Exame.com
Continua após a publicidade

Reverter a naturalização da morte na pandemia é o maior desafio da cultura

Em sua coluna de estreia na EXAME, a jornalista e crítica da cultura Marta Porto traz a importância do setor cultural para a retomada econômica do país

Protestos do grupo Fridays For Future durante a COP26, em Glasgow, na Escócia (Daniel Leal-OlivaS/AFP/Getty Images)
Protestos do grupo Fridays For Future durante a COP26, em Glasgow, na Escócia (Daniel Leal-OlivaS/AFP/Getty Images)
M
Marta Porto

Publicado em 5 de janeiro de 2022 às, 15h48.

Última atualização em 31 de março de 2023 às, 15h08.

Acorda, Cultura!

“Morte, vela, sentinela sou, do corpo desse meu irmão que já se vai. Revejo nessa hora tudo que ocorreu. Memória não morrerá...” (Milton Nascimento, Sentinela)

“Uma obra de arte eficaz deixa em seu rastro o silêncio” (Susan Sontag, A Estética do Silêncio)

Escrevo hoje, 05 de janeiro de 2022, sob o luto de 620 mil brasileiros e brasileiras mortos por covid-19 em um contexto que assemelha o Brasil a um campo de extermínio. Com exceções notáveis, muitos de nós apenas dão de ombros e rezam para não estarem nas próximas estatísticas. E esse dar de ombros fala muito sobre a cultura que o gerou e os escombros em que vivemos.

A naturalização da morte violenta e da brutalidade é uma marca cultural do Brasil. Se antes, uma média de 66 mil corpos tombavam por ano, em sua maioria jovens e pretos, por ações violentas do Estado ou pelas guerras inacabáveis que as nossas periferias e favelas são submetidas, hoje morremos por um vírus letal que se encontrou com a negligência e a incúria das instituições de Estado.

Romper com essa brutalidade, com o ressentimento, a naturalização da morte violenta, com esse niilismo social, é a principal tarefa da cultura para as próximas décadas se, de fato, quisermos construir uma base civilizatória diferente da que a nossa história nos impôs. Para além de aceitar e advogar pela nossa diversidade, sempre tão celebrada, temos que orientar nosso trabalho para defender uma epifania de consciência, de alteridade e corresponsabilidade com e pelo nosso povo, em especial os mais vulneráveis, as crianças e os jovens.

Estar imbuídos da tarefa de cooperar, através do ecossistema cultural - artistas, produtores, gestores, instituições, espaços, recursos, infraestrutura, conexões - com um tipo de desenvolvimento onde pessoas de carne e osso estejam no centro, e nosso potencial ambiental saia do discurso e ganhe concretude em políticas, programas e no corpo institucional.

Fazer isso implica um enorme esforço de consciência cívica, de amor ao país e à nossa gente. E de reorientação dos postulados que sustentam políticas, programas e iniciativas culturais as mais diversas. Não serão iniciativas isoladas, e elas existem, e muitas são um exemplo de civismo e coragem que irão mudar o rumo da prosa. E esse rumo já passou da hora de mudar.

Desde a implantação do Ministério da Cultura, em 1985, o debate cultural se amesquinhou. Passou a ser a soma de interesses corporativos, de classe, de grupos e de pessoas, e nunca do povo, do público, do projeto de país. Há muito paramos de discutir cultura para falar apenas de produção cultural. E de forma rasa, como se o mundo tivesse parado no tempo e o país estivesse disposto, com seus imensos desafios, a sustentar a eterna discussão sobre incentivos fiscais a projetos de alguns produtores e organizações com maior apelo na mídia e junto a patrocinadores.

Não, o país cansou dessa epopeia anti-heroica que obscurece a importância, inclusive, da produção cultural para o país e a torna cada vez mais lateral na defesa das agendas prioritárias do povo brasileiro.

Em muitos dos casos, a mediocridade reinante assume ares de pompa, em especial quando o assunto é a mais recente bola da vez, a economia criativa. Estudos, pesquisas, indicadores são criados para mostrar “o impacto da cultura na economia”, “o potencial das artes para o desenvolvimento econômico”, sem que se consiga mostrar como os segmentos implicados no escopo ‘criativo’ cooperam para enfrentar os principais dilemas históricos do Brasil: desigualdade, concentração de renda, ausência de oportunidades para nossos jovens, e de mobilidade social para as famílias.

