidas lincham “por ouvir falar”, funcionários de um quiosque, que atendem moradores e turistas que relaxam a beira-mar, matam à porrete um jovem. Ninguém se arrepende.

Os especialistas dizem que é preciso mudar as políticas de segurança pública (elas existem?), desmilitarizar as polícias, mudar a rota dos programas de combate as drogas, ampliar o acesso à justiça e aos direitos nas áreas e junto aos brasileiros e brasileiras que vivem em situação de maior vulnerabilidade. T udo isso certamente contribuiria para reduzir os índices de violência que o país vive há décadas, mas não garantem um desfecho diferente para a crueldade que marca atos como o que matou Moïse. Ou para as 180 mil meninas e meninos vítimas de violência sexual ou as 35 mil mortas de forma violenta entre 2016 e 2021, segundo informe do Unicef e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Além da mudança estrutural nas políticas, programas e ações de segurança pública, com a responsabilização direta das autoridades que respondem por elas, é preciso coordenar no Brasil um plano que aposte e construa uma cultura cidadã, de visão de longo prazo que integre ações antirracistas, de justiça e segurança, direitos humanos, educação, cultura e comunicação pública. Que risque o chão de forma clara quando a barbárie se impõe.

Se pegarmos uma única área, comunicação pública, o que temos, independente da coloração política e ideológica dos governos, é propaganda feita com dinheiro público.  Uma comunicação, exceção na área de saúde em tempos que já se foram, incapaz de promover ideias, inspirar valores e atitudes ou garantir os interesses de informação pública do cidadão.

Uma guinada na comunicação pública do país, - hoje orientada por lives que espalham fake news e agem contra os interesses dos cidadãos- com menos verbas para propaganda institucional e mais foco na sociedade, é uma tarefa urgente para os próximos governo. Algo que deveria ser cobrado dos candidatos a cargos eletivos pelos eleitores junto com políticas de educação, saúde e emprego.

Ah, isso vai mudar a violência alarmante?

Sem mudar o imaginário social, o que vai continuar vigorando é o manual da brutalidade, guia já institucionalizado no país.


[1] Atlas da Violência, 2021. De acordo com o estudo, o Brasil registrou um crescimento de 35,2% no número de mortes violentas por causas indeterminadas entre 2018 e 2019. Os maiores aumentos foram registrados no Rio de Janeiro (232%), no Acre (185%) e em Rondônia (178%).

[3] Dados da plataforma Fogo Cruzado, janeiro 2022.

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Porrete, taco, chutes, socos, tapa na cara, balas achadas em peles alvo

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Ano a ano, década a década, governos distintos, e os fatos e números falam por si. Somos um dos países recordistas emlinchamentos, femicídios, mortes violentas por causas indeterminadas [1] e armas de fogo, assassinatos de LGBTI+ [2]

A violência foi tão naturalizada entre nós que a selvageria age à luz do dia. Sem escrúpulos, sem limites e com requintes de ódio. O assassinato brutal do jovem refugiado congolês, Moïse Mugenyi Kabagambe, 24 anos, em um quiosque na praia da Barra, no Rio de Janeiro, seguiu este roteiro macabro que se normalizou no país, mobiliza as redes sociais e os veículos de imprensa por alguns dias e aguarda um próximo fato que supere o anterior em crueldade.

O ódio coletivo tem alvo certo. Crianças e jovens em sua maioria pretos moradores de áreas onde as pessoas são consideradas pelo Estado e pela cultura violenta que nos domina, matáveis. Só o Rio de Janeiro, em 2021, teve 59 chacinas, 1019 pessoas mortas por armas de fogo, 59 crianças e adolescentes baleadas, dessas 19 mortas [3]. O lugar onde a família de Moïse escolheu para fugir da violência armada do Congo.

É possível pensar em futuro para um país que mata suas crianças e jovens? Onde mães e pais carregam os corpos de seus filhos muitos mortos pela ação do Estado a qual deveriam confiar suas vidas e oportunidades?

Como reverter uma brutalidade quando ela se normaliza nas relações sociais e entre o Estado e seu povo? Salvo algumas exceções, e elas sempre existirão, o mundo da política e as ações do Estado expressam a cultura social, onde reside uma visão de país, ali onde moram os valores culturais enraizados pela brutalidade da nossa história que foram se consolidando por processos que combinam interesses, crenças e conformismo.

As forças policiais disparam rajadas de tiros que encontram corpos infantis, multidões enfurecidas lincham “por ouvir falar”, funcionários de um quiosque, que atendem moradores e turistas que relaxam a beira-mar, matam à porrete um jovem. Ninguém se arrepende.

Os especialistas dizem que é preciso mudar as políticas de segurança pública (elas existem?), desmilitarizar as polícias, mudar a rota dos programas de combate as drogas, ampliar o acesso à justiça e aos direitos nas áreas e junto aos brasileiros e brasileiras que vivem em situação de maior vulnerabilidade. T udo isso certamente contribuiria para reduzir os índices de violência que o país vive há décadas, mas não garantem um desfecho diferente para a crueldade que marca atos como o que matou Moïse. Ou para as 180 mil meninas e meninos vítimas de violência sexual ou as 35 mil mortas de forma violenta entre 2016 e 2021, segundo informe do Unicef e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Além da mudança estrutural nas políticas, programas e ações de segurança pública, com a responsabilização direta das autoridades que respondem por elas, é preciso coordenar no Brasil um plano que aposte e construa uma cultura cidadã, de visão de longo prazo que integre ações antirracistas, de justiça e segurança, direitos humanos, educação, cultura e comunicação pública. Que risque o chão de forma clara quando a barbárie se impõe.

Se pegarmos uma única área, comunicação pública, o que temos, independente da coloração política e ideológica dos governos, é propaganda feita com dinheiro público.  Uma comunicação, exceção na área de saúde em tempos que já se foram, incapaz de promover ideias, inspirar valores e atitudes ou garantir os interesses de informação pública do cidadão.

Uma guinada na comunicação pública do país, - hoje orientada por lives que espalham fake news e agem contra os interesses dos cidadãos- com menos verbas para propaganda institucional e mais foco na sociedade, é uma tarefa urgente para os próximos governo. Algo que deveria ser cobrado dos candidatos a cargos eletivos pelos eleitores junto com políticas de educação, saúde e emprego.

Ah, isso vai mudar a violência alarmante?

Sem mudar o imaginário social, o que vai continuar vigorando é o manual da brutalidade, guia já institucionalizado no país.


[1] Atlas da Violência, 2021. De acordo com o estudo, o Brasil registrou um crescimento de 35,2% no número de mortes violentas por causas indeterminadas entre 2018 e 2019. Os maiores aumentos foram registrados no Rio de Janeiro (232%), no Acre (185%) e em Rondônia (178%).

[3] Dados da plataforma Fogo Cruzado, janeiro 2022.

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