Não que esse tema não seja relevante, mas fico com a pergunta: basta a economia ser criativa para reorientar um modelo de desenvolvimento desigual e concentrador? Estudos sobre a indústria do carnaval no Brasil mostram que essa pergunta continua silenciada e que ainda precisamos avançar muito nos parâmetros que geram essas medições[1].

O impacto para a economia das cidades é uma realidade incontestável, mas isso raramente se converte em melhores condições socioeconômicas para as comunidades que criam e produzem a festa. Empregos são gerados, mas são sazonais e não se configuram uma verdadeira mobilidade social para os trabalhadores do carnaval, a maior e mais rentável festa brasileira. São desprezíveis? Não, mas insuficientes.

Não é preciso antes mudar as crenças culturais que nos levaram a esse modelo? E o que pode nos ajudar a sair da estagnação do pensamento e enxergar novas saídas? As respostas não são rápidas e fáceis, os tempos em que vivemos exigem que os clichês sejam deixados de lado e as construções sejam de fato transdisciplinares, mas acredito que as nossas ancestralidades, a história cultural invisibilizada pela história e as crenças oficiais, têm muito a nos ensinar.

As cosmogonias indígenas e africanas, os saberes e fazeres da cultura popular, as gambiarras organizadas no cotidiano que são artefatos de inventividade e sobrevivência. Tudo que ainda produzimos em abundância, mas não valorizamos e nem orientamos como forma de construção do presente para ter futuro. A cultura, seja no campo dos valores e das crenças, seja para a inovação socioeconômica e produtiva – os saberes da floresta, o manejo sustentável, as gambiarras do dia a dia - é um manancial original, singular, generoso e permanente de construção de presentes/futuros capaz de converter ideias soltas em projeto de país.

Um projeto capaz de olhar para a nossa gente, ampliar percepções e visões de mundo no encontro com o outro e também de projetar inovações para um mundo onde as ‘ruínas tecnológicas’[2] são um desafio humano e produtivo. Nos cabe perguntar a partir dessa ideia: onde está afinal a inovação no Brasil?

No campo da cultura política, da transformação gradual das crenças que sustentam as decisões que nos empurram para o eterno subdesenvolvimento, as artes, as instituições e a comunicação cultural podem contribuir com conteúdos, linguagens e iniciativas que ajudem a elaborar, com as novas gerações, uma sensibilidade que rejeite a brutalidade e a normalização da violência.  E que mobilize afetos para abrir o terceiro olho dos brasileiros para ver e ouvir o Brasil e as invenções diárias do nosso povo, com poder de “convocar a aldeia”, como nos ensina o educador Tião Rocha, para um projeto humanista de país que se converta em oportunidades reais, renda, trabalho e dignidade social para a maioria, e não só para os mesmos.

Um amplo campo inexplorado de inovação produtiva, de formação e educação profissional em áreas onde o país tem força de convocação e saberes ancestrais – ambiente, saúde e cultura - e que, combinado com as inovações digitais que o mundo demanda, podem se converter em uma revolução no mundo do trabalho. Um mundo que tenha na simbologia feminina de Gaia sua bússola ética.

Gaia está enfurecida e exige respeito, sabedoria e amor pela abundância que oferece para a humanidade. O Brasil é o paraíso natural de Gaia, com suas florestas, rios, bacias e lagos, mares e terras férteis, e a biodiversidade que reúne em seus biomas. E na resiliência, inteligência e cultura de nossa gente. Temos que crer, apostar e orientar nosso trabalho para cooperar com essa abundância inata e torná-la riqueza e horizonte para as novas gerações de brasileiros. Não há outro projeto cultural além desse: a partir dos escombros da brutalidade, dizer basta e regenerar a terra garantindo que o Brasil  seja um lugar de justiça e amor.

1 https://portal.fgv.br/artigos/importancia-carnaval-economia-rio-janeiro

2 Termo cunhado pelo teórico das mídias Alexander Galloway